HISTÓRIA VIVA
INTRODUÇÃO
Numa atitude clara de divulgar e dar a conhecer (a quem ignora) a vida rural de outros tempos (por oposição à vida urbana dos tempos de agora) neste meu andarilhar, de podão em punho, pelo CAMPO DAS LETRAS por forma a nele abrir clareiras onde confluam conhecimentos, ideias, emoções e memórias humanas de quem tal viveu ou estudou, no dia 07-07-2016 coloquei no meu mural do Facebook o seguinte desafio:
«Esta minha obsessão de pôr as pessoas a pensar e a escrever (aqui no Facebook) em vez de se ficarem pelo cómodo LYKE, leva-me a fazer um DESAFIO a todos os meus amigos. E qual é? Muito simples. Os elementos que constam na foto que se segue têm algo de comum e histórico entre si. Bem gostava de ver os amigos a escreverem sobre eles uma PEQUENA/GRANDE "estória". Sendo esse o DESAFIO PROPOSTO dispensam-se os LYKES. Certo?»
E então não é que alguns dos meus amigos responderam de pronto, decididos a mostrarem que o Facebook é um book de muitas «faces» de muitas páginas, de muitas caras, flores, beijinhos, fotografias paisagísticas, perfis pessoais, rostos, mas também espaço de lembranças, de criatividade, imaginação e (o mais importante) repositório de conhecimentos e saberes próprios das gerações mais velhas, ignorados pelas gerações mais novas?
Já escrevi uma série de textos com o título «O FACEBOOK É UMA LIÇÃO». Nesses textos demonstrei o seu carácter democrático, abrangente, sem distinção de classes e profissões. E isso mesmo é o que continuo a demonstrar neste. Só que, desta vez, a LIÇÃO recebeu o contributo dos meus amigos, cabendo-me a mim apenas puxar da agulha, pôr os novelos a jeito, e, numa espécie de lençol de linho, deixar rendilhados os generosos contributos que, na sequência do desafio, aportaram na minha página. Viso apenas que, atendendo aos objetos fotografados, os meus amigos entendam melhor as razões deste meu desafio, isto é, deste torneio de palavras, memórias, conhecimentos e de ideias.
Direi pois que, em tempos idos a sociedade portuguesa não era tão democrática e estava dividida em três ORDENS principais: clero, nobreza e povo. E nestas três ORDENS também havia "gradação" entre os elementos que constituíam cada qual. Alguns elementos da nobreza de sangue eram designados nos documentos por «MILITES», isto é, CAVALEIROS e alguns HOMENS DO POVO, por razão de HAVERES bastantes, ou por outra razão especial, podiam ser também elevados à categoria de CAVALEIROS. É o que nos mostra o texto que se segue, extraído do REGIMENTO DE D. SEBASTIÃO. Diz ele:
«Para que os Capitães das companhias e os Alferes e Sargentos delas folguem mais de servir os ditos cargos e por lhes fazer mercê, hei por bem que cada um deles goze e use do privilégio de Cavaleiro, posto que o não seja (...) Almeirim a dez de dezembro de M.D.LXX».
Mas foi ainda no tempo de D. Sebastião que vislumbrámos um mal estar na «nobreza de linhagem» resultante, certamente desta atitude do Monarca. E disso ele nos dá conta na «Provisão sobre as ordenanças agora novamente feita com algumas declarações que não estavam nos Primeiros Regimentos", parecendo retirar o privilégio concedido antes, assim:
«Hei por bem que se não contem por homens de cavalos aqueles, cujos cavalos sirvam também de albarda e serão obrigados a ir na Ordenança de pé, como se não tivessem cavalos».
Ora, digo-vos eu, tomem lá, CAVALEIROS sim, mas não os homens cujos «cavalos sirvam de albarda», pois esses eram «obrigados e ir a pé à ordenança como se não tivessem cavalo». Os amigos já descobriram, albarda lembra cavalo de almocreve e almocreve lembra homem do povo.
