Trilhos Serranos

Está em... Início História DENSÍMETRO LAGAREIRO
quarta, 22 maio 2019 07:14

DENSÍMETRO LAGAREIRO

Escrito por 

UMA PALHA E UMA AZEITONA

“Mas a juntar-se a tudo isto, eis a delicadeza de um “densímetro” artesanal feito com uma palha de 30 ou 40 centímetros de comprimento espetada numa azeitona. Peça singular, ei-la pronta a ser mergulhada na “tarefa” e informar o lagareiro da linha que separa a água do azeite. O azeite e o azinagre. Metida na vertical, vai abaixo, vem acima e, finalmente,  estabiliza a boiar por baixo do azeite e “em riba da áuga”. (CARVALHO, 1995, «Castro Daire, Indústria, Técnica e Cultura», pp. 214)

animal Neste ano de 2019, andando eu pela serra fora, no encalço dos “POÇANHEIROS”, essas pedras furadas, com semanas de trabalho e arte incorporados, muita martelada de marra e de maceta com incontáveis dentadas de broca e de ponteiro, colocadas nas embocaduras de algumas minas para estancar a água, ou numa das bandas de qualquer tanque ou poça de leira ou de lameiro, por forma a permitirem o esvaziamento automático da água estancada, levou-me a revisitar trabalhos de investigação passados, nomeadamente aqueles que se reportaram aos moinhos hidráulicos e azenhas de azeite de tração animal e/ou energia hidráulica.

E foi assim que “azangando” muros de vedação e muros de socalco, subindo lameiros inclinados enroupados de espesso feno verde,  aqui e ali arranhado por silvas e arbustos agressivos que vão conquistando espaços que já foram de granjeio e pasto, os elementos naturais, à falta de gente, vão dominando e reconstituindo, à tripa forrra, o seu império original. Acabado o passeio, atingido o meu objetivo, apresentei em vídeo o moinho do Sobrado, no sítio da Mãe de Água, moinho esse de cubo vertical primitivo, apresentei a azenha de Ribas e, bem assim, a azenha do Casal, em Reriz.

HidráulicaEu já em 1995, no meu livro “Castro Daire, Indústria, Técnica e Cultura”, cujo conteúdo resultou do gozo da minha licença sabática, enquanto professor que era na Escola Preparatória de Castro Daire, deixei bem patente a impressão que me causou um utensílio que, dada a sua delicadeza e leveza, contrastava com a parafernália dos equipamentos rústicos e pesados que, no seu conjunto, constituíam as azenhas, a saber: o pio e as galgas do moinho, mais todas as peças que o faziam girar, a roda motriz, a roda de entrosga e a roda central, todas de madeira e “tornos” desencontrados, na horizontal e na vertical, a servirem de dentes de engrenagem.

E a juntar-se ao moinho, o peso e a robustez das varas, do fuso de madeira lavrado em forma de parafuso com a sua base de granito, mais todos os recipientes afins, a sertã, as talhas e o sangradouro que expurgava o azinagre para fora do edifício e, segundo alguma tradição oral, era consolo dos lobos que rondavam por perto.

Dedilhando o teclado do primeiro computador que entrou na FAMÍLIA, de marca «Schneider» com o programa «Microsoft Works» e sistema operativo MS-DOS, 3.3 (12 disquetes ao todo, hoje verdadeiras peças de museu),  bem como o editor básico de imagem Paintbrush, conjunto de ferramentas destinadas a serem usadas pelos meus dois filhos (nos anos 80/90  do século passado o futuro passava pela informática e o jovem que vemos mais abaixo, neste texto,  é o meu filho mais velho, Nuro, atualmente engenheiro informático), nessas ferramentas dizia eu,  me iniciei também adquirindo saberes e técnicas que nunca mais deixei de desenvolver e me levaram a gastar já muito dinheiro para me manter sempre actuaizado e a acompanhar a rotação do mundo.

1995-PARADA-TALHASExperimentado em tal arte, permiti-me fazer as figuras que ilustram esse meu o livro, as mesmas que hoje aqui apresento, mais acima. Não sem que, com o peso dos anos às costas, me pergunte, 24 anos depois,  quanta paciência, quanto tempo e que artes foram as minhas para fazer tudo isto. Só mesmo o empenho de aprender e dar a conhecer algo que tinha passado há HISTÓRIA, mas que, resistindo aos dentes das térmitas e do tempo, ali estava a merecer estudo e divulgação, genuinas peças arqueológicas da nossa INDÚSTRIA MOAGEIRA E LAGAREIRA. Espaços de trabalho, de técnica, de convívio, de entretenimento, de invenção e de cultura. Lembro que peças de teatro foram ensaiadas naqueles espaços e levadas ao palco. Lembro o celebérrimo «bacalhau à lagareiro» que teve nesses mal iluminados locais de convívio e de trabalho as suas origens. Cozinhado e saboreado nesses espaços rurais, lúgubres e de pouca luz, assumiu foros de urbanidade, de citadino e é hoje consumido nos mais iluminados restaurantes sobre alvas toalhas de linho ou similares.

