A PETISCADA -1
Nestas últimas, penúltimas e antepenúltimas crónicas cirandámos pelo último quartel do século XIX. Falei da poesia popular, de autor anónimo, métrica e rima descuidadas, temas vários por si tratados, nomeadamente o ano em que ele assentou praça (1871) ao serviço de D. Luís, como soldado. Claro que, poetando ele daquela maneira (a sua obra excluída estaria, seguramente, de entrar nos manuais escolares, ainda que escola fizesse no auditório português popular e nele perdurasse até hoje, como referi, sobretudo na zona alentejana) e ao situar-se neste ano de 1871, lembrei-me logo das «Conferências do Casino», de Antero de Quental, dos seus sonetos, textos sociais, de literatura pura, que ele cantou e a mim me encanta. Depois falei do tabelião (Antero, poeta e escritor de renome, outro escrivão anónimo de província) que, passada uma década (certamente filho da mesma escola coimbrã) assentou arraiais nesta vilória de Castro Daire, para daqui, no desempenho do seu ofício, viajar até aos Açores, dali para Tabuaço e, depois, retornar a esta santa terrinha.
TUDO O QUE VEM À REDE É PEIXE
Há anos que cirando por trilhos e veredas serranas, que visito aldeias e povoados, falando com toda a gente à procura de documentos orais e escritos, papéis velhos, manuscritos ou impressos. E foi nessa minha romagem pelo concelho que, em 1995, me chegou às mãos um maço de folhas, formato 34x22,5 cm, nas quais, de alto a baixo, estão manuscritas, em duas colunas, umas tantas décimas populares, isto é, composições poéticas constituídas por um mote (quatro versos) glosado em estâncias de dez versos, rematando cada uma delas com um verso do mote. Composições ainda muito em uso nos meios populares alentejanos (procedi a alguma recolha delas quando estive em Castro Verde) mas não tanto por estas bandas do Montemuro. As últimas que conheci por cá, e delas já fiz uso algures nos meus escritos, são atribuídas ao Mestre Zé Aveleira, (de Cetos) já falecido há muito.
A NORA
A nora, esse engenho de outrora vindo das arábias, desse povo de coisas sábias
ligadas às matemáticas e à exploração da água de beber e de rega, escondida nas profundezas da terra. Assim o aprendi e assim ensinei com muita simpatia pela inteligência na luta dos povos pela sobrevivência. Um poço aberto num areal, aberto num descampado, dentro ou fora de Portugal, uma roda munida de alcatruzes (é isso que eu sei) não havia deserto que esse povo, arredado das cruzes, deixasse por esventrar e trazer à superfície o líquido que rega e mata a sede. Que dá vida, antónimo de morte. E quem me impede de ler poesia naquela vida dura de burro, de burra ou de camelo, sempre à roda do poço, de coleira metida no pescoço e a geringonça que encanta adulto e criança, no seu monocórdico "chiu...chiã...chiu...chiã", desde manhã cedo à noite escura, quem vai sabê-lo, se chora, se canta? Chiu...chiã...chiu...chiã...
No Alentejo havia noras e poços espalhados pelos montes. A água não gorgolejava livre e cantante das fontes, como aqui no norte. Um balde preso à ponta de uma corda, sempre ali ao lado, convidava o viandante, o caçador, o criado e o senhor sedentos a servirem-se. Eu me servi. E lá como cá (que ousadia minha) sempre que bebo água, bebo poesia.
(Publicado no Facebook em 3 de setembro de 2014)
ANTIGAMENTE ÉQUE ERA BOM
Nunca me tinha lembrado
Mas tinha que ser um dia
No cumprimento deste meu fado
Escrever em poesia
Uma impensável ode à fome
E nela cantar a barriga vazia
A felicidade de quem não come.
VÉU DE NOIVA
Uma vez,
(Foi há muito tempo)
Procurei a minha professora Inês
E soube que ela se metera
E morrera
Num convento.
Sete filhos teve Gabrielina Pereira
Esposa de Salvador de Carvalho
Todos lhes deram muito trabalho
Desde o último até à primeira.