Nesses tempos que lá vão (e outros mais recuados ainda), os documentos mostram-nos que não era fácil a ascensão social, com ou sem privilégio régio. Caso flagrante ficou registado em 1258, nas Inquirições de D. Afonso III. Ali se diz que no Gafanhão (terra que hoje pertencente ao concelho de Castro Daire) um tal «Donus Beloy, vilanus, fecit ipsam ecclesiam in sua propria hereditatem, et milites de Amaral filiaverunt eam por forciam», isto é, um «cavaleiro vilão», com fazenda suficiente que lhe permitia antepor ao seu nome o título «Dom», fez uma igreja nas suas propriedades, mas os «milites» pertencentes à nobreza de linhagem, «tomaram-na à força» e chamaram-lhe um figo.. Qual «Dom», qual carapuça. Isso é título para nobreza de sangue e não para qualquer vilanus do povo.
E aqui chegados, visto que falámos de CAVALEIROS (homens da nobreza) e vilanus (homens do povo) também cavaleiros, e na fotografia que ilustra o texto desafiante se veem, no extremo de uma varanda de casa rural, um escudo e duas espadas colocadas em X, e bem assim algumas peças associadas a pessoas e animais, nomeadamente uma ferradura, um freio de cavalo, uma espora, a cabeceira de uma cama de ferro forjado, dois cântaros e uma panela de ferro, vamos lá ver como cada um dos meus amigos entrou no CONTO. Que memórias e conhecimentos lhes despertaram tais objetos. Aí vai parte desses contributos com a ressalva de que os textos originais se encontram on line tal qual foram escritos pelos seus autores, onde podem ser vistos e cotejados com as alterações que tive de fazer para melhor «tricotar»: a peça que sesegue:
Direi, pois, que de pronto, sem hesitações, logo apareceu uma senhora, de seu nome Filipa Sousa, amiga de museus e coisas antigas. Passou por ali e lembrou-se do tempo em que era uma moura de trabalho no campo. Reparou nos cântaros e disse nem se lembrar a quantidade de «vinho que transportou neles», à cabeça, mas sabia muito bem a diferença do paladar que existia no «comer feito naquela panelinha de ferro, muito melhor que a comida feita nas panelas de agora».
Dito e lembrado isso, passou à frente e deu lugar a António Martinho Santos Teixeira, natural de Cujó, mas há muitos anos ausente da terra. Este, treinado a dar umas tacadas de golfe, olhando para os mesmos objetos, logo lhe pareceu estar na presença de algo conhecido, digamos, familiar. Não lhe escapou o candeeiro à dependura e fixou-se no brasão, cujo significado disse ignorar, mas que lhe fazia lembrar o diabo. (Ó diabo! Ele anda por aí a ameaçar a governança da "geringonça", mas receia ameaçá-la com o seu tridente e por isso tarda em aparecer. É só fumaça). Reconheceu imediatamente o sapato da cavalgadura, a ferradura que associou à espora, julgando-a outra ferradura, dada a sua exposição simétrica na parede. E chamou cama senhorial à peça de ferro forjado. Identificou, com precisão, os cântaros e a panela de ferro, não se ficando por aí. Assumindo as funções de um autêntico almotacel histórico (profissão desaparecida) toca a dizer para que serviam e que quantidade de líquido levava cada uma dessas vasilhas. Dominando o sistema antigo de medidas de capacidade, lembra que dois cântaros é um almude. E que os almudes variavam de uns sítios para outros. Explicações destas só se encontram numa enciclopédia antiga. Só não disse, certamente por falta de espaço, que, no padrão de Lisboa, uma pipa tem 25 almudes, um almude tem 6 potes, um pote tem 6 canadas, uma canada tem 4 quartilhos...e mais não digo senão entro no estabelecimento que o seu tio António Teixeira tinha em Cujó, e mando vir um «cortilho« de vinho para os dois, E se houver mais amigos vem mais uma rodada e o do fim, escorropichado o copo, põe-no sobre o balcão de boca para baixo. Atento a isso o taberneiro, conhecedor dessa linguagem, volta a enchê-lo e o copo roda novamente por todos. Isto no tempo do «rompe e rasga e siga a rusga».
Mas ele disse mais. No seu trabalho de encher e esvaziar os cântaros, que o mesmo era medir a litragem, as mãos ficavam bêbadas de cor avinhada. E como não há (ou não deve haver) bebida sem comida, a panela de ferro veio mesmo a calhar. Ali se cozinharam alimentos para uma família inteira, a par das panelas de barro, onde se coziam as castanhas. E não se pronunciando, em concreto, sobre os restantes objetos e expostos, não andou longe da verdade, pensando tratar-se de peças pertencentes a «arreios de um cavalo». E, a ser assim, eles teriam sido pertença de uma «casa rica».
