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quinta, 22 maio 2014 12:47

AQUILINO RIBEIRO, MAIS UM LIVRO DE MANUEL DE LIMA BASTOS

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Nestes tempos de auto-estradas, vias rápidas e bólides de alta cilindrada, preferencialmente de marca alemã que atravessam o país em poucas horas (ainda anda no ar um certo aroma a troikas e baldroikas, a mercados, a mercancias e merklancias);  nestes tempos de esqueléticas mensagens de escrita e leitura rápidas, sem necessidade de papel, nem caneta, nem tinta; nestes tempos de «sms» nas quais as vogais «lastiram p’ra forates» e o K, nesta novel república digital voltou a ser rei, entronizado à revelia de qualquer Acordo Ortográfico (para gosto ou desgosto dos que, respectivamente, vêem a Língua Portuguesa viva ou fossilizada)  estava eu em sossego, estendido num sofá, em minha casa, em Fareja,  aldeia sita entre Viseu e Lamego, a reler «O Homem da Nave» de Aquilino Ribeiro e a degustar a descrição que ele faz da chegada a Lisboa da diligência onde viajaram o fidalgo de Tabosa, o ostrogodo Almeida de Vasconcelos, e o seu escriba, Padre José Aniceto, descrição que partilho com os meus leitores, para melhor juízo e paladar. Assim:


«(...) Lisboa, terra das naus, dos heróis, da Carta, dos mármores, das mulheres de perdição. Sodoma, Gomorra e Ninive juntas, estava a pouco mais dum galope de mulas (...) à entrada do Campo Grande, essa vastidão de tavolado, o padre proferiu, arregalando os olhos para o ostrogodo de Almeida e Vasconcelos:
-Caramba! Saímos apenas há quatro dias da pategónia, sim senhor! Ora conte Vossa Senhoria: terça, quarta, quinta, sexta menos ainda a alva da terça. Chama-se andar! O mundo por este caminho, esbarra-se, senhor Inácio, esbarra-se, que lho digo eu!». (pp. 285)

Romarigães1Estava eu, pois, como dizia, em sossego, deleitado com este retrato bem pouco católico que Aquilino nos deixou da cidade de Lisboa; estava eu a matutar no curto espaço de tempo que, segundo as palavras do clérigo, separava a pategónia da capital do reino; estava eu a atravessar o deserto na companhia de Abraão, a ver Sodoma e Gomorra em labaredas; estava eu metido na civilização assírio-caldaica, nas cidades de Babilónia e de Nínive, prestes a entrar nos barcos fenícios, ali ao lado, saídos de Sidon e de Tiro prontos a lavrarem o Mediterrâneo, a assentarem arraiais em Cartago e, metidos Atlântico em fora, mercadejarem vidraria, jóias, tecidos (púrpura), perfumes pelas urbes costeiras, entre as quais se conta, cá está, Lisboa; estava eu a concluir que as palavras embasbacadas do clérigo sobre a rapidez da chegada à capital não passavam de um pretexto para ele condenar a dissoluta vida lisboeta, alargando o conceito ao mundo e que o mundo «por aquele caminho se esbarrava», não pela velocidade, mas pelos exemplos de vida que fugiam aos varais cristãos; estava eu, em sossego, no remanso destas minhas cogitações e saudoso desses meus tempos de mocidade e de estudo, quando, trazido pelo carteiro, remetido por Manuel de Lima Bastos, me entrou caixa do correio dentro mais um livro seu, com o título «Regresso a Romarigães na sombra de Mestre Aquilino».

