HISTÓRIA VIVA
PRIMEIRA PARTE
Quando, no dia 11-07-2017, fiz a entrevista à Senhora Dona Maria da Cruz, do Souto de Alva, sobre o "desaparecido" e ressuscitado PELOURINHO, disse-lhe, olhos nos olhos, que, «não sendo ela professora, acabava de me dar a mim, professor, uma lição» de história. E se alguém pensou que essas minhas palavras eram de circunstâncias ou de pura gentileza, enganou-se.
Elas estavam e estão carregadas de sentido e assim o entenderam, muito bem, os subscritores dos COMENTÁRIOS que, prontamente, fizeram à entrevista, alojada no YOUTUBE. Foram eles, Marcelo Cabral, cidadão residente no Brasil, com currículo público no Google e Bártolo Ferreira, natural de Mões, a residir em Lisboa. Assim:
a) MARCELO CABRAL:
«Excelente lição para o Senhor Professor e para todos nós! Excelente iniciativa de preservação e exposição física do nosso património. Lamentável a existência de "pessoas", que derrotam ou tentam sabotar tão valiosas iniciativas! Senhor Professor..."sem comentários"....confere com toda a certeza! Os "velhos do Restelo"...sempre com habilidade de mestre minando o caminho da preservação histórica e o progresso castrense! Excelente trabalho».
Inteligentemente, este senhor Marcelo Cabral leu muito bem a longa narrativa contida na curta expressão deslizante no cabeçalho do vídeo «sem comentários».. Sim, face ao que a senhora dizia, comentários para quê?
b) BÁRTOLO FERREIRA:
«Também eu ouvi, vi e tomei as palavras da senhora como uma lição. O próximo passo, atendendo ao interesse do professor Abílio pela divulgação deste acontecimento, será, depois do Pelourinho devolvido e erguido ao lugar a que pertence, que da mesma forma no-lo mostre e sobre ele nos transmita também a sua lição, do ponto de vista histórico, quanto mais não seja para complementar a "lição" iniciada pela senhora do Souto. Creio que não será coisa pouca; afinal trata-se de um Marco Histórico e para "lecionar" sobre isso, só o professor Abílio».
Agradeci os comentários, como era meu dever, mas logo reservei para este espaço melhor e mais extensa explicação, já que, na «LIÇÃO» dada por aquela senhora a todos nós, há certos pormenores que urge destacar, sob pena de eles escaparem ao entendimento de quem não está envolvido, tanto quanto eu, nas entrevistas às pessoas do campo, com vista à pesquisa, descoberta e divulgação do nosso património histórico e cultural.
SEGUNDA PARTE
Pois bem. Todos aqueles que me acompanham nestas lides e têm dado mostras de paciência para lerem o que vou escrevendo e mostrando (em fotos ou vídeos) já se habituaram aquela expressão que uso com frequência, a saber: «HISTÓRIA COM GENTE DENTRO». Foi o que ali se passou. E eu esclareci as razões da minha afirmação, dizendo à senhora entrevistada: era uma lição, porque ela «falou e falou bem, sobre aquilo que conhecia, por ouvir dizer à sua mãe», resultando daí não se pôr a «inventar», mas tão só a «repetir com fidelidade, de forma expedita e espontânea, a tradição ligada ao pelourinho desaparecido», em cuja peugada eu andava desde 1984.
E eu, com algum traquejo a entrevistar a gente simples do campo, que faço da minha câmara de filmar os meus próprios olhos, procuro captar os sentimentos e a verdade que entram pela objetiva e pelo microfone dentro, tecnologia que está incorporada nessa pequena/grande invenção ao dispor do investigador, do jornalista e do historiador.
E o que vimos nós nessa entrevista? Vimos que no fluir da conversa ficaram registados dois momentos que eu jamais deixaria escapar, sem reparo, sob pena de me ficar pelas palavras e deixar de lado, jeitos, trejeitos, gestos e sentimentos que das palavras defluem, com a naturalidade com que brota a água de uma fonte, aqui na serra. Que mais não fora, esses dois momentos chegariam para eu falar de lição e dar por bem empregues todos os esforços que tenho feito no sentido de encontrar nas pessoas simples do povo o que falta nos documentos e arquivos da especialidade. De ouvir dessas pessoas o que não ouço, porque ignorado é, por gente que se julga muito sábia, muito académica, abancada atrás de uma secretária rodeada de papeis, muitos deles autênticos embustes, v.g. como acontece com os documentos relativos aos pelourinhos de Alva e de Castro Daire. É que eles foram classificados «monumentos nacionais» em 1933, quando, pública e fisicamente, já nenhum deles existia, enquanto tais. É só ouvir o testemunho da Dona Maria da Cruz, cotejá-lo com o testemunho da Dona Graciosa Moreira, de Alva (Cimo de Vila), que entrevistei no primeiro vídeo sobre o pelourinho e outros de pessoas conhecedoras do mesmo assunto. E bem assim com os textos, vídeos e fotos que já publiquei sobre estes mesmos monumentos, neste meu espaço.
Mas quais foram, afinal, os dois momentos que mais me sensibilizaram e deram por bem empregue todo o trabalho que tenho desenvolvido?
