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terça, 26 junho 2018 09:47

TRANSFORMA-SE O HERDADOR NA COUSA HERDADA (2)

Escrito por 

CUJÓ: RETALHOS DE HISTÓRIA - VIII

O censor do Santo Ofício que deu parecer favorável à impressão da «Nova Floresta ou Silva», como já vimos em crónica anterior, disse que não se tratava apenas de «um livro», mas de uma «livraria».

 

 

E disse também que «o estilo não se remonta sublime, nem se abate rasteiro: é natural sem embaraço, corrente sem tropeço, formoso sem artifício; é crespo sem aspereza; grave sem arrogância; fecundo sem demasia; alegre sem indecência; eloquente sem pompa:  discreto sem afectação».
Foi, portanto, neste estilo «formoso, sem aspereza, sem arrogância e decente» que Manuel Bernardes comparou a mulher a uma «nau», que falou sobre ela e dos seus adornos, semelhando-a ao «Mundo». E todo o mundo fornecia os produtos com que ela se embelezava e ostentava luxúria e vaidade. E para desenvolver a sua argumentação depois de decalcar o Profeta Isaías, como já vimos, enunciou a proveniência dos mil produtos que abarrotavam a «nau» de que falava. Assim:

 imagem 93«Dos reinos do Decão e Bisnagar e de Colocondá, na Índia Oriental, leva esta diamantes; dos reinos de Pegu e da cidade de Calecut e da Ilha de Ceilão, safiras; do Seio Pérsico entre Ormuz e o Bassorá, da Samatra ou Taprobana, da ilha de Bornéo e em Europa, de Escócia, Silézia e Boémia, leva pérolas; do porto de Jusfar, na Pérsia, leva aljôfar (que daí se derivou este nome); da cidade de Siene, no Egipto superior e do mar Tirreno, leva os corais, que se desterraram já dos rosários e braceletes, ainda se admitem em brinquinhos e verónicas; dos campos de Pisa e dos Montes Alpes, leva cristais; do mar da Suévia e de Lubeca, leva alambres, que são de fabulosas lágrimas da Irmã de Faetone, choradas solenemente cada ano pela sua desgraça; dos reinos do Monomotapa e Sofala na Cafraria e da região de S. Paulo na nossa América, leva outro; do Cerro do Patosi, nas conquistas del-Rei Católico, leva prata; da Alemanha, os camafeus; de Moscóvia, as zebelinas e martas e do Palatinado as mais aperfeiçoadas; da Helvécia, região dos Suizaros, os arminhos; do Brasil, os saguins para manguitos; e os coquilhos para contas; da cidade de Tiro, em Fenícia, a púrpura; da Serra da Arrábida grã; de Portugal e Castela a cor; de Veneza e Holanda, os espelhos; de Provença e de Roma, a pomadas para fazer as mãos macias e cheirosas; de Córdova e Hungria ao menos a receitas para as águas odoríferas destes nomes; das Índias de Castela a Almeida e óleo dela para as mães; de Tunquem o almíscar; do Maranhão e Seará, o âmbar; de Angola, Guiné e Cabo Verde, a algália; das nossas Índias o calabunco e aguila, os canequins e paninhos de coco e os toribios; da Africas, penas dos avestruzes para os cocares de plumas; da China os lós, os leques e as chitas; de Granada os tafetás; da Flandres, as rendas; da cidade de Cambraia, as teias finíssimas e candidissímas que têm este nome; de Guimarães, as linhas; de Leão, de França., as primaveras; de Modaba,  na Pérsia e de Itália, as telas; da mesma Itália, os damascos; de Florença, Génova e Nápoles, os chamelotes; de França, as luvas, os sinais para o rosto e também os leques, uns maiores para o Verão, outros mais pequenos para o lar no tempo de Inverno; de Inglaterra as meias, fitas e relojinhos de algibeira; da Arábia, a goma, que também serve ofício neste mundo; da Batalha, os azeviches, para dar figas aos maus olhos».

Um autêntico tratado de geografia comercial, ou então, nas palavras do censor uma autêntica «livraria». Eis, pois, os produtos e lugares da terra onde a «nau» se ia abastecer. Digamos que não há cantinho do Mundo, continentes e cidades, das mais conhecidas e próximas, às mais distantes e exóticas, que não desse o seu contributo à carga. Só que o Padre Manuel Bernardes não se vai ficar pelos produtos da terra. A «nau», isto é a mulher, ou seja o objecto das suas preocupações cívicas e morais, vai estender-se também ao mar. E ele assim fala:

 «Que mais é? É necessário que concorra também o mar, não só com as suas ostras que se esbulhem das pérolas, senão também com as tartarugas que desarmem as costas para pentes e cofrinhos e com as baleias que empenhem as barbas para sair um justilho ou prepõem, bem desarrugado; são necessários de várias partes vários materiais para bucetas, escritorinhos, baús, guarda-roupas, para recolher nos camarins e escaparates este mundo abreviado; são necessários vidrinhos e garrafinhas e rodomas e bucetas, curiosa e ricamente forradas para toda a farmacopólia de ingredientes líquidos e secos, simples e confeccionados que servem de estender o dia da formosura, quando já vem caindo maiores as sombras dos altos montes da anosidade e de dizer na cara ao desengano, que mente. Que mais? São necessárias até as nuvens do Céu para a primeira água de Maio que opinaram, fazia o carão lustroso; são necessários, arte, os mortos para as cabeleiras, se as não quiser o luxo antes tiradas das entranhas dos bichos, fazendo-as de seda. Estava para dizer que são necessários até os demónios, porque assim como a mão de Deus ajudou (como diz o texto sagrado) a formosura de Judite porque se ordenava a intento santo e de sua glória: «cui etiam Dominus contulit splendorem, quoniam omnis ista compósito, non ex libidine, sede x virtute procedebat», assim tenho para mim que sem a mão do demónio não poderá o apetite humano inventar er diposr e aplicar tanta vaidade e curiosidade.

hEnfim, eu me acho cansado de peregrinar por este mundo imundo, como lhe chamou Tertuliano.
Dizei-me agora a Caio Ópio que chegue a bordo desta nau com a sua premacia; verá com que salva de artilharia o recebe; dizei ás rendas do morgado mais Atlante que sustentem este mundo. A mulher prudente, sisuda e amiga da sua casa é comparada por Salomão à nau mercantil; porém não, que de longe traz pão: «facta est quasi navis institoris de longe portans panem suum»; mas a mulher vã e amiga de enfeites e galas é nau que de longe traz a fome, porque a todas as partes do mundo faz desembolsos. Aquela o pão que traz é seu: «panem suum», porque sobre ser bem ganhado é bem conservado; esta a fome que traz é sua e de seus filhos e criados e servos, porque quanto se põe no supérfluo, tanto se tira ao necessário.
Recolhendo-nos agora ao nosso principal ponto donde saímos, pergunto: para que é necessário a uma mulher todo este mundo? Para parecer formosa. Concedamos-lhe que o parece; e ainda mais, que o é: que não é pouco barato, pois sabemos com S. Gregório Nazianzeno, que aquilo não é rosto, senão máscara: «non fácies, sed personas»; bem sabemos com Propércio que daquelas formosuras se mercam nas lojas e tendas e boticas e talvez para deitar a perder o natural:


                       «Naturaeque decus mercato perdere vultu».


E com Ovídio, que o menos que ali há naquele composto é a mesma pessoa porque quasi se sumiu entre tantos atavios sobrepostos:


 «Auserimur cultu; gemmis, auroque teguntur omnina: pars mínima est ipsa puela sui».


Que tira ela, enfim, em ser formosa? Vaidade. Não mais nada. Tira também enfermidades de corpo, perigo da alma, enfados, murmurações e depois tanto em penas do outro mundo, quanto este lhe deu em glórias: com uma diferença entre outras muitas: que as glórias foram falsas e as penas serão verdadeiras. Poisa não pudera esta mulher com quatro lágrimas choradas debaixo do seu manto com um crucifixo diante dos olhos em lugar de espelho e com amar a verdade, que é a lei de Deus, deixando-se ajudar da sua graça; não pudera, digo, deste modo mais fácil, mais útil, mais honesto e deleitoso ser formosa nos olhos de Deus? Pudera e na mesma Pelágia temos o exemplo cuja alma, depois de convertida, viu o mesmo S. Noono em figura de uma candidíssima pomba, vendo-a de antes sórdida e feia».

E fiquemo-nos por aqui, mesmo que o texto que transcrevi continue por mais algumas páginas no estilo anunciado pelo censor do Santo Ofício, isto é, estilo formoso, sem aspereza, sem arrogância e decente. Estamos na presença de uma autêntica peça arrancada do campo arqueológico do pensamento e dos valores. Aqueles que, desde o Profeta Isaías, moldaram, durante séculos, a mentalidade de gerações sucessivas no que respeita à mulher e ao seu papel na sociedade. 

Trazê-lo à Internet, no princípio do século XXIo tempora! o mores! na sequência das demais crónicas que deixei sobre a «Nova Floresta ou Silva», livro negrinho de fumo, que andou pelas lareiras e copeiras da minha terra natal, ali, onde me ensinaram a ser homem, mais não viso do que continuar um trabalho que comecei há muito tempo em torno de uma pergunta que me fiz a mim próprio: «Quem sou eu?». A resposta a tal pergunta, tentada no diálogo ficcionado que Lusozé manteve com a divindade «Paivatea», nas margens do rio Paiva, poderá o leitor(a)  vê-la na série numerada de artigos publicados neste site com o título «Transforma-se o Herdador na cousa herdada?»

Abílio Pereira de Carvalho

Migrado, hoje mesmo do meu velho site «.com» para este «.pt»

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.