E tais cadeiras incluíam não apenas aprender a granjear o pão-nosso-de-cada-dia, fosse a cavar os campos à enxada, fosse a lavrá-los com as vacas, arado de pau radial que já vinha dos céltas, da charrua medieval, fosse a estrumá-los, semeá-los e colher o resultado do labor, mas também aprender a transformar os cereais em farinha nos moinhos que existiam nos rios Calvo e Mau, o primeiro a correr aos pés da aldeia e segundo, lá para trás do outeiro do Santo António, naquele vale profundo que serve de fronteira entre as freguesias de Cujó e de Pendilhe.
E bem me lembro a canseira que era carregar os sacos de milho ou de centeio às costas até ao moinho do rio Mau, ao lado do pisão que pertencera ao meu avô, e subir e descer os corgos Escuro, Porto da Grade e Filharada que, em forma de pé de galinha, se abriam até à Fonte das Três Bicas, da Mourisca de Cá e Mourisca de Lá, açude acima, açude abaixo, à noitinha, sempre depois de todos os lavradores e pastores, que por ali passaram o dia na sua labuta, terem recolhido ao povoado, a fim garantir o funcionamento do engenho durante toda a noite.
É o que se pode dizer, com toda a propriedade, que todo o camponês aprendeu cedo, fora das universidades institucionais, a «levar a água ao moinho». Digo isto porque coisa diferente não fez o Padre Manuel Bernardes, homem de letras, ao conceber e compor a sua «Nova Floresta ou Silva». Também ele foi buscar aos distantes corgos, rios e ribeiros do pensamento, da história e da cultura, os ditados, os apotegmas, os princípios filosóficos e morais para, girando em torno deles, discorrer e construir doutrina edificante com que tentou moldar o comportamento humano. E, pontaria assestada na mulher, não se mostrou parcimonioso a moer a luxúria, os adornos, os enfeites e a beleza dela: uma «nau» levada pelo «vento».E não foi por acaso que ele trouxe às páginas do seu livro a figura de Pelágia. Depois do que vimos na crónica anterior, voltemos a ela, à «Nova Floresta ou Silva», essa fonte que jorra água bastante para mover moinhos em cadeia. Assim escreve::
«Mas cheguemo-nos já especificamente ao caso de Pelágia e das que se parecem com ela nos estudos dos enfeites, ainda que se não parecem na gentilidade, nem na gentileza, nem professem mau viver, senão somente bem parecer. Quanto é necessário de tempo, de estudo, de cuidado, de despesas, de trabalho e aflição de espírito para se pôr à vela uma destas naus? Bem lhe chamei nau, porque já Plauto disse: «Navis et mulier nunquam fatis ornamantur». A nau e a mulher nunca se dão por bastantemente equipadas. E concorda o adágio de Terêncio: «Dum moliuntur, dum comuntur, annus est». Mulheres enquanto se apercebem, enquanto se enfeitam, lá vai o ano.
Os Romanos antigamente, vendo que por opulentos que fossem os pais e maridos não havia pano para tão largo cortar (porque nelas seu giz e tesoura é o seu apetite e teima) saíram com a lei Oppia, sendo cônsules Q. Fábio e T. Sempronio, assim chama de C. Ópio seu instituidor em que mandavam moderar estes excessivos gastos. Porém tal foi a impaciência com que as matronas reclamaram, tal o motim que levantaram ao redor do palácio dos Brutos que dali a poucos anos já a prematica estava antiquada. No capítulo terceiro de Isaías está lançado um bastante aranzel, ou rol destas galas e adereços femininos. Porque indignado Deus de tanta vaidade e luxo ameaçou castigá-lo com terríveis demonstrações e por princípio delas, diz que há-de deitar abaixo as fivelas e topes de calçado, as luas, os colares, as gargantilhas ou afogadores: «In illa die auferent Dominus ornamentum calceamentorum & lunulas, & torques, & monilia», os braceletes, as mitras, os pentes e fitas que servem de apertar as tranças, os frandelins, os cordões de ouro, as pomas e frasquinhos de águas de cheiro: «Et armillas, & mytras & discriminalia, & periscelidas, & murenulas & olfactoriola»: as arrecadas e chuveiros, os anéis e memórias, as jóias de pedraria preciosa pendentes sobre a testa, as galas de festa, os capotinhos, os volantes e velilhos, as espadinhas, os espelhos, as toucas, os listões, vendas e faixas e os mantos finos: «Et inaures, & annulos, & gemas in fronte pendentes, & mutatória, & palliola & linteamina, & acus, & specula, & sindones, & vittas & theristra». Porém neste rol não está a centésima parte do aparelho que pede esta grande nau (chamemos-lhe Libertina que era a Deidade de fazer cada um o seu gosto) para velejar vento em popa nas cerúleas planícies do aplauso público. E mais é de advertir que o profeta fala das mulheres que andam em seus pés: «Ambulabant pedibus suis, & compósito gradu incedebant»: que as que andam nos pés alheios necessitam de muito mais enxárcia, enfrexadura e amantilhos de muito mais flâmulas e galhardetes, de muito mais grinaldas e faróis e de melhores pavezas a um e outro bordo. E a maravilha é que quanto a nau vai mais carregada, mais levezinha vai, porque a mesma carga lhe faz ganhar vento; suposto que só em ser mulher tinha já bastante, conforme aquele dito:
«Quid levius fumo? Flamen. Quid flamine? Ventus. Quid vento? Mulier. Quid muliere? Nihil.
