Trilhos Serranos

Não. Não é o título do belo poema de Pedro Homem de Melo, cantado e recantado pelas grandes vozes portuguesas, que soa bem no ouvido de todas as pessoas da minha geração. Não. Este povo são as mulheres de Cujó que, nos meus tempos de criança, iam lavar a roupa para aquela poça do rio Calvo, a jusante da ponte que existia e existe no caminho que levava e leva aos terrenos de Vale de Carvalho, Touça, Rio Mau, Moirisca, e todos os montes que estavam para lá do Santo António e do Senhor da Livração. Sítio conhecido, agora, como então, por PONTE, aquela passagem que deu o nome ao moinho hidráulico que existe perto dela e, recentemente, ao templete que abriga uma imagem da Nossa Senhora, a SENHORA DA PONTE.
Perguntar-me-ão a razão por que, aos 74 anos de idade, faço esta incursão na memória. Eu dir-vos-ei que é a sina de quem, mergulhado no estudo do passado, esbarra não só com os documentos escritos, com edifícios, solares, castelos e igrejas, casas cobertas de colmo, choupanas espalhadas por lameiros e tapadas, património material construído, mas também com os documentos orais, artefactos arqueológicos de comunicação, tão frequentes nessa «ágora» feminina, onde as mãos das mulheres «bate-que-bate, esfrega-que-esfrega», lavando a roupas suadas do esforçado trabalho do campo, também «bate-que-bate» com a língua, lavavam a vida e os pecados da aldeia.

 JANELA DE GUILHOTINA

i

Semelhantemente

À lâmina que caía

Solta e decapitava gente

Em França

De guilhotina se dizia

Esta janela

Pela forma como ela

Se fechava e abria.

Assim o aprendi em criança.

O ANCIÃO E  «A MOLEIRINHA»

Estava eu, no dia 18 do corrente,  à  volta de um prato de sardinhas assadas na brasa, quando se aproximou de mim um ancião, pediu licença pela interrupção, e perguntou-me se eu era aquele senhor que escrevia no jornal. Que lia sempre os meus artigos e tinha notado a  minha ausência, nos últimos tempos. Que sim, senhor, era eu mesmo, gosto em conhecê-lo. Quem é?
Um pouco marreco, voz insegura, notoriamente mouco, olhar vivo e penetrante, sorriso desdentado, estava à minha frente uma carrada de anos em forma de homem muito magro e visivelmente de letras gordas.
Eu queria oferecer-lhe um livro. Sim, senhor, obrigado. E meio assustadiço, colocou-me ao lado do prato das sardinhas um opúsculo com o título «A MOLEIRINHA», capa decorada com uma pequena e tosca figura de barro, saída, seguramente, de um ignoto barrista que molda imagens à proporção da sua imaginação e engenho. Voltou a pedir desculpa pela interrupção e foi sentar-se numa mesa próxima. Ouvi-o pedir o almoço e vi o esforço da empregada para fazer-se ouvir a informá-lo dos pratos do dia.

A SUA VIA SACRA

Saído das berças sitas nas «terras quentes» de Mirandela, gerado no útero de onde saíram, espaçados a compasso das estações do ano,  mais sete irmãos, entenderam os pais que o caminho daquele rebento, escola primária feita, seria o Seminário de Vila Real (somente Seminário, sem distinção de Menor ou Maior) onde, no dizer do actual homem adulto inconformado por ter sido expulso, se «entrava porco e saía salsicha», pronta para entrar no mercado.

Dos muitos quilómetros de linhas escritas que, durante anos, deixei impressas nos jornais e nos livros sobre a história local,  cultura, usos, costumes e  gentes montemuranas, são poucas aquelas que envolvem a minha pessoa, ainda que, por vezes, tenha ilustrado o tema sobre que discorri com a minha experiência pessoal e os conhecimentos que advêm da universidade da vida, tal como fiz nos meus últimos "estados", respondendo à bisbilhoteira pergunta da máquina: "que estás a pensar?"

Neste  meu afã de lidar com letras e com pessoas de letras (tão raras por estas bandas), as letras que mais gostei de escrever, envolvendo a minha pessoa, foram aquelas que, há bem pouco tempo, "postei" no mural de um amigo, aqui, no Facebook com o título GRATIDÃO, um sentimento que muito prezo, pois acho a INGRATIDÃO uma atitude humana execrável. Eu, aos 74 anos de idade, senti-me muito feliz a escrever esse texto, pois eram palavras há muito sentias e devidas publicamente a esse amigo, PROFESSOR da Universidade de Coimbra, que, há muitos anos, não nos conhecendo nós pessoalmente de lado nenhum, ele, sem me perguntar quem eu era, donde vinha e para onde ia, produziu publicamente  "juízos académicos" sobre alguns livros meus, valorizando-os,  o que muito me sensibilizou e honrou.

Julgo até ser essa a dimensão humana que dá distinção e gabarito a uma pessoa de "pensamento", uma pessoa que não banca a intelectual e que, servindo-se das LETRAS, reconhece o mérito onde o há, incapaz de  cometer a INGRATIDÃO de ignorar, ou fingir ignorar, os créditos e os méritos que encaixam na bitola de valores pela qual afere o trabalho alheio e o seu próprio.

Semelhantemente, nessa linha de pensamento e acção, atento ao meio que me rodeia, senti-me igualmente feliz e humano, quando, há muitos, muitos anos, deixei em letra redonda, o mérito que vi nalguns trabalhos publicados, a falarem do Montemuro e suas gentes,  sem olhar ao nome e assinaturas dos seus autores. Aconteceu ter escrito até algumas dessas minhas apreciações valorativas, antes de conhecer pessoalmente alguns deles, o que,aliás, releva a objectividade da minha análise. Valorizei o trabalho pelo seu valor intrínseco e não empurrado pela subjectividade da amizade, esse sentimento humano sempre traiçoeiro,  capaz de empurrar para o elogio fácil e enganador,  que bem pode surtir efeito contrário ao "reforço positivo" de Skiner, no sentido de ajudar as pessoas a ganharem confiança em si próprias e aperfeiçoarem os trabalhos que produzem.

MÉDICO-sines0000Procedi assim impelido pela honestidade intelectual que, por caracter e formação, me impus a mim próprio. Não o fiz para ser agradável com os seus autores, pois não sou nada dado a palavras e discursos de conveniência, destituídos de verdade e autenticidade, tão ao gosto de pessoas que incham com elogios fáceis, hipócritas, sacristas, cruz alçada, desvanecidos com loas e ladainhas que anunciam à distância a procissão que passa.

Pois é, dos muitos quilómetros de linhas escritas que, durante anos, deixei impressas nos jornais e nos livros, falando da minha terra, da sua cultura e das suas gentes, diferentemente de outros que por aí se passeiam e perdem na flora montemurana, nunca confundi " toda a planta com orégãos"  para usar a ironia daquele médico de Sines, em 1850, Francisco Luiz Lopes, referindo-se aos clínicos da capital,  dizendo que eles ignoravam completamente as plantas medicinais que os rodeavam e com as quais se faziam os fármacos. (cf. «Breve Notícia de Sines», 1850, pp. 78)

É tudo uma questão objectividade, de estatura, moral, humana e ética  (não só poética) face ao nosso semelhante e à qualidade da produção intelectual publicada. As LETRAS não são TRETAS e o papel delas é estarem viradas para CULTURA dos povos, do crédito e mérito dos trabalhos produzidos e não apenas para o CULTO do umbigo daqueles ou daquelas que com letras lidam e, numa atitude narcísica, mais não vêem que a si próprias.