PARTIDO SOCIALISTA
O momento político que se vive no PARTIDO SOCIALISTA, partido cujos trilhos nunca perdi de vista e de afectos, leva-me a transcrever para aqui algumas OITAVAS que Luís de Camões dirigiu a Dom António de Noronha sobre «O DESCONCERTO DO MUNDO». Para melhor actualidade alterei algumas palavras que ponho entre aspas e em letra maiúscula, já que este espaço não aceita o itálico. Assim
Fui nova e cortante enxada
Desbravei e cavei o chão
Sou sucata abandonada
Metida assim neste paredão.
Nas tendas de Cujó fui forjada,
Nas tendas dos Camelos e Ramalhos
Todos hábeis a manejar
Ferro, martelos e malhos
Invernos seguidos sem parar.
CRIATIVIDADE VIVA
Que felicidade a minha viver num tempo em que, tão asinha, a criatividade e o pensamento surgem em meu redor como escalracho em terreno lavrado: ele é o poeta, ele é o escritor, ele é o historiador a deixarem-me deslumbrado com tanto labor, com tão variegado saber nestas cousas de contar, de ler, de escrever e, de forma lesta, divulgar e vender o que presta e o que não presta.
De há uns tempos a esta parte
Surgiu uma vaga de poetas
E escritores dispostos a renovar a arte
De comunicar com as letras.
ABRIL
Liberdade, igualdade, fraternidade
Bandeira de esperança de muitas cores
Qu'é dela?
Que foi feito dessa primavera
Desse jardim de mil aromas, mil flores
Que murcharam, mirraram, morreram
Em quarenta anos apenas?
Onde estão as minhas Tróias, as minhas Helenas?
SOBE, SOBE, BALÃO SOBE...
MÁ LÍNGUA
Já foi há muito tempo.
Um dia
Na compra do jornal
A empregada
Que mal sabia
A gramática
Disse-me "obrigado"
Em vez de "obrigada"
Como lhe cabia.
Era a prática
No seu a dia a dia
E assim fora ensinada.
Ai amigo
Tenho andado perdido
Na poesia medieval,
Nas cantigas de amigo
De escárnio e maldizer.
Ai amigo,
Tenho andado perdido
Na poesia medieval
Nas cantigas de amigo
De escárnio e maldizer.
Ai amigo
Tenho andado perdido
Nas poesias medievais.
E como nunca é demais
Beber as influências provençais
É por lá que tenho andado.
LUZ QUE ALUMIA - HUMBERTO ECO
Acordado, olho aberto, ligo a rádio e sou informado da morte de Humberto Eco.
Disseram a idade: oitenta e tantos. Não fixei. Só sei que se afastou uma luz dos meus encantos, uma luz que me alumiou e me fez rir no "Nome da Rosa", aquele livro onde falou a sério do livro que o riso proibia: o riso, esse mistério. Fiquei triste.
Letras? Que longo caminho, o delas. Ora galopando, ora trotando, ora a sós ou a granel, atravessaram espaço e tempo, até chegarem a nós, silenciosas ou em tropel. Caminhada longa e séria. A arqueologia, que acorda o que enterrado dorme, trouxe-nos da Antiguidade a escrita cuneiforme da Suméria e territórios do Crescente, a deslocação de animais e gente, as Tábuas da Lei, a Pedra de Roseta, cunhadas ou manuscritas, visíveis ou apagadas, chegaram-nos em papiros, em pergaminho e papel, sempre cuspidas por cunhas, espátulas, estilos, bicos das penas de pato ou aparo de canetas, com recurso a tintas e a cera. Falo de história. As letras nunca foram tretas. Gravadas, desenhadas, hieroglíficas demóticas ou cursivas, a par de factos autênticos passados, carregados de glória, elas registaram vidas, sentimentos, afectos, amores, sofrimentos, paixões, declarações de guerra, tratados de paz, formação e queda de impérios, muitas fintas, muitas lendas e muitas petas, ditas e inauditas.
O FACEBOOK É UMA LIÇÃO
ORA ENTÃO DIGA LÁ AO QUE VEM...
Calado, deitado no sofá, mãos cilhadas na nuca, cotovelos afastados à semelhança da proa e da ré de um barco rabelo atracado, desgrenhado o cabelo, queixo ferrado no peito, ao jeito de Trinitá, o cawboi insolente, perna cruzada, tornozelo com tornozelo, estendido na padiola puxada para cá e para lá pelo seu cavalo, um regalo, ouço a voz amiga do psiquiatra, aquele médico (um tanto ou quanto quadrado) que há anos me me trata das maleitas da mente, aquele que entra em nós e como nós sente, aquele que tudo faz para me tirar das nuvens, para me fazer descer do céu à terra e, na terra pensar e agir como toda a gente: diga!?