Tenho reparado em que os Latinos a este ornato e adereços da mulher chamaram Mundo: «Mundus muliebris» e quer-me parecer que este nome não só quadra ao seu significado enquanto quer dizer limpeza; senão enquanto quer também dizer o mesmo mundo; porque de todo o mundo leva esta nau géneros e todo o mundo é necessário concorrer para ornar uma mulher. Por onde se S. Gregório achou com verdade que a criatura humana era todo o mundo, porquanto com umas criaturas convém no ser, com outras no crescer, com outras no sentir e com outras no entender; participando também o ornato de uma mulher de cada região do mundo alguma coisa, com razão e verdade se chama esse ornato Mundo. Vejamos mais em particular».
Pois é, mas esse «particular» fica para a próxima crónica. A transcrição foi extensa, demorada, cansativa, mas, como à semelhança do autor, também eu quero levar a água ao meu moinho, tal foi necessário. Vimos assim, ipsis verbis, que o padre Manuel Bernardes, filiado na velha tradição bíblica, olho recriminatório fito na mulher, foi buscar ao profeta Isaías a longa lista dos enfeites e ornatos femininos, foi buscar aos clássicos romanos as flores latinas com que enfeita o ramalhete do pecado e concluiu, depois, que a mulher é o mundo e o mal do mundo.
Quanto tempo decorreu desde o bíblico Profeta Isaías até ao oratoriano Manuel Bernardes? Quanto tempo decorreu desde Manuel Bernardes até nós? Quanta água passou por debaixo das pontes? Quanta?
Seguindo o seu método trabalho e de raciocínio, mesmo sem o seu talento e arte, trago à colação o aforismo popular «águas passadas não movem moinhos», para dizer que este dito só assenta bem naqueles mecanismos hidráulicos de moer cereais que o inspiraram. Acontece que ele, esse aforismo, nada tem a ver com os moinhos da História, da Cultura, das mentalidades e do pensamento. Estes também giram à força de «águas passadas», à força da fontes, ribeiros e rios que, em qualquer tempo e espaço, se prestam ao serviço de moer e produção do pão do espírito. São essas águas que fazem mover os moinhos do presente e do futuro. São elas que, esguichando nas penas do rodízio da viva, contribuem para o fabrico do saudável alimento da igualdade entre os seres humanos. Elas nos ajudam a separar o trigo do joio joeirados ao vento da crítica, da reflexão, da moral e da justiça. «O tempora! O mores!»
E porque nos tempos que correm, neste mar magnum do século XXI, a «nau», a que se reporta Manuel Bernardes, é levada por ventos bem diferentes dos que sopravam nos tempos bíblicos, nos tempos dos romanos e nos tempos oratorianos, retornaremos ao cais onde ela aportou e, mãos no baraço, ajudemos a arriar o pendão nela içado, durante séculos, ostentando a significativa legenda latina:
«Quid levius fumo? Flamen. Quid flamine? Ventus. Quid vento? Mulier. Quid muliere? Nihil.
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