“A autobiografia e o romance autobiográfico”por Gabriel Moreira Faulhaber
“A diferença na leitura recai então sobre o seguinte aspeto: na autobiografia o autor se expõe ao afirmar dizer a verdade sobre si mesmo, ao passo que no romance autobiográfico não temos essa afirmação. No romance autobiográfico, ficamos limitados ao texto, ao enunciado. Na autobiografia entra em jogo a enunciação, o sujeito que diz “eu” e afirma, a um só tempo, ser o autor e o narrador e dizer a verdade sobre si. Conclusão. O romance autobiográfico e autobiografia apesar de se aproximarem no que diz respeito a partirem de uma experiência vivida, se diferenciam com relação à receção, pois a partir do pacto firmado previamente pelo autor, temos modos de leitura distintos. (in “
https://www.ufjf.br/darandina/files/2012/09/A-autobiografia-e-romance-autobiográfico.pdf”
INTROITO
Sou do tempo em que, na Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, na cadeira de “HISTÓRIA DA CULTURA PORTUGUESA” (aue fiz com a nota agradável de 18 valores) os alunos eram convidados a fazer uma RECENSÃO CRÍTICA a uma das obras sugeridas pelo PROFESSOR, sem que cada estudante, tivesse aspirações de vir a ser crítico literário. Não fosse, mas ficaria com umas luzes.
E, claro está que, então como agora, nesse nosso trabalho académico, devíamos “situar a abordagem teórica do autor, inseri-lo numa determinada tradição, escola, paradigma ou perspetiva [já que] conhecida como resumo crítico, a recensão só pode ser elaborada por alguém com conhecimentos na área, pois a sua elaboração exige opinião formada. O recensor avalia a obra, sustentando as suas considerações e deve fundamentá-las, seja com evidências extraídas da própria obra ou de outras de que se valeu para elaborar a recensão”, tal como me recorda, agora mesmo, o iluminadíssimo SENHOR DOUTOR GOOGLE.
PRIMEIRA PARTE
Creio que uma abordagem destas, com mais ou menos proximidade aos cânones académicos, não está desconforme com as leituras que o Dr. Manuel Lima Bastos tem feito das obras de AQUILINO RIBEIRO, extraindo delas matéria bastante para, do velho fazer novo e, dessa maneira, contribuir saudável e louvavelmente, para a divulgação do NOME e OBRA deste escritor beirão de PRIMEIRA ÁGUA (mais falado do que lido, seguramente) mas sempre digno de, no critério dos nossos responsáveis pela CULTURA, merecer um lugar no PANTEÃO NACIONAL. Duvido, contudo, que, pelo que escreveu e fez, pelo halo espiritual e inteligente que as suas obras exalam, ele, jamais em vida sua, se imaginou a repousar dentro de uma IGREJA a fumar incenso, post mortem. E se é ponto assente que “os mortos mandam nos vivos” com as obrigações impostas nos itens testamentários, ou por via da arte (toda a arte) fazendo deles ( vivos) vassalos obedientes e servidores indefetíveis, enquanto admiradores, seguidores ou possuidores, neste caso são “os vivos que mandam nos mortos”.
