Trilhos Serranos

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terça, 26 junho 2018 09:21

TRANSFORMA-SE O HERDADOR NA COUSA HERDADA (1)

Escrito por 

CUJÓ: RETALHOS DE HISTÓRIA - VII

Quando saí da Escola Primária matriculei-me logo, sem qualquer exame de admissão, nas cadeiras de Agricultura e Pecuária na Universidade da vida.

 

E tais cadeiras incluíam não apenas aprender a granjear o pão-nosso-de-cada-dia, fosse a cavar os campos à enxada, fosse a lavrá-los com as vacas, arado de pau radial que já vinha dos céltas, da charrua medieval, fosse a estrumá-los, semeá-los e colher o resultado do labor, mas também aprender a transformar os cereais em farinha nos moinhos que existiam nos rios Calvo e Mau, o primeiro a correr aos pés da aldeia e segundo, lá para trás do outeiro do Santo António, naquele vale profundo que serve de fronteira entre as freguesias de Cujó e de Pendilhe.

E bem me lembro a canseira que era carregar os sacos de milho ou de centeio às costas até ao moinho do rio Mau, ao lado do pisão que pertencera ao meu avô, e subir e descer os corgos Escuro, Porto da Grade e Filharada que, em forma de pé de galinha, se abriam até à Fonte das Três Bicas, da Mourisca de Cá e Mourisca de Lá, açude acima, açude abaixo, à noitinha, sempre depois de todos os lavradores e pastores, que por ali passaram o dia na sua labuta, terem recolhido ao povoado, a fim garantir o funcionamento do engenho durante toda a noite. 

É o que se pode dizer, com toda a propriedade, que todo o camponês aprendeu cedo, fora das universidades institucionais, a «levar a água ao moinho». Digo isto porque coisa diferente não fez o Padre Manuel Bernardes, homem de letras, ao conceber e compor a sua «Nova Floresta ou Silva». Também ele foi buscar aos distantes corgos, rios e ribeiros do pensamento, da história e da cultura, os ditados, os apotegmas, os princípios filosóficos e morais para, girando em torno deles, discorrer e construir doutrina edificante com que tentou moldar o comportamento humano. E, pontaria assestada na mulher, não se mostrou parcimonioso a moer a luxúria, os adornos, os enfeites e a beleza dela: uma «nau» levada pelo «vento».E não foi por acaso que ele trouxe às páginas do seu livro a figura de Pelágia. Depois do que vimos na crónica anterior, voltemos a ela, à «Nova Floresta ou Silva», essa fonte que jorra água bastante para mover moinhos em cadeia. Assim escreve::

               «Mas cheguemo-nos já especificamente ao caso de Pelágia e das que se parecem com ela nos estudos dos enfeites, ainda que se não parecem na gentilidade, nem na gentileza, nem professem mau viver, senão somente bem parecer. Quanto é necessário de tempo, de estudo, de cuidado, de despesas, de trabalho e aflição de espírito para se pôr à vela uma destas naus? Bem lhe chamei nau, porque já Plauto disse: «Navis et mulier nunquam fatis ornamantur». A nau e a mulher nunca se dão por bastantemente equipadas. E concorda o adágio de Terêncio: «Dum moliuntur, dum comuntur, annus est». Mulheres enquanto se apercebem, enquanto se enfeitam, lá vai o ano. 