E neste ponto, por falar em casa rica, entrou na liça Paulo Sérgio Ferreira, creio que nascido em Moçambique, ali para os lados de Mutarara, quando eu estava em Tete. Os pais, naturais das Monteiras, freguesia de Castro Daire, por certo lhe transmitiram a mundividência do mundo rural e, olhando a fotografia, escreve, com mostras claras de patriota na simbologia usada na sua foto de perfil:
«Uma casa senhorial, talvez de um valente homem d'armas, que chega a casa, montado no seu velho mas fiel alazão, cansado, ferido talvez. Limpa as chagas com a água fria, mas límpida que lhe trazem num cântaro, deleita-se com um lauto banquete cozinhado na panela de ferro, rega com uns litros do néctar dos deuses, produzido em Fareja e por fim, após matar saudades da sua fama, adormece num colchão de palha colocado numa bela cama de ferro..."
Quem diria melhor?
Seguiu-se Celestino Pereira, natural de Cujó. Este amigo, filho de ferreiro e conhecedor do valor e uso do ferro, fez passar por aqui uns tantos velhotes, reformados que, na varanda, se deram conta de um estranho diálogo travado entre aqueles objetos inanimados e fora de uso. E foi assim que o «petromax», servindo de candeeiro, interpelou a cama de ferro forjado, estranhando que ela não tivesse ido parar ao ferro velho, semelhantemente aos cântaros e a panela do caldo. Mas a cama, que velhinha era e por isso tinha experiência de vida bastante, deu-lhes uma resposta à altura da sua sabedoria: estava ali, sim senhores, para lembrar os sonhos e o descanso de quem nela dormira muitos anos.
E, à boa maneira serrana de dois cantadores à desgarrada, onde cada participante nunca se rende ao adversário, a panela de ferro diz à cama que, sim senhora, mas ela jamais se vira rodeada de braseiro e que nunca tinha matado a fome aos moradores da casa. Ouvintes atentos do diálogo, calados não ficaram os cântaros gabando-se, assim a modos que meio bêbados: isso pode ser tudo verdade, mas a alegria da casa passou aqui por nós. Sem nós, aqui reformados na vossa companhia, quem animava a história? E animada estava ela, não fora interrompida pelos passos dos reformados que, por algum tempo, se passearam naquela varanda de olhos postos naquela peças também reformadas. Por algum tempo esses reformados deixaram os bancos dos jardins, deixaram de ler o habitual livro de 40 folhas, isto é, o baralho de cartas, e deram folga ao jogo da sueca e da bisca samarreira, como diria Aquilino Ribeiro.
Mas reformado deu provas de não estar Bártolo Ferreira, natural de Mões, a labutar fora dali há largos anos. Cavaleiro e cavalheiro atento, assumindo o papel de aluno sabido, traquino e experimentado, face ao torneio histórico proposto, com a Escola António Serrado transformada em Mercado Municipal, mal chegou ao Jardim Público, frente aos Bombeiros Voluntários de Castro Daire, atual espaço de recreio, em vez de dizer aos colegas de turma «com esta é que o professor nos lixou» foram os seus colegas, tão traquinas, sabidos e experimentados quanto ele, que lhe atiraram de chofre, como que ensaiados:
«Epá, já viste esta do "prof"? agora "espetou-nos" com umas "cenas" de ferro, postas na varanda, com uma ferradura e tudo. E muito bem instalado na sua cadeira por detrás da secretária (...) quer que demos um palpite sobre toda aquela caranguejola.».
«Epá» (retorquiu outro) «Também vi aquilo no Face e quis-me parecer que a questão (...) tinha a ver com a importância que, tanto o ferro como os outros metais, desempenharam na vida das pessoas, quer dizer, dos nossos antepassados, avós e avós deles, e até da arte com que eles manipularam (...) mas como aquilo não era matéria de exame», concluíndo todos em ficarem por ali e, turma rebelde que era, penso eu que disseram em uníssono, invertendo a frase: «com esta é que o professor nos lixou» disseram: «o professor que se lixe». Dito e feito. E, acrescentaram: se o professor quer contos que vá ao banco, mas que escolha bem, que não vá em «espíritos santos de orelha», pois há para aí uns que faliram e «lixaram» bem os clientes. Turma difícil, senhores, turma difícil.