Avante. Não cabe aqui lembrar os títulos (cerca de uma dezena deles) que o Dr. Manuel Lima Bastos pôs no mundo a partir de tais leituras e sobre os quais, neste meu recatado espaço online (sem que, jamais, me tenha sido solicitado) não regateei sinais de agrado, contentamento e divulgação, pois, também eu, à minha maneira, aquiliniano sou, como disse, em 2014, no texto que escrevi sobre o livro que Dr. Lima Bastos deu à luz nesse ano, cujo respigo se segue:
“Uma maneira rústica, muito nossa, de sermos aquilinianos, já que aquilinianos, se o adjetivo extravasar o sentido comum, há para todos os gostos: uns que leem, estudam, comentam e divulgam a obra do escritor; outros que simplesmente o leem e se encantam com as suas narrativas; outros que colecionam os seus livros e nunca os leram; outros que utilizam a sua obra como degraus na ascensão académica; outros que o citam ou parafraseiam; outros que vivem à sua sobra, tirando dela proveito e prestígio; outros que, repassando os seus livros por joeira de malha fina, mostram que tudo sabem sobre o autor e a obra, mas cheira a léguas que não se identificam com ele nem com a ruralidade quotidiana expressa em muitas delas; outros, como eu, que salivamos os frutos dessa grande árvore da nossa Floresta das Letras, que silabamos a sua escrita e não censuramos, nem omitimos o silabário revestido de erotismo, cheiro a sexo, ironia mordaz e denúncia da hipocrisia social do seu tempo, repúdio dos falsos valores éticos apregoados, mas não seguidos, para exemplo; outros que nunca o tendo lido, nem conhecido, com ele se identificam, como ele se mostram pessoas de carácter, de personalidade, «inteiriços como bárbaros». (cf. texto integral in “ http://www.trilhos-serranos.pt/index.php/cronicas/173-aquilino-ribeiro-mais-um-livro-de-manuel-lima-bastos.html”)
E, acrescento agora. Aquiliniano eu, que mais não seja pela minha maneira de ser e pensar, beirão assumido, conhecedor das gentes e costumes serranos (que vou pondo em letra a pino)e ter por verdadeiros e honestos os juízos daqueles académicos que, debruçados sobre alguns dos meus escritos, na sua honestidade intelectual, disseram, preto no branco (sem lhes ter sido pedido), que a minha escrita lhes “fazia lembrar AQUILINO E TORGA” e até FERNÃO LOPES no método de investigação. (cf. “Curriculum vitae” in “ http://www.trilhos-serranos.pt/index.php/memorias/681-curriculum-vitae-versao-actualizada-em-2017.html”).
Assim, em resumo, filigranas em «Ouro de Lei»:
A) - Drª MARGARIDA SOBRAL NETO (2000), professora da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, na cerimónia de lançamento do livro «Julgamento»,
“Esta surpreendente descrição do rio, hino à natureza que perpassa por muitas páginas da obra, fazendo lembrar Aquilino Ribeiro e Torga, condensa em si muito do conteúdo e mensagem profundos desta obra (...) Passado, presente e futuro são dimensões que se interligam num livro que não pode deixar ninguém indiferente (...) para além dos aspetos ficcionais e literários que comporta, é uma afirmação da identidade das gentes e dos espaços da serra do Montemuro».
B) Drª MARIA DA CONCEIÇÃO CAMPOS, (2001), professora, investigadora, ensaísta e escritora, na sessão de lançamento do livro «Mosteiro da Ermida»:
C) [Evocando Fernão Lopes] «E só depois dará a cada um o louvor e a repreensão que merece. É este o caminho conscienciosamente escolhido pelo autor do «Mosteiro da Ermida» (…) Exigente consigo na sua pesquisa infatigável, na salvaguarda da probidade histórica, no respeito pelos seus leitores, revela um acentuado perfil de empenhada honestidade. Abílio Pereira de Carvalho, professor de méritos e prémios, em certa passagem da sua obra nega-se a ir ao sabor da corrente; orgulha-se de ser esse desmancha-prazeres apontando a si mesmo uma «costumada irreverência». Não é porém um solitário, dialogando apenas com os documentos que compulsa e coteja em busca da versão mais plausível. A sua faceta solidária revela-se num estilo comunicativo, ainda ao jeito do pai da Historiografia Portuguesa que o leva a comungar com o leitor os seus sucessos e entusiasmos ou as suas apreensões e incertezas». (in Notícias de Castro Daire» nº 270 de 24 de Abril de 2002)
C) - PROFESSOR DOUTOR AMADEU CARVALHO HOMEM (1992), da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, reportando-se aos meus livros publicados, até à data:
« (...) O senhor Dr. Abílio Pereira de Carvalho revela-nos uma tão grande maturidade heurística e hermenêutica, um tão acerado amor à sua região, um tão feliz espírito de síntese histórica, uma postura tão digna de investigador sério que apenas deverei instar a gente moça de Castro Daire a aproveitar o melhor possível os seus préstimos e a sua destreza científica (...)» (in «Gazeta da Beira, nº 178 de 21 de Julho de 1992)
D) DR. FERNANDO AMARAL, (2004), advogado, ex-presidente da Assembleia da República, acerca do livro “Lendas de Cá, Coisas do Além», reportando-se à «Introdução» da obra feita pelo autor:
«Ela é reveladora dum perfil que se respeita e venera pela coragem duma sinceridade rara a esmaltar um carácter notável e uma inteligência lúcida. A límpida manifestação da sua verdade, inspirada pelos ditames duma consciência esclarecida, vertical, independente de preconceitos, não aceitando o colete das tradições, antes se abre ao apelo instante da liberdade, constitui um dos mais belos testemunhos que enriquecem o espaço da minha sensibilidade». (Carta ao autor, Lamego, Março de 2004).
