Os originais que manuseei, em 1995, eram pertença do senhor Adelino Soares, da Carranqueira, que os herdara dos seus antepassados. Chegados à minha mão, apressei-me a tirar fotocópias e é delas que transcrevo as composições que se seguem, postas em duas colunas e último verso a negrito, por forma a ver-se reproduzido o mote, em cada uma das décimas. A ilustração é um vintém (vinte reis) "cunhado" em 1884, por D. Luís. Ela faz parte do meu mealheiro e talvez represente o valor deste meu apontamento.
Os temas abordados, sem grande rigor métrico no verso, são os mais diversos. Falam de questões amorosas, de "desgrácias", com tom lamuriento aqui, com um tom bazófia ali, tal qual se presencia ainda hoje nas cantorias ao desafio. Algumas revestem aspetos de coragem, de valentia com caráter patriótico e também de crítica social e governação política. E temas bíblicos também. Hoje, como ontem, cantador ou cantadeira que se preze, numa cantoria ao desafio, seja em feira, casamento ou romaria, desafia sempre o parceiro a dizer quem foi o homem primeiro, a primeira mulher e o que sabe sobre a arca de Noé.
Manuscritos anónimos, escritos na primeira pessoa, todos com a mesma letra e grafia arcaica com o "ph" a servir de "f", letra igual em todos eles, indicia estarmos na presença de um poeta popular (ou cópia dele) que viveu no último quartel do século XIX, cuja obra, certamente cantada à desgarrada, em feiras e romarias, terá passado à literatura oral, pois não faltam ali as façanhas dos Doze Pares de França, de Carlos Magno, de Oliveiros, de Roldão e Ferrabraz de Alexandria, os conquistadores da Turquia, muito em voga nos serões de minha casa, quando eu era pequeno. E também me lembro do meu pai trautear frequentemente os primeiros versos da composição que se segue, na primeira coluna: "sou soldado assentei praça". Na segunda décima, com a mesma marca popular, temos um retrato deste país que somos, país profundo, país de glórias passadas, mortas, viveiro histórico de ladrões, endividado até à medula, com os estrangeiros a sacar-nos a nossa riqueza por má governação dos nossos políticos: "Portugal estás desgraçado". Ora vejam em ortografia atual e a atualidade do tema. E ninguém diga que o povo dorme, que não vê nem sente o que se passa em seu redor. Só que é assim. Os governantes (nacionais e locais) não ouviram este poeta popular, tal como não ouvem a mim.
Mote Sou soldado assentei praça No Regimento de Artilharia Sirvo El-Rei D. Luís E à Rainha D. Maria I No dia 9 de outubro De mil oitocentos e setenta e um Sem pensar de modo algum Qual seria o meu futuro. Quando então me julgava seguro Foi que experimentei a desgraça Eu bebi do cálice a taça E revesti-me de coragem Quando escreveram a mensagem Sou soldado assentei praça. II Eu fiquei muito assustado Quando me leram certos artigos Então observei os castigos Do mísero e pobre soldado Meu coração ficou magoado Sem prazer e sem alegria Roguei à Virgem Maria Pra ser feliz com as armas E no fim ganhar as palmas Ao Regimento de Artilharia. III Quando tinha 15 dias de praça No calabouço dei fundo Ai meu Deus que se acaba o mundo Eu vou dar fim à minha raça. Dura certa coração trespassa Que me chega até à raiz Qual foi o crime que eu fiz Para sofrer tanto rigor Para a bala meu peito expor Eu sirvo El-Rei D. Luiz IV Mas embora tanto sofrer Eu jurei as santas bandeiras Para no centro das fileiras Minha Pátria defender. Eu sempre tenho de morrer Quer de noite quer de dia Ferrabraz de Alexandria Também sofreu igual desgosto Eu a servir estou disposto À Rainha Maria Pia. |
Mote Portugal estás desgraçado Estás devendo muitos milhões Portugal és um viveiro Onde fazem ninho os ladrões I Portugal foste feliz Possuíste grandes tesouros Colheste grandes louvores Segundo a história nos diz. Já foram nossos os brasis Em outro tempo passado Portugal foi respeitado Foi poderoso e foi valente Hoje em dias presente Portugal estás desgraçado. II Em outros tempos antigos Portugal sempre brilhou Com glória triunfou Na maior força dos perigos. Inda hoje existem livros Das nossas brilhantes acções Que tivemos com as mais nações Portugal sem dever nada Nesta época desgraçada Está devendo muitos milhões. III A este país vem parar Toda a classe de ladrão E a desgraçada nação Po-la não saberem governar. Os artistas vivem a chorar Quem se ri são os estrangeiros Vêm aqui buscar dinheiros Deixam-nos a pedir esmola De tratantes e mariolas Portugal és um viveiro. IV A ladroeira está apurada Os ladrões cada vez são mais Os grandes são os principais Da maçónica aclamada. Os que para ali têm entrada Têm logo grandes grilhões Ilustres nobres brasões Quero pois mais de 3 mil Portugal és um covil Onde fazem ninho os ladrões. |