IMPERADOR
Espelho mágico, diz-me qual é imperador da poesia portuguesa mais importante do mundo que eu? O espelho sorriu devagar e, duas vezes, instado, respondeu: És tu, Fernando Pessoa, que descobriste que “o poeta é um fingidor, finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”.
Um exemplo clássico, um ator, em palco, cai, grita de dor, é grave, vem o INEM, levam-no para o hospital, vai ser operado, diferente de um outro ator que cai, grita de dor, sai da cena, e aparece no fim do espectáculo a agradecer os “encores”. A dor real não é arte, arte é representá-la, é fazê-la sentir, é fingi-la.
Fernando Pessoa atribuiu o título de imperador da língua portuguesa ao padre António Vieira, (século XVII), pela riqueza e rigor dos seus sermões. Diante dos espelhos das montras das lojas da Chiado, que todos os dias descia, via-se, sentia-se, fingia-se, de facto, imperador da poesia portuguesa.
Ser imperador é, por definição, ter um vasto império, juntar ao nome, como o fizeram os antigos reis, Império de Portugal e dos Algarves.
Vendo numa espécie de espelho virtual, lá estavam o império do saber, o império de observar a vida e o mundo, o império de se despersonalizar, de se sentir outro, de se sentir outros e império da expressão rica, clara e rigorosa.
Lá vai ele a caminho das empresas onde é correspondente. Vem no seu fato preto, coçado, fato a pedir reforma, sempre adiada, que o salário magro mal dava para um copo de três com uma sande seca a acompanhar, fato onde baloiça o seu físico franzino, longe das atenções do mundo. Correspondente significa tradutor, por se corresponder em inglês com empresas inglesas e traduzir para português as respostas recebidas. Trabalho do agrado de Fernando, pois passara a infância na África do sul, na adolescência frequentara a universidade de Durban e, até, fora laureado pelos seus poemas em inglês.
O imperador da poesia finge tão completamente que chega a fingir que é realidade a realidade que deveras sente.
Alberto Caeiro, finge tão completamente que chega a fingir que é guardador de rebanhos o guardador de rebanhos que deveras sente, vemo-lo com num capote alentejano, um cajado nas mãos e um chapéu largo (“saúdo todos tirando-lhes o chapéu largo”), poeta das sensações, “sou um guardador de rebanhos./ o rebanho é os meus pensamentos / e os meus pensamentos são todos sensações”. Compara a sua alma a um pastor que aprecia o vento e o sol, que não pensa, porque pensar incomoda, que não tem filosofia ( “eu não tenho filosofia, tenho sentidos”), recusa a metafísica, pois “ há metafísica bastante em não pensar em nada” , e admirava Cesário verde pelo seu olhar os prédios e as ruas, pelo seu estilo prosaico, “um camponês que andava preso em liberdade pela cidade”, como ele gostaria falar dos mestres carpinteiros, do enfado dos lojistas e das “varinas que embalam nas canastras os filhos que depois naufragam nas tormentas”. (nota: as frases entre aspas In “guardador de rebanhos”, e Sentimento dum Ocidental de Cesário Verde).
Ricardo Reis, finge tão completamente que chega a fingir que é Horácio, o Horácio que deveras sente, vemo-lo com uma toga de senador, faz-se próximo dos romanos de quem copia o mito de “carpe diem” (aproveita o dia que te é dado, que esse dia não dura sempre), cultiva na sua admiração por Roma antiga, a efemeridade da vida, usa um vocabulário alatinado, erudito (inscientes, volucres), uma sintaxe servil da sintaxe latina, como o uso do hipérbato(“as rosas amo dos jardins de Adónis”, em vez de “amo as rosas”), referência frequente, a símbolos clássicos (Apolo, Adónis, Lídia), na crença à brevidade do dia, do tempo, da vida, “ao pouco que duramos”, como se vê em “AS ROSAS”:
“As Rosas amo nos jardins de Adónis,
Essas vólucres amo, Lídia, rosas,
Que em o dia em que nascem,
Em esse dia morrem” (In “Odes”)
Álvaro de Campos, finge tão completamente que chega a fingir que é futurista, o futurista que deveras sente, é apaixonado de máquinas, como se prova na ODE TRIUNFAL : a beleza da máquina, “um carro de corrida é mais belo do que a estátua de Samotrácia”, o ruído das engrenagens, “r-r-r-r-r-r-r eterno”, amar, envolver-se, sentir a máquina fora e dentro de mmi, “À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica /Tenho febre e escrevo./Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,/Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos”. (As frases entre aspas, in ode triunfal)
Finge, ainda, Álvaro de Campos, tão completamente que chega a fingir que é dor da saudade da infância feliz em oposição à amargura da vida de adulto, a dor que realmente sente.
“No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto”.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer”,
o que eu sou hoje é terem vendido a casa… hoje já não faço anos/ duro /--- raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira” (in “aniversário” de Álvaro de Campos).
Bernardo Soares finge tão completamente que é desassossego o desassossego que deveras sente.
O que é o Livro do Desassossego? Um romance inacabado, memórias, notas avulsas, recordações, dúvidas e certezas, scuriosidades de um intelectual? Talvez, um pouco de tudo isto.
O imperador da poesia portuguesa foi um fingidor, fingir é criar, vale a pena?
“Tudo vale a pena,
se a alma não é pequena.
Quem quer passar o Bojador
Tem de passar além da dor.
Deus ao perigo o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu”.
(“Mar português” in “Mensagem”)