E não respigo isto para aqui, agora, por presunção minha. Faço-o porque tais juízos, assinados por gente culta, da política e das letras, são em si mesmo cantoneiras de filigrana que dão consistência à moldura que estou carpinteirando toscamente, sem grosa nem polimento, nem vernizes de conveniência, enquanto lenhador que, de podão em punho, se entretém, se diverte e enriquece a abrir veredas na floresta das letras, conhecendo, divulgando e emoldurando o que de novo encontra no matagal.
SEGUNDA PARTE
Pois. O Dr. Manuel Lima Bastos (a quem uma só vez apertei a mão, num encontro que, a seu pedido, tivemos na PASTELARIA ACADÉMICA, em Castro Daire) conhecedor do meu “curriculum vitae” publicado na Internet, penetrando, mais uma vez, na extensa seara do Mestre Aquilino Ribeiro, prendou-me com mais um desses seus trabalhos, com o título “AQUILINO NO FEMININO”. Mais uma obra sua, só possível depois de, a passo curto e à mão cheia, ceifar, com o agrado, argúcia e a tenacidade que lhe são próprias, todas as odoríferas papoilas que nela encontrou dignas de, pela sua mão, voltarem ao mundo, serem vistas e ouvidas, e, dessa maneira, dar mais um dos seus prestimosos contributos à divulgação e conhecimento deste nosso tão qurerido e admirado escritor.
Recentemente (via correio eletrónico) ele deu-me conhecimento dessa sua última tarefa. Que a obra já estava no prelo e advertiu-me que ela seria o seu “CANTO DE CISNE” sobre AQUILINO. Mostrei, desde logo, o meu agrado e apreço por sabê-lo incansável romeiro em torno deste SANTO IMPOPULAR (impopular no sentido de ser pouco lido e muito menos festejado e cultuado pelo POVO) e retorqui que, mesmo que fosse o ÚLTIMO, ficaria sempre um CANTO no canto da prateleira de algumas bibliotecas, onde, seguramente, faria CORO com os demais livros (seus e de outros) bem acomodados (deitados ou a pino), dispostos a conduzirem os leitores a tempos recuados e a conviverem com os MORTOS (naturais e de ficção) como escrevi recentemente numa crónica, exatamente com o título BIBLIOTECA, cujo link lhe remeti.
E habituado às ofertas que ele gentil e generosamente sempre me fez dos seus trabalhos, à boa maneira popular serrana, avancei: “cá o espero, Dr., cá o espero!”
Cá esperei e cá chegou, exatamente no dia 26 de fevereiro, da parte da manhã.
É um livro de capa dura, sem badanas, com 276 páginas de miolo, formato 17x25. Recebido, visto e sopesado, apressei-me a acusar a receção por correio eletrónico, assim:
“Cá recebi a encomenda e, como de costume, palpei o livro, mirei-o, li a cordial e afetiva dedicatória, passei os olhos pelo texto da contracapa, desta vez DURA e sem badanas.
Mais não fiz. Desta vez, vou ferrar-lhe o dente mais vagarosamente (...)