Grato pela oferta, acusei imediatamente, por e-mail, a sua recepção e logo fiz ver a este incansável e encartado aquiliniano (possuidor de diplomas com selo pendente e sinete lacrado de ilustres estudiosos e comentadores da obra produzida por Aquilino) que, face à minha ocupação de momento, me via pendurado no dilema: continuar a beber água de fonte original ou correr a saciar a sede em fonte nova, v.g. embrenhar-me no seu novo livro e,  sob o seu olhar, de forma abreviada, quiçá decalcada, «ler e tresler» Romarigães, dois em um, fusão a que Lima Bastos me habituou com o produto do seu labor.
Face ao dilema que lhe pus, com a mesma brevidade, só possível pelo uso das novas tecnologias actualmente em uso, ele me sossegou, aconselhando-me a prosseguir a leitura do Mestre, pois «se podemos falar com Deus, porque carga de água precisamos de conversar primeiro com os santos? Para mais, no caso deste seu amigo, com um santo carunchoso e com o físico em petição de miséria (...) Quando lhe der jeito ler o livrinho diga depois alguma coisa ao seu MLB». Ao que, de pronto, respondi, que sim senhor, daria «a minha opinião, por insignificante que seja, disso esteja certo (...) Se reparou nas páginas que citei de «O Homem da Nave» estou quase no fim. E dali deixarei Deus para ir falar com o Santo com todo o prazer e proveito». Pois decidido estava por mim, como é de meu jeito e vontade, que essa tarefa seria uma «rusga de rompe e rasga» até ao fim. Rima e é verdade.
Foi o que fiz. Logo que cheguei à ultima página de «O Homem da Nave» e me vi com umas tantas galinholas à cinta (tal é o assunto com que o autor remata a obra) peguei no «Regresso a Romarigães», medi-o de alto abaixo, dei uma mirada pela ilustração da capa,  li os textos que preenchem a contracapa e as badanas, v.g. as opiniões seleccionadas das personalidades que, como dão prova, ainda cultivam o gosto de lerem algo mais extenso do que as resumidas e  funcionais «sms» acima referidas, exigidas pela espumosa maré destes tempos, sem tempo. Ao todo são dezassete citações: 10 nas badanas e contracapa e mais 7 apensas no miolo.

Alguns desses estudiosos incluir-se-ão, seguramente, no grupo que, aqui, neste meu alqueve a que dei o nome de «trilhos serranos», que ora vou lavrando, ora vou deixando de pousio, em semeadura recente designei por aquilianos, assunto que trago a capítulo para comecilho de novelo, pois seguro estou de que bem enovelado será o escrito que, por deleite meu e agradecimento da oferta de MLB, se seguirá. De resto, ainda que sem o mesmo engenho e arte, sigo aqui o método deste meu amigo que, decalcando, enriquecendo e refrescando o ambientes, o sarcasmo, o estilo, a ironia e o léxico patentes nos textos de Aquilino, nunca perde o pretexto para, com sainete marcante, deixar na caminhada, aquilo que eu designei «rubras papoilas do seu sementio pessoal» e que ele, no listel inscrito na torça da entrada destas duas últimas obras alicerçadas na «Casa Grande de Romarigães», diz serem um  «glossário, das referências, expressões e vocábulos mais incomuns (...)  com comentários, notas e alguns devaneios» seus.

