E disse também que «o estilo não se remonta sublime, nem se abate rasteiro: é natural sem embaraço, corrente sem tropeço, formoso sem artifício; é crespo sem aspereza; grave sem arrogância; fecundo sem demasia; alegre sem indecência; eloquente sem pompa: discreto sem afectação». Foi, portanto, neste estilo «formoso, sem aspereza, sem arrogância e decente» que Manuel Bernardes comparou a mulher a uma «nau», que falou sobre ela e dos seus adornos, semelhando-a ao «Mundo». E todo o mundo fornecia os produtos com que ela se embelezava e ostentava luxúria e vaidade. E para desenvolver a sua argumentação depois de decalcar o Profeta Isaías, como já vimos, enunciou a proveniência dos mil produtos que abarrotavam a «nau» de que falava. Assim:
«Dos reinos do Decão e Bisnagar e de Colocondá, na Índia Oriental, leva esta diamantes; dos reinos de Pegu e da cidade de Calecut e da Ilha de Ceilão, safiras; do Seio Pérsico entre Ormuz e o Bassorá, da Samatra ou Taprobana, da ilha de Bornéo e em Europa, de Escócia, Silézia e Boémia, leva pérolas; do porto de Jusfar, na Pérsia, leva aljôfar (que daí se derivou este nome); da cidade de Siene, no Egipto superior e do mar Tirreno, leva os corais, que se desterraram já dos rosários e braceletes, ainda se admitem em brinquinhos e verónicas; dos campos de Pisa e dos Montes Alpes, leva cristais; do mar da Suévia e de Lubeca, leva alambres, que são de fabulosas lágrimas da Irmã de Faetone, choradas solenemente cada ano pela sua desgraça; dos reinos do Monomotapa e Sofala na Cafraria e da região de S. Paulo na nossa América, leva outro; do Cerro do Patosi, nas conquistas del-Rei Católico, leva prata; da Alemanha, os camafeus; de Moscóvia, as zebelinas e martas e do Palatinado as mais aperfeiçoadas; da Helvécia, região dos Suizaros, os arminhos; do Brasil, os saguins para manguitos; e os coquilhos para contas; da cidade de Tiro, em Fenícia, a púrpura; da Serra da Arrábida grã; de Portugal e Castela a cor; de Veneza e Holanda, os espelhos; de Provença e de Roma, a pomadas para fazer as mãos macias e cheirosas; de Córdova e Hungria ao menos a receitas para as águas odoríferas destes nomes; das Índias de Castela a Almeida e óleo dela para as mães; de Tunquem o almíscar; do Maranhão e Seará, o âmbar; de Angola, Guiné e Cabo Verde, a algália; das nossas Índias o calabunco e aguila, os canequins e paninhos de coco e os toribios; da Africas, penas dos avestruzes para os cocares de plumas; da China os lós, os leques e as chitas; de Granada os tafetás; da Flandres, as rendas; da cidade de Cambraia, as teias finíssimas e candidissímas que têm este nome; de Guimarães, as linhas; de Leão, de França., as primaveras; de Modaba, na Pérsia e de Itália, as telas; da mesma Itália, os damascos; de Florença, Génova e Nápoles, os chamelotes; de França, as luvas, os sinais para o rosto e também os leques, uns maiores para o Verão, outros mais pequenos para o lar no tempo de Inverno; de Inglaterra as meias, fitas e relojinhos de algibeira; da Arábia, a goma, que também serve ofício neste mundo; da Batalha, os azeviches, para dar figas aos maus olhos».
Um autêntico tratado de geografia comercial, ou então, nas palavras do censor uma autêntica «livraria». Eis, pois, os produtos e lugares da terra onde a «nau» se ia abastecer. Digamos que não há cantinho do Mundo, continentes e cidades, das mais conhecidas e próximas, às mais distantes e exóticas, que não desse o seu contributo à carga. Só que o Padre Manuel Bernardes não se vai ficar pelos produtos da terra. A «nau», isto é a mulher, ou seja o objecto das suas preocupações cívicas e morais, vai estender-se também ao mar. E ele assim fala:
«Que mais é? É necessário que concorra também o mar, não só com as suas ostras que se esbulhem das pérolas, senão também com as tartarugas que desarmem as costas para pentes e cofrinhos e com as baleias que empenhem as barbas para sair um justilho ou prepõem, bem desarrugado; são necessários de várias partes vários materiais para bucetas, escritorinhos, baús, guarda-roupas, para recolher nos camarins e escaparates este mundo abreviado; são necessários vidrinhos e garrafinhas e rodomas e bucetas, curiosa e ricamente forradas para toda a farmacopólia de ingredientes líquidos e secos, simples e confeccionados que servem de estender o dia da formosura, quando já vem caindo maiores as sombras dos altos montes da anosidade e de dizer na cara ao desengano, que mente. Que mais? São necessárias até as nuvens do Céu para a primeira água de Maio que opinaram, fazia o carão lustroso; são necessários, arte, os mortos para as cabeleiras, se as não quiser o luxo antes tiradas das entranhas dos bichos, fazendo-as de seda. Estava para dizer que são necessários até os demónios, porque assim como a mão de Deus ajudou (como diz o texto sagrado) a formosura de Judite porque se ordenava a intento santo e de sua glória: «cui etiam Dominus contulit splendorem, quoniam omnis ista compósito, non ex libidine, sede x virtute procedebat», assim tenho para mim que sem a mão do demónio não poderá o apetite humano inventar er diposr e aplicar tanta vaidade e curiosidade.