PRIMEIRO: a Dona Maria da Cruz, naquela sua desenvoltura no falar e no contar, juntando o gesto à palavra, disse-me muito mais do que pensava. E isso passou, seguramente, despercebido a muita gente. Pois é. Quem é que reparou naquele gesto espontâneo que ela faz com as mãos quando, pela primeira vez, se referiu ao símbolo (remate) do pelourinho que terá sido levado para Mões? Voltem a visionar o vídeo e reparem no gesto que ela faz com as mãos, como que a envolver uma BOLA. A fotografia que ilustra esta parte é o «PrtScn» desse gesto, retirado do vídeo. Sem pensar nem dar por isso, a Senhora Dona Maria da Cruz, exteriorizou, por gestos de mãos, o que ficou arquivado na memória das gentes do Souto. E, fazendo isso, identificou um pelourinho de bola, identidade com que ressuscitou, por opção minha, mas só depois de muita pesquisa, estudo e cotejo entre pelourinhos, dos mais simples e toscos, aos mais complexos e artísticos, com capitel ou sem ele. E a resposta às minhas interrogações ali tão à mão. Eis, pois, naquele gesto, um bom exemplo de como a MEMÓRIA sobrevive à MATÉRIA. Eis como neste jeito de contar, nesta INFORMAÇÃO ORAL (e gestual) encontrei o que nos falta na informação escrita, isto é, na documentação arquivada e catalogada nos arquivos competentes.
É que, do PELOURINHO DE ALVA desaparecido, ao que julgo, nos anos 40 do século XIX, época em que muitos pelourinhos foram vítimas do vandalismo exercido sobre eles, por serem e/ou lembrarem as injustiças que, no entender dos vândalos, eles se prestavam na praça pública, do pelourinho de Alva, repito, restou apenas a coluna escondida. E, descoberto que foi esse monumento, não fazia sentido restaurá-lo sem duas peças essenciais: a base e o remate. Foi o que se fez, depois de muita investigação e cotejo. E tratando-se de um pelourinho simples (tal como sugere a coluna sem quaisquer sinais artísticos de cantaria) opinei que, dignidade bastante lhe dariam somente dois degraus circulares (condicentes com o espaço arredondado onde seria ereto) e uma bola no topo. Ciente, embora, de que às vozes que se levantaram contra a sua ereção naquele sítio (como ouvimos na entrevista) se juntarão agora outras tantas a questionarem porquê dois degraus e não três, porquê circulares e não quadrados ou octogonais, idem, idem aquele tamanho da bola e não outro. Pois que falem, mas primeiro que investiguem, que comparem, que estudem a matéria dos pelourinhos, as suas funções ao longo da História, as suas formas, tamanhos e feitios. As bolandas porque passaram. O que desses monumentos resta do tempo das suas funções, em muitas vilas, cidades e aldeias, com os ganchos e argolas onde se prendiam os delinquentes e os que, sem nada disso, volveram unicamente símbolos da justiça e da municipalidade.
SEGUNDO: Quem reparou na expressão visual, no brilho dos olhos da Dona Maria da Cruz, quando lhe perguntei se ela se daria bem com o novo vizinho? Não repararam? Voltem a visionar a entrevista. Cito de memória, em versão livre, as suas palavras, impossibilitado que estou de exteriorizar os sentimentos e afetos que delas defluem: «o pelourinho? ai, senhor professor, a gente até se sente rejuvenescer. Ver na nossa povoação estas coisas antigas, que estavam camufladas, e vir alguém agora e pô-las à vista, trazê-las à tona...»
Interrompi-a para lhe observar que ela acabava de me dar uma lição. E, como que envergonhada, ela respondeu com um cabisbaixo «ai», bem digno da pessoa humilde que é, mas certamente ciente dos conhecimentos que me transmitiu e eu lhe agradeci. Uma lição, podia lá ser? Foi mesmo. Ela, naquela sua simplicidade franca e espontânea mostrou-me (a mim e a nós todos) o regozijo de ver restaurado, à luz do sol e à luz dos olhos das pessoas, o velho monumento e o seu valor histórico. Uma lição, sim senhora, que, servindo para mim (e para nós todos) devia também servir para todas as pessoas que, tendo responsabilidades na preservação e restauro do nosso património, em vez disso o destroem, ou votam ao desleixo. Vejam só o pio e as mós daquele lagar de azeite junto do Tribunal de Castro Daire. Foi atirado para ali como se fosse para uma lixeira. Compará-lo com os seus irmãos de ofício existentes nas praças públicas de Mirandela (como já fiz, para vergonha nossa) é uma afronta à inteligência e sensibilidade humanas, relativas ao património arqueológico industrial. É isso mesmo. Uns procedem assim. E outros fingem não ouvir e nem ver o que eu tenho feito «pro bono» na descoberta e preservação desse mesmo património, inclusive o «pelourinho de Castro Daire», sede do concelho, que está, também ele, a servir de suporte a uma trave, numa adega da vila. Até quando?
Mas, seja como for, filmando, fotografando e escrevendo, estou certo que, perto de mim, como que a apoiar (ou a reprovar) o meu trabalho, sempre haverá um garnisé a «quiquiricar» como se fosse entendido no assunto. Este que vemos parece querer apoiar-me, pois dá mostras de querer sair do poleiro e apreciar as obras que decorrem no exterior.