Prossigamos, pois nesta minha sarrabulhada, a qual garanto, à partida, que não será insípida, pois vai polvilhada dos temperos que, por feitio e paladar, mais ou menos picantes, uso nos meus cozinhados de letras. Há quem aprecie e há quem deprecie. Há quem me diga isso francamente e há quem, convenientemente, o silencie. Há quem veja nisso um estilo e há quem sardónica e simplesmente sorria: qual estilo, qual quê? Mas, isso pouco me importa. Na minha cozinha valorizo e uso os condimentos que entendo, que me dão prazer e até amargos de boca. Guio-me pelo meu paladar, independentemente de alguns pratos, a priori e, consabidamente, me trazerem azia certa. Mas não tenho emenda. Sou o que sou. E, parafraseando Aquilino, bem posso dizer: «eu sou a minha escrita», jamais condimentada com salamaleques, vénias e subserviências. Devo descender de algum escravo que obteve carta de alforria e está-me vincada no ADN a aversão a tais procedimentos e trejeitos.
Aí vai, pois, uma das minhas garfadas. Garfo de ferro, areado de fresco, cabo de madeira com arrebique rendilhado na frente, digamos que uma gola à Richelieu,  sou eu que sirvo. Quem abre a boca? Aconteceu na serra da Nave. O meu primo, Manuel Carvalho Soares, ironizando com o aspecto bizarro de um penedo que se nos deparou pela frente, conhecendo alguns escritos meus sobre Aquilino Ribeiro, lançou-me o repto:
Garfo
«Olha lá,  tens aqui o Bilhete de Identidade d' «O Homem da Nave», um dos «Avós dos Nossos Avós», aludindo a duas obras do Mestre e desafiando-me a escrever algo sobre o assunto, semelhantemente às crónicas que, em 2008, eu havia publicado no Boletim Trimestral da Fundação, com o nome do escritor, sedeada em Soutosa, graças ao seu filho Aníbal.
(...)
1 .Príapo-RedzAmbos caçadores encartados, a palmilhar seguramente os mesmos terrenos que, em vida, terão sido pisados pelo escritor, nós, que por convite e não por oferecimento, integrámos, por algum tempo, os órgãos sociais da Fundação Aquilino Ribeiro, nutrimos por este autor uma especial e natural simpatia e admiração.  E a sugestão que me foi feita para me embrenhar nos tempos míticos dos gigantes na companhia de alguns protagonistas humanos que Aquilino tão magistralmente retratou nos seus livros, era uma forma de lhe prestarmos uma homenagem, de lhe associarmos uma outra grandeza, de mostrarmos  mais uma vez, a sua relação com a serra, com o mundo campesino e ao seu interesse pelo estudo do passado, próximo e longínquo, até aos avós dos nossos avós. Homenagem que seria extensiva ao filho primogénito, Aníbal, que, numa atitude descentralizadora, ao invés dos políticos e intelectuais que, por todas as vias, entornam Portugal para o mar e para Lisboa, deixou o «bem bom» alfacinha e veio entocar-se e morrer em Soutosa, neste interior de couves tronchas,  quase desertificado, terras onde já nem os lobos uivam. Aqui, onde o pai montou a sua «banca de trabalho», quando os lobos uivavam, aqui, até se lhe esgotar parte do bornal e da cabacinha, na sua condição de romeiro na estrada de Santiago estelar, metafísica e terrena. Uma maneira rústica, muito nossa, de sermos aquilinianos, já que aquilinianos, se o adjectivo extravasar o sentido comum, há para todos os gostos: uns que lêem, estudam, comentam e divulgam a obra do escritor; outros que simplesmente o lêem e se encantam com as suas narrativas; outros que coleccionam os seus livros e nunca os leram; outros que utilizam a sua obra como degraus na ascensão académica; outros que o citam ou parafraseiam; outros que vivem à sua sobra, tirando dela proveito e prestígio; outros que, repassando os seus livros por joeira de malha fina, mostram que tudo sabem sobre o autor e a obra, mas cheira a léguas que não se identificam com ele nem com a ruralidade quotidiana expressa em muitas delas; outros, como eu, que salivamos os frutos dessa grande árvore da nossa Floresta das Letras, que silabamos a sua escrita  e não censuramos, nem omitimos o silabário revestido de erotismo, cheiro a sexo, ironia mordaz e denúncia da hipocrisia social do seu tempo, repúdio dos falsos valores éticos apregoados, mas não seguidos, para exemplo; outros que nunca o tendo lido, nem conhecido, com ele se identificam, como ele se mostram pessoas de carácter, de personalidade, «inteiriços como bárbaros». Não se deixam ir em modas, não se acomodam à hipocrisia social vigente em todos os tempos, rejeitam o «cultural e politicamente correctos» e tudo o mais que, em dita homenagem sua «
post mortem» os vivos fazem como lhes apraz, como entendem ou como lhes convém, em contraste flagrante com o pensamento que o autor verteu sobejamente nas obras que nos legou. E até um ledor desatento, pouco atreito a análise textual e a erudições académicas, descobre que a sua «alma» estrebucha para se libertar do templo onde, em nome da grandeza literária e dos valores culturais pátrios, a enclausuraram, ali, naquela igreja de Lisboa, onde a obrigam a respirar o incenso, sítio do qual se esforça almejadamente por escapar e poder esvoaçar livremente como a cotovia sobre as penedias das serras e dos bosques cheios  de faunos e mistérios a que ele deu vida com o aparo da sua caneta, qual fada, com a varinha mágica, a fazer e desfazer encantos e desencantos.
Feito o desafio pelo meu primo, assim de rompante, logo ali, junto daquele fuste, daquele tronco petrificado da ÁRVORE DA VIDA, ali lhe disse que sim, que mais não fosse para fazer pirraça aos críticos que pouco a pouco vão diluindo o carácter revolucionário e republicano do escritor, moldando-o à semelhança das imagens dos santos que idolatram, todos os domingos, nos altares dos templos que frequentam, cumprindo os preceitos catequéticos. Os mesmos que, nos escritos e em palestras, se inibem de falar de sexo e disfarçam ou ocultam a filiação de Aquilino, pois, sendo filho «natural» de padre, é filho do pecado.
 (...)»