Mas lerei com muito agrado, tanto mais que, por antecipação, já tenho nas narinas o perfume erótico que também eu deixei espalhado nos BOLETINS DA FUNDAÇÃO (nos anos 2006/2008) e no meu livro “O HOMEM DA NAVE, DEVOTO DE DIANA” (2015) inspirado naquelas páginas ÚNICAS do MESTRE, e naquele penedo de forma fálica, existente na Serra da Nave, cito:
“A matéria prestava-se a efabulação erótica, tão patente na obra do mestre, e eu logo me lembrei do gozo que me deu ser levado pela sua bendita mão até à Catedral de Córdova e, lá dentro, assumir o papel de Rafael e ouvir que «os cónegos da Catedral vivem na mais desenfreada luxúria, com mancebas e filhos à beira»; ver o D. Basílio Luna y Manrique, o arcebispo, trepar ao altar e gemer «contra o corpo pálido e amoroso de Santa Inês. E era todo um abraço lúbrico, cheio de fogo e de estímulos, àquele tronco sensual, de tão forte humanidade. Cingindo-o, afagando-o, transparecia nele o desespero de não poder animar com beijos e soluços o frio e incorruptível mármore. E a sua dor, como vendaval, estorcia-se contra a imagem, que o cobria dum olhar enigmático e radioso». (Catedral de Córdova). Logo me lembrei de, agarrado à bárbara mão de Aquilino, descer à residência do Padre Claro, mais obediente à companheira que ao Bispo, e ouvi-lo barafustar com o seu filho Isac, filho desnaturado, que lhe roubava o dinheiro, que lhe esvaziava o celeiro, «quarenta alqueires em dois meses», que lhe limpava a arca da ceveira, produtos que trocava por mulheres e sexo, que dava à Maria Amada, «mais corrida que os chinelos que traz calçados». (O Remorso). Logo me lembrei de ver Maria Benigna agarrada ao seu amado e confessar sentirem-se ambos espiados por um «antropopiteco de Cristo torcido no madeiro negro; deviam ver-nos e instigar-nos, adejando, é de crer, acima dos seus cofres funerários, os manes de Garret e João de Deus, poetas do amor; E de facto beijámo-nos sofregamente como nunca e nossas carnes se torceram dolorosas e insatisfeitas. Da bela catedral tão feminina nos colunelos, nos silhares de odalisca, na graça alada dos arcos, deve ter-se-nos propagado o frémito lúbrico. Deve, porque a minha alma saiu do templo ouvindo a mais voluptuosa melodia» (in «Maria Benigna»). Lembrei-me de tudo isto e de toda a toada semelhante que perpassa pelas páginas de «Andam Faunos pelos Bosques» e de «O Homem que matou o Diabo», sexo e erotismo a rodos em todas elas”.
Lá chegarei. Lá chegarei. Pois estou certo que nesta sua inédita abordagem (tal como eu) não foi indiferente a tão desinibido e inebriante perfume, lançado na atmosfera de uma sociedade hipócrita, espartilhada nos seus tabus sexuais. Essa que AQUILINO frontalmente combateu”.
Após o que, disse para os meus botões, como que adivinhando: eis mais um saboroso naco literário extraído do cozinhado original de Aquilino Ribeiro, confecionado agora, e mais uma vez, pelo Dr. Lima Bastos. Por certo muito amor, muito erotismo e sexo, muito galaroz, muito tagaté, muito pecado, muita fé, muito frade, muito cura e muito abade.
TERCEIRA PARTE
Com efeito, o Dr. Manuel Lima Bastos, useiro e vezeiro a saborear os manjares cozinhados pelo ímpar “CHEF BEIRÃO”, sentado à mesa, prato a transbordar, seguindo o método que utilizou nos seus anteriores trabalhos, respigo aqui, decalque ali, mais respigo além, mais decalque acolá, pedaços unidos, urdidos e caldeados em panela de quem tem senhorio da “culinária gourmet”, salpicados com pitadas oportunas de humor inteligente, ironia e comentários fundamentados - uma espécie de AQUILINO em diferido - desta vez o Dr. Lima Bastos, resolveu degustar os temperos femininos que o MESTRE usou na sua trajetória de vida. Uma abordagem diferente e necessária, bem distinta nos objetivos daqueloutra que, em tempos idos (já nem me lembro quando) ouvi numa palestra, em Viseu (no solar dos Vinhos do Dão) na qual, aí sim, uma senhora palestrante (cujo nome se me foi) falou mesmo, literalmente, da riqueza CULINÁRIA encontrada e extraída na/da obra do MESTRE.