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Os Romanos antigamente, vendo que por opulentos que fossem os pais e maridos não havia pano para tão largo cortar (porque nelas seu giz e tesoura é o seu apetite e teima) saíram com a lei Oppia, sendo cônsules Q. Fábio e T. Sempronio, assim chama de C. Ópio seu instituidor em que mandavam moderar estes excessivos gastos. Porém tal foi a impaciência com que as matronas reclamaram, tal o motim que levantaram ao redor do palácio dos Brutos que dali a poucos anos já a prematica estava antiquada.
No capítulo terceiro de Isaías está lançado um bastante aranzel, ou rol destas galas e adereços femininos. Porque indignado Deus de tanta vaidade e luxo ameaçou castigá-lo com terríveis demonstrações e por princípio delas, diz que há-de deitar abaixo as fivelas e topes de calçado, as luas, os colares, as gargantilhas ou afogadores: «In illa die auferent Dominus ornamentum calceamentorum & lunulas, & torques,  & monilia», os braceletes, as mitras, os pentes e fitas que servem de apertar as tranças, os frandelins, os cordões de ouro, as pomas e frasquinhos de águas de cheiro: «Et armillas, & mytras & discriminalia, & periscelidas, & murenulas & olfactoriola»: as arrecadas e chuveiros, os anéis e memórias, as jóias de pedraria preciosa pendentes sobre a testa, as galas de festa, os capotinhos, os volantes e velilhos, as espadinhas, os espelhos, as toucas, os listões, vendas e faixas e os mantos finos: «Et  inaures, & annulos, & gemas in fronte pendentes, & mutatória, & palliola & linteamina, & acus, & specula, & sindones, & vittas & theristra». Porém neste rol não está a centésima parte do aparelho que pede esta grande nau (chamemos-lhe Libertina que era a Deidade de fazer cada um o seu gosto) para velejar vento em popa nas cerúleas planícies do aplauso público. 
E mais é de advertir que o profeta fala das mulheres que andam em seus pés: «Ambulabant pedibus suis, & compósito gradu incedebant»: que as que andam nos pés alheios necessitam de muito mais enxárcia, enfrexadura e amantilhos de muito mais flâmulas e galhardetes, de muito mais grinaldas e faróis e de melhores pavezas a um e outro bordo. 
E a maravilha é que quanto a nau vai mais carregada, mais levezinha vai, porque a mesma carga lhe faz ganhar vento; suposto que só em ser mulher tinha já bastante, conforme aquele dito:

«Quid levius fumo? Flamen. Quid flamine? Ventus. Quid vento? Mulier. Quid muliere? Nihil.

Tenho reparado em que os Latinos a este ornato e adereços da mulher chamaram Mundo: «Mundus muliebris» e quer-me parecer que este nome não só quadra ao seu significado enquanto quer dizer limpeza; senão enquanto quer também dizer o mesmo mundo; porque de todo o mundo leva esta nau géneros e todo o mundo é necessário concorrer para ornar uma mulher. Por onde se S. Gregório achou com verdade que a criatura humana era todo o mundo, porquanto com umas criaturas convém no ser, com outras no crescer, com outras no sentir e com outras no entender; participando também o ornato de uma mulher de cada região do mundo alguma coisa, com razão e verdade se chama esse ornato Mundo. Vejamos mais em particular».

Pois é, mas esse «particular» fica para a próxima crónica. A transcrição foi extensa, demorada, cansativa, mas, como à semelhança do autor, também eu quero levar a água ao meu moinho, tal foi necessário. Vimos assim, ipsis verbis, que o padre Manuel Bernardes, filiado na velha tradição bíblica, olho recriminatório fito na mulher, foi buscar ao profeta Isaías a longa lista dos enfeites e ornatos femininos, foi buscar aos clássicos romanos as flores latinas com que enfeita o ramalhete do pecado e concluiu, depois, que a mulher é o mundo e o mal do mundo. 

Quanto tempo decorreu desde o bíblico Profeta Isaías até ao oratoriano Manuel Bernardes? Quanto tempo decorreu desde Manuel Bernardes até nós? Quanta água passou por debaixo das pontes? Quanta?

Seguindo o seu método trabalho e de raciocínio, mesmo sem o seu talento e arte, trago à colação o aforismo popular «águas passadas não movem moinhos», para dizer que este dito só assenta bem naqueles mecanismos hidráulicos de moer cereais que o inspiraram. Acontece que ele, esse aforismo, nada tem a ver com os moinhos da História, da Cultura, das mentalidades e do pensamento. Estes também giram à força de «águas passadas», à força da fontes, ribeiros e rios que, em qualquer tempo e espaço, se prestam ao serviço de moer e produção do pão do espírito. São essas águas que fazem mover os moinhos do presente e do futuro. São elas que, esguichando nas penas do rodízio da viva, contribuem para o fabrico do saudável alimento da igualdade entre os seres humanos. Elas nos ajudam a separar o trigo do joio joeirados ao vento da crítica, da reflexão, da moral e da justiça. «O tempora! O mores!»

E porque nos tempos que correm, neste mar magnum do século XXI, a «nau», a que se reporta Manuel Bernardes, é levada por ventos bem diferentes dos que sopravam nos tempos bíblicos, nos tempos dos romanos e nos tempos oratorianos, retornaremos ao cais onde ela aportou e, mãos no baraço, ajudemos a arriar o pendão nela içado, durante séculos, ostentando a significativa legenda latina:

 «Quid levius fumo? Flamen. Quid flamine? Ventus. Quid vento? Mulier.  Quid muliere? Nihil.

 

Migrado, hoje mesmo do meu velho site «.com» para este «.pt».

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.