 Publicado no meu site «trilhos serranos», em 19-11-2013, e com acolhimento no «Notícias de Castro Daire», de 10-12-2013 e na Revista de Viseu «Anim’Arte» nº 91, de Janeiro/Fevereiro/Março de 2014, portanto muito tempo antes de receber esta obra de MLB, escusado será dizer que lhe dei conhecimento dele,  enquadrando-o no contexto da regionalização versus centralização, este andaço crónico vindo de tempos remotos, essa maleita que resiste a mezinha antiga e a fármaco moderno, que, a olhos vistos e estatísticas publicadas fora do papel selado, tem despovoado grande parte de Portugal, qual tonel que, de tarraxa escancarada, esguicha o corpo e a alma do interior para a capital e terras do litoral, v.g. para um alguidar de bocarra desmedida onde, indistintamente, cai vinho e borra, cai trigo e joio. Dito de outra forma, é a desertificação do Portugal periférico, das terras santas e beatas, terras crentes e tementes a Deus e ao Demo. Dir-se-á que é o nosso destino, que é o nosso fado, e, consequentemente, fado e guitarradas só em Lisboa. Esqueço intencionalmente a emigração para franças e araganças. E deixo de fora a energia que este nosso Portugal interior e serrano sempre serviu aos mosteiros e casas fidalgas, sitas nas cidades, consumidoras do carvão, achas, lenhas e gravetos produzidos nos montes, tal como hoje acontece com a energia eólica e com o graveto que vai saindo das autarquias para manter aceso o lume que urge não deixar apagar, ainda que nem todo esse graveto traga de retorno ao interior o aquecimento esperado e devido e desejado.
Na curta troca de e-mails que fizemos, dei conhecimento a MLB de que, face ao dilema posto,  optei por seguir o seu conselho e continuei as minhas leituras do Mestre. Só depois me meteria seara dentro, onde, como lhe disse, não deixaria de encontrar a «rubra papoila de seu sementio pessoal que, redundante é dizê-lo, muito aprecio».

Não me desiludiu. E ele há coincidências levadas de breca. Então não é que, quando recebi esta obra de MLB (a sexta da série) estava eu, como o leitor já sabe, levado pela mão de Aquilino, a chegar a Lisboa na companhia do Padre José Aniceto e do Fidalgo de Tabosa, Almeida de Vasconcelos: «Lisboa, Sodoma, Gomorra e Ninive juntas». O leitor lembra-se? E lembra-se também das minhas palavras sobre o centralismo político-administrativo, esse alguidar de bocarra aberta a engolir tudo o que ali desagua ido do interior do país: gente, energia, carvão, graveto, arre Diabo, ele há cada coisa! Pois bem, olhem a primeira «papoila do sementio pessoal» de MLB que, pelo colorido, destaco da seara onde penetrei, tente não caias, tal como fazia em menino à busca de cornelho, desse fungo maligno, cancro de grão de centeio ou de trigo, comprado por bicheiros e trapeiros que, de regresso à vila mais próxima, vendiam às boticas para ali, nos almofarizes e quejandos, se fazerem mezinhas da época. Palavras suas:

«Confesso que no decurso destes últimos anos se me foi arraigando uma visceral antipatia pela urbe, isto para não lhe chamar aversão, embora deva esclarecer que o motivo que me força a detestar cordialmente a cidade capital deste mal-aventurado país reside no facto de ai se encontrarem domiciliados todos os poderes legais de coerção e até de outros que provavelmente pouco ou nada devem à estrita legalidade, quanto mais à simples e rotineira observância das regras morais básicas do relacionamento humano.
Há muito que considero esta desabusada centralização como um dos mais graves problemas que desgraçam a casa portuguesa porque, para tudo e para nada, obriga-se o provinciano a peregrinar até Lisboa para obter graça ou despacho de qualquer bugiaria insignificante. Para tal exige-se ao peticionário que ponha a estamenha do condenado, ou vista os farrapos de pedinte, ou envergue a roupeta de religioso, ou ostente a fardamenta militar, ou exiba o farricoco com as insígnias do partido no poder, ou que se cubra com o chapéu do burocrata à espera que lhe caia o óbolo na mão suplicante». ( pp. 23-24)

Mais bem escrito sobre os pecados da centralização não podia ser. É isso mesmo. E porque penso e sinto tal qual, tenho inveja de não ter sido eu a pôr em letra redonda esta pérola crítica. Esta e outras que só não transcrevo para evitar que esta minha crónica fique demasiadamente rubra, já que outra é a minha cor preferida: o verde. Mas quero acrescentar o seguinte à pérola transcrita: uns vão para lá para poderem viver e outros são obrigados a viver lá, depois de mortos. Sim, sim, depois desta opinião de MLB, expressa em vida, quem terá coragem de, depois de morto, o obrigar a viver nessa «Lisboa, terra das naus, dos heróis, da Carta, dos mármores, das mulheres de perdição. Sodoma, Gomorra e Ninive juntas»? É caso para todos aquilinianos pensarem no porquê de eu trazer a capítulo esta matéria do centralismo, inclusive MLB, cuja obra muito prezo, não só pelo seu valor intrínseco, mas também pelos nobres objectivos que visa: dar a conhecer e divulgar AQUILINO, O MESTRE. E não me conto naqueles que, segundo ele próprio diz, o vêem a andar pelas terras do demo a «mostrar presépios e o teatro de fantoches que o mais emérito prosador da língua portuguesa levou uma vida inteira a erguer». (pp. 151)

Mas há mais. Vejam a maestria com que MLB usufrui da sombra do Mestre Aquilino e, de forma resumida, à laia de um advogado que, treinado na barra dos tribunais, dita para a acta, em discurso indirecto, o testemunho das testemunhas e, como que impregnado pela marca breve dos tempos, serve aos seus leitores e amigos o saboroso prato confeccionado por aquele que pontificou na «culinária das letras portuguesas»  muito antes de ser inventada a editora «SOPA DE LETRAS».
Espiolhando o romance, a olho nu ou de lupa na mão, seguindo a narrativa a seu gosto e jeito, ele se interpela, ele se interroga, não só sobre o significado das palavras «menos comuns», mas também sobre os nomes das personagens que  lhe dão vida. Desta feita é sobre S. Simeão Estilita, o «Velho» e o «Novo», dado serem dois. Ambos pertenceram ao grupo de eremitas que, diferentemente dos cenobitas, estes agregados em pequenas comunidades, eles resolveram viver solitários, longe do mundo e, para estarem mais perto de Deus, empoleiraram-se em altas colunas, alimentando-se de gafanhotos e tudo o mais que passasse ao alcance das suas manápulas esqueléticas e beatas. E quem come, faz o resto. E é neste detalhe, de resto, que o Diabo tenta MLB e lhe bota na mão mais uma «papoila do seu sementio pessoal».
Alimentando-se os eremitas de gafanhotos, forçoso era que as suas fezes tivessem a «aparência translúcida da cera das abelhas e à medida que escorriam pela coluna abaixo formavam longas estalactites do feitio enovelado», facto que, num relâmpago, ilumina o pensamento de MLB para nos sugerir que, face a tão edificantes biografias, essa prática poderia servir de:

 «critério rigoroso na escolha dos cidadãos que almejam exercer funções governativas, qual seja de serem obrigados a tirocinar para a função empoleirados em cima de uma coluna durante doze meses, renováveis por mais seis meses em caso de dúvida razoável, alimentando-se obrigatoriamente à base de gafanhotos e outros insectos da família dos ortópteros. Se as respectivas fezes apresentarem à vista desarmada o inconfundível aspecto translúcido e ceroso, todo o eleitorado de certo vai bradar una voce: é santo, é santo, já para o governo. Se pelo contrário os dejectos do candidato tiverem aspecto e aroma próprios de quem, à sorrelfa, se banqueteia com caldo de couve galega e tripas à moda do Porto – ou bacalhau com todos – como prato principal e lambe à sobremesa ladrilhos de marmelada, então nenhuma dúvida subsiste de que o tirocinante não se encontra capacitado para o cargo e o veredicto popular por força haverá de declarar: fora com ele que é ladrão!» (pp. 62-63)

Romarigães-2E aqui, para melhor percepção da imagem das estalactites a escorregaram coluna abaixo, ainda que tal não fosse preciso para realçar a cor e o cheiro,  eu adito à crónica um vídeo que fiz em Cujó e alojei no Youtube, em  24-05-2013, bem longe de pensar que ele podia servir de ilustração visual e sonora a este texto de MLB.  Basta clicar no link «http://youtu.be/nojpn8qI9NY». Não verá eremitas a tentarem subir ao céu encavalitados nas colunas predecessoras dos actuais foguetões lançados do Cabo Canaveral, mas verá passarinhos, escondidos num cipreste, alçarem o traseiro e, «ppff», aliviarem os intestinos para fora do ninho, preocupados em mantê-lo limpo, até que, metidos no seu natural fraque festivo, se ponham a rasgar o céu voando, ou, trepando de pernada em pernada cheguem à cruita do cipreste que lhes serviu de morada e, dali, bico virado ao céu, cantem o seu mavioso gregoriano, obrigando anjos, querubins e serafins a escutá-los, tal como escutaram as preces e orações dos solitários estilitas, seráficos e de mãos postas.

Lá mais para a frente apareceu-me Mumadona Dias. Se Aquilino se refere a ela,  há que saber quem foi, pois então. Aprender até morrer. E às pesquisas de MLB sobre esta senhora, se juntaram as minhas memórias da Faculdade de Letras, dos amigos, companheiros de estudos, formação de Portugal e todos os heróis e santos que tivemos de meter na cachimónia.
São assim os livros. Levam-nos a caminhos esquecidos, lembrados, cruzados. E nesse deambular por estradas, veredas e trilhos, próximos ou longínquos, voltamos ao princípio. Ler e divulgar Aquilino Ribeiro nos tempos que correm, nos tempos das abreviadas «sms» escritas com o polegar; ler e divulgar a obra de Aquilino nestes tempos de consulta rápida no Google e, num ai, se faz «copy/paste» do assunto investigado;  ler e divulgar Aquilino como o faz MLB e uns tantos/poucos, é obra de apaixonados, de homens de outros tempos, dos homens do meu tempo. E nós, sem estatística científica atestada em papel selado,  seremos, quando muito, duas grosas deles. Os tempos mudaram e com os tempos mudaram os gostos culturais e as formas de passar o tempo. São poucos, e nunca foram muitos, aqueles que ferraram o dente na obra do Mestre. Ele próprio o dizia, seguro dos gostos dos seus pares e do analfabetismo que grassava no país quando escrevia. E o tempo dos milagres e dos «serões da província» (para lembrar o título de outro lenhador na floresta das letras pátrias) já lá vão.
Louvo o trabalho, o empenho, o ânimo e os objectivos de MLB e dou por bem empregue o graveto despendido pela Câmara Municipal de Sernancelhe, patrocinando o produto do seu labor. Daqui, da Pategónia (há quem pense e diga Bimbolândia, designação mais actual e mordaz), eu  o  acompanho no desejo que formula de, lá para o ano 2057, o seu trabalho feito ao «estilo dos glosadores monásticos medievais» tenha levado mais «grosa e meia de leitores» a gostarem de Aquilino. Aplaudo-o. Bato-lhe palmas e despeço-me dele, respeitosamente, repetindo o que já lhe disse em crónica anterior: foi um prazer tê-lo por companhia. Apareça sempre. Na companhia de quem vem, será sempre bem recebido em minha casa.

Abílio Pereira de Carvalho/Maio/2014

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.