Enfim, eu me acho cansado de peregrinar por este mundo imundo, como lhe chamou Tertuliano. Dizei-me agora a Caio Ópio que chegue a bordo desta nau com a sua premacia; verá com que salva de artilharia o recebe; dizei ás rendas do morgado mais Atlante que sustentem este mundo. A mulher prudente, sisuda e amiga da sua casa é comparada por Salomão à nau mercantil; porém não, que de longe traz pão: «facta est quasi navis institoris de longe portans panem suum»; mas a mulher vã e amiga de enfeites e galas é nau que de longe traz a fome, porque a todas as partes do mundo faz desembolsos. Aquela o pão que traz é seu: «panem suum», porque sobre ser bem ganhado é bem conservado; esta a fome que traz é sua e de seus filhos e criados e servos, porque quanto se põe no supérfluo, tanto se tira ao necessário. Recolhendo-nos agora ao nosso principal ponto donde saímos, pergunto: para que é necessário a uma mulher todo este mundo? Para parecer formosa. Concedamos-lhe que o parece; e ainda mais, que o é: que não é pouco barato, pois sabemos com S. Gregório Nazianzeno, que aquilo não é rosto, senão máscara: «non fácies, sed personas»; bem sabemos com Propércio que daquelas formosuras se mercam nas lojas e tendas e boticas e talvez para deitar a perder o natural:
«Naturaeque decus mercato perdere vultu».
E com Ovídio, que o menos que ali há naquele composto é a mesma pessoa porque quasi se sumiu entre tantos atavios sobrepostos:
«Auserimur cultu; gemmis, auroque teguntur omnina: pars mínima est ipsa puela sui».
Que tira ela, enfim, em ser formosa? Vaidade. Não mais nada. Tira também enfermidades de corpo, perigo da alma, enfados, murmurações e depois tanto em penas do outro mundo, quanto este lhe deu em glórias: com uma diferença entre outras muitas: que as glórias foram falsas e as penas serão verdadeiras. Poisa não pudera esta mulher com quatro lágrimas choradas debaixo do seu manto com um crucifixo diante dos olhos em lugar de espelho e com amar a verdade, que é a lei de Deus, deixando-se ajudar da sua graça; não pudera, digo, deste modo mais fácil, mais útil, mais honesto e deleitoso ser formosa nos olhos de Deus? Pudera e na mesma Pelágia temos o exemplo cuja alma, depois de convertida, viu o mesmo S. Noono em figura de uma candidíssima pomba, vendo-a de antes sórdida e feia».
E fiquemo-nos por aqui, mesmo que o texto que transcrevi continue por mais algumas páginas no estilo anunciado pelo censor do Santo Ofício, isto é, estilo formoso, sem aspereza, sem arrogância e decente. Estamos na presença de uma autêntica peça arrancada do campo arqueológico do pensamento e dos valores. Aqueles que, desde o Profeta Isaías, moldaram, durante séculos, a mentalidade de gerações sucessivas no que respeita à mulher e ao seu papel na sociedade.
Trazê-lo à Internet, no princípio do século XXI, o tempora! o mores! na sequência das demais crónicas que deixei sobre a «Nova Floresta ou Silva», livro negrinho de fumo, que andou pelas lareiras e copeiras da minha terra natal, ali, onde me ensinaram a ser homem, mais não viso do que continuar um trabalho que comecei há muito tempo em torno de uma pergunta que me fiz a mim próprio: «Quem sou eu?». A resposta a tal pergunta, tentada no diálogo ficcionado que Lusozé manteve com a divindade «Paivatea», nas margens do rio Paiva, poderá o leitor(a) vê-la na série numerada de artigos publicados neste site com o título «Transforma-se o Herdador na cousa herdada?»
Abílio Pereira de Carvalho
Migrado, hoje mesmo do meu velho site «.com» para este «.pt»
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