Misterioso é o cérebro humano. Quando menos esperamos, passado tanto ano, num só momento, o pensamento conduz-nos de repente a caminhos andados, distantes esquecidos e, sem pedirmos, lembrados.
ESTÓRIA POÉTICA - O BORDEL
Creio não haver homem no mundo, homem que se preze de sê-lo, que, gozando a mocidade, saboreando a vida, a saúde e a virilidade próprias de idade, não arrole no seu currículo a passagem por um bordel, a "casa das meninas" e nunca uma vez só. Creio não haver homem que tenha esquecido aquela imagem impressiva de entrada e de começo: uma grande sala, as meninas sentadas à roda, cada uma delas, fazendo pela vida, a tentarem captar o cliente recém-chegado. De todas as raças e cores. Um arco Íris de corpos e de vestes, «partout, everywhere, por toda a parte». Sorrindo, o acabrunhado caloiro nessas lides, logo se tornava alvo de mil olhares, mil desejos e mil perguntas: «quem escolherás tu?»
Ao fundo, num canto, junto da janela, um papagaio atento à clientela, ensinado a bater as asas e a palrar como quem fala: "meninas, quarto ou rua,... vida..., vida,... aqui não se quer sala". Um pássaro avisa quem procura pássara que o espaço não é sala de estar mas somente sala de espera.
Lá longe...em Moçambique, na cidade de Lourenço Marques (hoje Maputo) numa das aulas de Literatura Portuguesa, analisando um poema de Reinaldo Ferreira (filho) guardei para toda a vida a opinião do meu professor, Dr. Francisco Cristóvão Ricardo: "só este poema faz de Reinaldo Ferreira um poeta". E acrescentava que, para se ter essa categoria, não era preciso escrever muito: "um simples poema valia por um livro inteiro".
Corre o mundo seu fadário
No fio do tempo rolando
A Língua foi-se mudando
Dicionário após dicionário.
MEMÓRIAS MINHAS - POESIA, ONDE ESTÁS TU
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Nada é, pois, como outrora: «nada é igual». E ao sol-por das minhas «infâncias distantes», infâncias na maioria iletradas, condenadas à cultura da terra, a vida, nas suas mudanças constantes, contrapõe-se, agora, o chilreio da pequenada nos jardins de infância, da criançada nas escolas primárias, preparatórias e secundárias.
Iooonnnn......iiooonnn...brrruuuu...A esquerda cooperativaDeu dois coices no telhadoE ela, que tem sido burra,Mostrou, enfim, o nunca visto:São Bento ficou sem telhaE o Céu abriu-se à Terra.E agora, vejam só quem zurraE rincha por todo o lado:- Vem aí o Anticristo.É a direita velha e relha.
Onde é que eles já vão Com muita alegria e fé O distrito Cavaquistão Cavaquistão já não é. Quem é que sabia que em Lisboa havia a rua Abade Faria? E o que faria o Abade Faria para ter a rua que merecia? Pouca gente sabia. Tal como pouca gente sabe quem foi esse abade e o que na vida fazia. Hoje já assim não é. E num país de muita fé, de monges, clérigos, abades (e também muitos alarves) a rua Abade Faria converteu-se num santuário, a pontos de, noite e dia, jornalistas hipnotizados, dali debitarem notícias, comentários, mas não sobre o Abade Faria, nem sobre o que ele fazia, para ter a rua que merecia. Fora do aparelho propositadamente Por razões públicas conhecidas (Deixei-as escritas, foram lidas) Eu ficaria muito contente De ver o Partido Socialista Na crista Deste mar encapelado, Confuso, embrulhado Nas turbulentas ondas Do mar de outubro. A LUA
Radiante, aparece no horizonte O Sol, atrás daquele monte
Todos os anos as andorinhas, na sua viagem migratória, repousam algum tempo nas linhas telefónicas e electricas presas aos postes que se levantam na povoação de Fareja.
Duas ou mais mulheres lavam aqui a roupa. Eu ouço verdades, eu ouço balelas Pois falar da aldeia toda é cousa pouca Neste pequeno espaço, somente delas.
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