Mas quem, em primeiro lugar, deu corpo e forma a tal despautério foi o advogado mandatário dos RR, que assim lavrou o que pensava e deu por conselho aos seus constituintes:
Eis, pois, como no entendimento dos RR, e seus mandatários, eles se achavam no direito de se tornarem «donos e senhores» de uma moradia que, mais de 20 anos passados, tinha sido vendida com as respectivas servidões. Alegavam eles o direito de preferência à compra e, caso tivesse vencimento a sua pretensão, os AA, isto é, os actuais e legítimos proprietários, seriam obrigados vender o edifício 6 meses após a sentença transitar em julgado. E mais, o Tribunal devia reconhecer aos RR o direito de eles se subtraírem ao «encargo daquela servidão», adquirindo eles próprio a moradia pelo preço de «2.500,00 €, nos termos do artigo 1551º do C.C.»., isto é, tanto quanto o autor deu pelas ruínas de uma casa que recuperou e à qual, ao longo dos anos, foi somando várias benfeitorias.
Uma autêntica desfaçatez pensar em tal coisa, quanto mais levá-la a juízo em letra redonda pelas mãos de advogados. E tal «coisa», não ser «saneada», à partida, pelo respectivo Juiz da Comarca, é algo que, pode ter lugar no silvado das leis, nos interesses de que se alimenta a máquina da Justiça, mas não tem acolhimento no juízo de gente honesta, simples, com letras, de poucas ou sem letras nenhumas.
Face a tal despautério, que pelos visto isso não foi para o Magistrado que deu seguimento ao pedido, o mandatário dos AA argumentou, com base nos factos e no direito, citando acórdãos que fixaram jurisprudência sobre a matéria.
E na mesma linha de interpretação viria a pronunciar-se a Meritíssima Juíza do Círculo de Lamego, depois de uma extensa deambulação jurídica sobre o assunto. Assim:
Os RR, não fazendo prova de serem proprietários da eira por onde era feita a servidão, ficaram a descoberto dos artigos 1555ª e 1551º, arrancados ao Código Civil pelo seu mandatário. A sentença estava dada a favor dos AA. Para já eles podiam ficar sossegados.
Em Moçambique, em tempos de revolução e por força da descolonização, foram os AA. expropriados dos bens que possuíam e, custando-lhes embora, até entenderam isso, mas em Portugal, num Estado de Direito, trazido com o 25 de Abril, jamais pensaram verem-se expropriados, com o aval da justiça, do património adquirido, com muito trabalho e poupança. Não foram.
O Meritíssimo Juiz da Comarca, no «despacho saneador», não «saneou» tal desconchavo, deu-lhe seguimento para o Circulo Judicial de Lamego, onde os RR viram goradas as suas pretensões. E igual entendimento tiveram os Meritíssimos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação do Porto que, analisando exaustivamente toda a matéria em apreço no Recurso ali chegado, concluíram sobre o «direito de preferência» o seguinte:
Assim, face às sentenças da 1ª e 2ª instâncias judiciais, os AA. podiam dizer que «ainda havia juízes em Berlim». A moradia que compraram em semi-ruínas e que reconstruíram, gastando nela nem sabem quanto, continuava a ser deles, por decisão judicial. O sapiente articulado em que assentou a «contestação/reconvenção» não era para qui chamado.
E «nada mais é preciso argumentar», escreveram os magistrados da Relação do Porto, no remate do seu texto. De facto para quê gastar mais latim? E eu podia fazer como eles, rematar este trabalho com as mesmas palavras, mas sendo o 1º Autor da presente questão, não posso deixar de trazer à colação, novamente, a sentença proferida pela Meritíssima Juíza do Circulo de Lamego para demonstrar que «não há bela sem senão» por ela ter discorrido, opinado e decidido sobre matéria não inclusa na «petição inicial», o que está vedado, por lei, a qualquer juiz fazê-lo.
(continua)