 

1990O-nuroE vem a talhe de foice lembrar que, na execução dos desenhos, do pisão, do moinho hidráulico e  das azenhas que ilustram esse meu livro (e deixo mais acima, agora,) valeu-me a aprendizagem que fiz num CURSO NOTURNO que não figura no meu «curriculum vitae» académico e  público. Aqui o digo pela primeira vez, respondendo à curiosidade e espanto dos meus filhos que tanto se admiravam, naquela sua idade, de ver o pai, movimentando um simples «rato» de computador, produzir tais obras, sem caneta, nem papel, nem tinta. Foi isso. É que, para tal, dei por bem empregadas as horas da noite que, no longínquo ano de 1962, em Lourenço Marques, lá no outro hemisfério,  passei debruçado sobre um estirador colocado numa das salas de aulas do  INSTITUTO VICTOR RIBEIRO, na Av. Pinheiro Chagas. De régua e compasso na mão, aprendi a desenhar plantas, alçados e cortes de prédios, fossem eles moradias térreas ou edifícios com andares sobranceiros às demais construções urbanas. A transferência de Lourenço Marques para Tete, fez-me interromper o curso. Parti dali sem qualquer DIPLOMA, mas o saber foi comigo, acompanhou-me durante a vida inteira, passou do himisfério sul para o himisfério norte, ultrapassou o Equador,  e veio a ser-me muito útil em 1995 na elaboração destas ilustrações. O «saber não ocupa espaço», diz o ditado antigo,  e aqui fica a prova disso.

E dito isto, aqui chegado, é como se o “criminoso voltasse ao local do crime”. 

DENSÍMETRO LAGAREIROSe em 1995, munido de máquina de fotografia e um computador em casa (hoje peça de museu), deixei em livro o fruto da minha pesquisa. Em 2019, apetrechado com outros equipamentos mais sofisticados, fui revisitar duas dessas azenhas e decidi-me levá-las ao mundo através da Internet. E, de posse de novas tecnologias e novos meios de comunicação, imperioso se tornava dar protagonismo à minúscula peça que tanto me sensibilizou, na altura. É que, passados tantos anos, com tanto saber e informação disponíveis, procurei e não  encontrei tal «coisa» descrita, nem explicada pelo diligente e sabedor Dr. Google, essa ressurgente figura com foros de humanidade, que tem resposta para tudo, que ensina crianças e adultos, intelectuais e analfabetos, políticos e quejandos, que tira todas as dúvidas aos mais curiosos e/ou céticos. Trata-se da tão imaginativa e indispensável peça de lagar que assume o papel de “densímetro” feito simplesmente com uma  “palha e uma azeitona”.

Impressionado que fiquei, face à sua delicadeza, produto da imaginação e inteligência humanas, resolvi fazer uma experiência doméstica, cuja demonstração fixei em vídeo que alojei no Youtube para onde remeto, no fim deste texto, onde deixo o respetivo link

FUSO-RECORTADOÉ uma espécie de homenagem que faço a todos os lagareiros de outrora, espalhados por este Portugal enfora, junto de um qualquer ribeiro, onde a água a esguichar de uma caleira, de pedra ou de madeira,  fizesse girar a roda motriz exterior ao edifício e esta transmitisse o movimento a todo o engenho interno.

E, à falta de energia hidráulica, uma azenha sita numa qualquer aldeia, o moinho a rodar à força de uma animal, com um jugo-tamão assente na molhelha e ele, olhos vendados para não dar em louco (por norma uma vaca) dava voltas sem fim, enquanto as azeitonas se transformavam em bagaço, em pasta,  para depois serem prensadas em seiras, sobre a sertã, calcadas pela vara, à força de braço humano que, com uma panca, fazia girar e penetrar o fuso na concha embutida num dos extremos da vara. 

Enfim. Acabada a safra, azeite recolhido em vasinhas apropriadas, ei-lo  transportado em odres e vendido ou consumido, conforme as conveniências da vida dos proprietários, dos consumidores e dos almocreves.

As imagens que aqui deixo, lado a lado, do fuso e sua base de granito, mais o “densímetro” feito de uma palha e de uma azeitona (somente iguais em altura para acomodação da imagemainda hoje me impressionam. Sempre admirei a inteligência, a imaginação e criatividade humanas. Revisitar estes meus caminhos andados e não enaltecer esta peça pequenina que, pelo tamanho e função, passa despercebida a muitos investigadores e até demonstrações, atuais e pertinentes,  ligadas a essa indústria do passado, era, para mim, um erro imperdoável. 

Deixei a sua referência em 1995 com as palavras que abrem este texto.. E, em 2019, aqui o deixo, lado a lado com fuso. Na composição fotográfica feita em computador eles são iguais em altura somente pelas razões expostas. Mas o leitor, que não é destituído de inteligência e de imaginação, como todo o ser humano sadio, facilmente calcula o peso e a manipulação de cada um deles. Faça favor.

Link do DENSÍMETRO

 https://youtu.be/PGLxf5GDOE0

Ler 1345 vezes
Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.