Desta feita, o Dr. Manuel Lima Bastos, sem romper as botas nos tojos da SERRA DA NAVE, qual fidalgo sentado à mesa, a manejar habilmente o talher de prata, de vista e olfato apurados, deixou que o garfo e a faca perseguissem os juvenis e adultos passos amorosos do ESCRITOR e o perfume e o suor femininos, ingénuos ou de sensualidade rural e/ou citadina que, em volutas, fumegavam à sua frente a espicaçar-lhe a imaginação e o gosto, desafiando-o a romper caminhos não andados e a recrear, com marca sua, os ambientes narrativo-aquilinianos, nestes nossos tempos em que muito se “vê” e pouco se “lê”.
E nessa senda, o Dr. Lima Bastos, joeirando a obra (as obras), não tardou a respigar, sublinhar/decalcar a parte do todo e a trazer até nós os ingredientes que misturados estavam no cozinhado original. Dito de outra maneira: o Dr. Lima Bastos mostrou-nos as cores e os liços cruzados da trama, das teias saídas da inteligência, talento e arte do TECELÃO que, no seu labor e lavor, tem dado pano para mangas aos leitores, ledores, decalcadores, críticos literários e até aos que humildemente confessam que, para lerem e entenderem AQUILINO RIBEIRO, só com um dicionário ao lado.
E foi assim, biografando o autor, que ressuscitou os ambientes e as figuras femininas ficcionadas e reais, encontradas na obra de AQUILINO. Louvado seja. Estou seguro de sermos muito raros aqueles que atualmente ainda se deliciam a ouvir e a falar com o MESTRE. Por mim, advertido que estou por ele próprio, não me atrevo a extrair das suas obras literárias as biografias dos seus protagonistas ficcionados com certidão de idade autenticada com selo público e raso de tabelião encartado, sob pena de esvaziar de sentido o seu postulado:
“O romancista vai de indivíduo em indivíduo, como a abelha quando forrageia o pólen, e a um pede o físico, a outro a índole, a este uma anedota, aquele um pormenor característico, e assim amassa por aglutinação os seus figurantes. Feita a dosagem com inteligência e obtido um bom ajustamento, ninguém dirá aue não foram copiados do natural e que não falam. E o orgulho do criador estará em dar a ilusão de que são cópias exatas do mundo de carne e osso”. ( in PREFÁCIO do romance “VOLFRÂMIO”).
Aquilino Ribeiro dixit.
QUARTA PARTE
Dito isto, tinha de ser. Lá veio (algum do muito) perfume erótico feminino com que o MESTRE polvilhou as suas obras, aquele perfume que ele ousadamente aspergiu na atmosfera social, política, cultural e religiosa portuguesa - católica, apostólica romana - hipócrita, patriarcal e espartilhada por tabus morais e éticos que, no tocante a sexo, remontam aos tempos de Adão e Eva, muito mais longe do que os tempos do rei Vamba e dos turdetanos, celtas, iberos e lusitanos.
Estou em crer que ele - MESTRE - com senhorio da matéria carnal e afetiva, naquela sua frontalidade republicana, - inteiriço como um bárbaro - carregou nas tintas, por isso mesmo. Era bem preciso. O medo se ser excomungado nunca escorreu do aparo de aço para o papel. Ficou sempre abafado no tinteiro.
Galaroz, os tempos posteriores vieram a demonstrar que a mulher era mais do que “caça de altanaria”, fauna indispensável ao enredo amoroso do romance e da vida. Mas ela, a mulher, geral e eternamente objeto de cobiça, galanteio e prazer masculinos (às vezes amada) emancipou-se e aí está (nos romances e fora deles) a competir com o homem nas mais diversas profissões.
O Dr. Lima Bastos, nesta sua obra de fôlego (276 páginas), atendendo ao título “AQUILINO NO FEMININO”, transcrevendo, decalcando, refletindo e comentando inteligentemente a obra do MESTRE (em itálico e letra a pino), ficou-se aquém da minha espectativa, quiçá embebido que eu estava nos textos originais que lhe remeti, mal recebi o livro. E lembro: aquelas pinceladas da “Catedral de Córdova”, do “Remorso”, da “Maria Benigna” e o demais alor e calor femininos que perpassam pelas páginas de «Andam Faunos pelos Bosques» e de «O Homem que matou o Diabo», sobre erotismo e sexo.