E estava a narrativa neste pé quando, vinda do Porto, chegou uma carta assinada por uma senhora de Bustelo, que lá para as bandas do mar, chefiou uma ou mais estações do CTT. Treinada em selos e carimbos, por via das dúvidas, enumerou e identificou os objetos expostos, a saber:
"Um escudo
Duas espadas
Uma ferradura (esta, por acaso, foi referida ao de leve)
Um freio
Uma espora.
Não serão estes também objetos históricos ?»
Pelo rigor, precisão e síntese, lá terei de a contratar esta senhora para catalogadora das velharias que andam cá por casa, todas elas carregadas de história e de humanidade.
Mas ainda de Bustelo, ali entre Almofala e Tarpuca, se bem que a residir lá para os lados de Lisboa, chegou a colaboração de Manuel Silva Matias. E este não se ficou pelo saber camponês relacionado com os objetos, saber adquirido na sua terra natal, ou nas Áfricas, nas extensas Companhias de Chá, onde gastou anos de vida. E vai daí, bota mão ao Google e, olhando a fotografia, deixa-nos a todos uma extensa lição de história. Tal qual. E a mim, não me compete, confirmar, nem desmentir tão laboriosa investigação. Ora leiam:
«Quatro objetos que parecem insignificantes, mas de estrema utilidade na arte de bem cavalgar. São eles: a ferradura que foi inventada por volta do século 10, quando os homens viram a necessidade de proteger os cascos dos equinos. A ferradura surgiu no formato de sandália feita de grama trançada, a que está exposta na varanda já é peça de luxo. outra peça muito importante é o freio. Há cerca de 2600 anos ainda na sua forma primitiva esta importante peça chegou à Europa há 1200 anos atrás. Outra peça: a espora mais ou menos como a conhecemos hoje remonta ao século 14. Por último temos a espada, arma branca que começou a desenvolver-se em meados de 1500 nas cortes reais da Espanha»
E vinda de longe, do outro lado do Atlântico, dos Estados Unidos, uma SENHORA DONA, de seu nome Lina Maria Zagalo Neves, que, tal como eu respirou os ares quentes de TETE, e bebeu a água do rio Zambeze, nos anos sessenta do século XX, filha de um senhor que tratava da manutenção das máquinas de projetar filmes no Cinema Santiago quando eu era ali projecionista, pessoas de quem tenho um apagado vislumbre físionónmico, resolveu marcar presença neste torneio de lembranças, pensamentos e emoções. E dada a forma generosa e simples como o fez. obrigado me sinto a transcrever, na íntegra, as suas palavras:
«Me encanta estas "partidas" do Professor. Sempre a aprender com as suas publicações. Ao que conheço todos os objetos por fotos ou gravuras, a cama e a única peca em que toquei. Aliás na m/casa em Portugal tenho uma com um belo colchão cheio de palha de milho. Regresso para as historias que se seguirão».
E assim se começou e deu fim a este torneio de palavras, de ideias, de conhecimentos e emoções relacionadas com a vida rural, as suas gentes, utensílios e animais domésticos, em tempos idos.Nele entraram também todos aqueles que se limitaram a aplaudir com os seus likes, apesar de eu ter dito que os dispensava. Mas eles, na sua bondade resolveram estar presentes. Assim e desse modo, todos eles constituíram a simpática plateia que assistiu ao torneio sugerido e orientado por este «cavaleiro de triste figura». Este mesmo que, em vez de gozar o resto dos dias deitado na cama de ferro, usufruindo o «descanso do guerreiro», ainda se dá ao trabalho de andar nestas lides, interessado em em pôr as pessoas a pensar e a agir, v.g. a darem sinal de vida.
NOTA: os meus amigos não vejam no uso das vossas fotos de «perfil» a ilustrar este texto, um abuso meu. Vejam antes um «privilégio», pois nesta página são poucos os que se gabam de nela tomarem assento. E sempre sem nada escondido na manga. Antes de fazer o «desafio», solicitando o vosso contributo, alojei no «Youtube» o vídeo, cujo link se segue. Faça-se o cotejo das datas e logo se verá a «boa fé» que me relaciona com todos os meus amigos.