Ficou aquém. E o título, “AQUILINO NO FEMININO”, repito, sugeria o manjar picante que o MESTRE cozinhou e serviu na lauta mesa da hipocrisia social que tanto combateu. Sem receio de excomunhão, repito. Eu esperava mais FEMININO e menos AQUILINO. E o Dr. Lima Bastos, conhecedor como é das ruas, ruelas e quelhos - quais “madrigueiras de raposas”, onde o biografado pôs pé em tempos sem iluminação elétrica, conhecedor de todos os andanhos, iniciado o labirinto, vai em frente, volta atrás, conta e reconta, sem dificuldade alguma, digamos de perna alçada, o que, nestes nossos tempos iluminados, encontrou nas eiras “Um Escritor Confessa-se”, “Lápides Partidas”, “Jardim das Tormentas”, “Cinco Reis de Gente”, “Uma Luz ao Longe”, “Via Sinuosa”, etc. etc. e, depois de joeirar a colheita da malhada, com praganas e tudo, concluiu que os “figurantes principais”, os malhadores de serviço, eram, todas eles, um só: o próprio AQUILINO em carne e osso. Eureca! “Quod erat demonstrandum”.
Pese embora essa minha insatisfação, li-o com muito gosto e bom proveito. Ele será guardado junto dos seus demais livros e, mesmo ao lado, na mesma estante, com a distância devida, ficará o meu livro “O HOMEM DA NAVE, DEVOTO DE DIANA” (2015), cuja evidente inspiração deixei referida supra.
Está, pois, mais rica a minha BIBLIOTECA, a mesma que referi em texto recente (disponivel in http://www.trilhos-serranos.pt/index.php/cronicas/1044-biblioteca.html ) no qual aludi à “vozeira de romaria ou de feira” emanada das estantes e prateleiras, só ouvida por quem gosta de livros. E não esqueci, sequer, o “rap...rap...rap...” da traça que, comendo e defecando a inteligência e arte dos autores, deixam, na sua trajetória de vida, aquela escrita cuneiforme, lavrada e vincada, que só conhece quem lê e folheia alfarrábios. Elas bem podem chamar as primas que se empanturram de madeira. E estas, a seu gosto e apetite, bem podem minar e fazer galerias na moldura que aqui deixo acabadinha de carpinteirar. Elas, no seu afã de mineiras malfazejas, bem podem reduzi-la a pó. Porém, em verdade vos digo, livres das suas mandíbulas ficarão, quiçá desconjuntadas e soltas, as cantoneiras de filigrana que lhe preguei em cada ângulo, as mesmas que, em tempos que lá vão, pessoas generosas, sem eu lhes ter pedido, com selo de honestidade intelectual, colaram aos meus despretensiosos trabalhos.
EPÍLOGO
Doravante, quando me puser a contemplar a biblioteca, sem vontade de ler nem escrever, deitado no sofá, ouvido tísico a escutar aquela “zoeira de romaria e de feira” - Torre de Babel – hei de estar atento ao sítio de onde me chega o gemido sensual e ardente da fogosa Estefânia e outras fêmeas cantadas por AQUILINO e, do mesmo autor, o gemido pecaminoso do arcebispo D. Basílio Luna y Manrique, na Catedral de Córdova, agarrado à fria estátua de Santa Inês. Parece-me que a traça dos livros passou algurtes por ali e silenciou luminosos raios de erotismo e sexo que Aquilino, no silêncio de missais e breviários, tão magistralmente nos deixou, sem medo de excomunhão.
Ah! E também não me escapará o escarcéu das diferentes ortografias nos livros impressos na LÍNGUA MATERNA desde os provençais aos atuais, quais tremores de terra e tsunamis que resultam do embate das placas tectónicas a mostrarem a vitalidade do planeta em que vivemos, sempre em mudança. E mal irá quando ele se tornar, morto, inerte, sem vida e sobreviver apenas como LENDA contada e ouvida noutro planeta a vaguear no Universo, como escreveu o meu filho mais novo Valter, em 1988, na idade da ESCOLA PRIMÁRIA. De seu título: “A LENDA DO PLANETA TERRA”.