Trilhos Serranos

Está em... Início História ÁLVARES, Joaquim José, De Soldado a General - 4
segunda, 20 fevereiro 2017 15:03

ÁLVARES, Joaquim José, De Soldado a General - 4

Escrito por 

HISTÓRIA VIVA

 DEGREDADO PARA MOÇAMBIQUE

Ainda que promovido ao posto de tenente por D. Miguel, como vimos no capítulo anterior, ele, recusando-se a aclamar este monarca como «rei absoluto» e, face a essa sua opção política, de pouco lhe valeu a sua brilhante e condecorada carreira militar conseguida até aí, como elemento ativo na Guerra Peninsular.

 

Preso na Praça de Elvas e remetido para as prisões do Castelo de S. Jorge, Forte de S. Julião da Barra e Cova da Moura, em 1832 seria deportado para Moçambique, na condição de «degredado».

            Não foi o único. Teve boa companhia, pois «a lista dos 618 presos políticos que entre 1828 a 1833, entraram na cadeia de S. Julião da Barra é muito expressiva: 227 militares, 93 estudantes, professores e membros de profissões universitárias, 87 de profissões ligadas ao comércio, 78 com profissões populares, 52 funcionários públicos, 44 eclesiásticos, 31 proprietários e lavradores» (1)

S.Julião da BarraPreso em 1828, depois de saborear as ‘comodidades’ da celas do Castelo de S. Jorge, Cova da MouraS. Julião da Barra, abemos que no ano de 1832, ano em que o exército liberal e D. Pedro entraram no Porto, partiu de Lisboa na «Charrua Princesa Real» com destino à Ilha de Moçambique.

Não tivemos acesso a documentação que informe do dia da partida, nem do número dos seus companheiros de viagem e do seu estatuto social. Mas se recuarmos a 1802, seis anos antes de ele assentar praça em Caçadores 3, ficaremos com uma ideia desses embarcadiços. Os eventos não estão tão afastados assim e quem estiver familiarizado com a lentidão dos tempos e a mudança e/ou permanência das coisas no friso cronolóico da História, a girarem, até muito recentemente, ao ritmo e cadência dos passos da mula de almocreve, aceitará, de boa mente, tudo isso com a seguinte descrição:

«Em 18 de Abril de 1802, a nau de viagem «Marialva» arpou as amarras que a detinham no seu fundeadouro em Lisboa, desferrou as velas e aproou à barra do Tejo, para dali marcar rumo em demanda ao Rio de Janeiro, de onde navegaria para Moçambique e depois para a Índia, em longo e moroso cruzeiro (...) Além da tripulação e guarnição da nau – mais de cem homens – viajava na «Marialva» cerca de 300 passageiros com destino ao Rio de Janeiro, a Moçambique e a Goa. Alguns de qualidade e livres, mas na sua maioria, perto de 200, malfeitores condenados a degredo, assassinos, ladrões, violadores, desertores, salteadores, a escória das cadeias, trânsfugas do patíbulo que em grande número iriam encontrar no degredo pior vida que a mais infamante morte, ou melhor morte do que a miserável vida que os aguardava».(2)

 

Entre eles ia Manuel Joaquim Mendes de Vasconcelos, que o próprio pai, cansado da suas ´incorrigibilidades’, suplicou às Justiças do Reino a sua deportação para os «Estados da Índia», a fim de, nessas longínquas terras de além-mar, servir a tropa e nela «aprender a ser homem», como se vê, no seguinte Acórdão da Relação, cuja ortografia atualizei:

«Acórdão da Relação, etc. que visto o requerimento de Teotónio Mendes de Carvalho, feito contra o seu filho natural, Manuel Joaquim Mendes de Vasconcelos, em que, expondo a culpável ociosidade deste, a sua incorrigibilidade e ultimamente o considerável furto de dinheiro que lhe fizera, suplica que seja remetido para os Estados da Índia, e como este requerimento justificado com a prova resultante do sumário e com a confissão do suplicado e nas perguntas que fizeram, digo, perguntas que lhe foram feitas, se faz atendível,  pois que, no Serviço e disciplina Militar dos ditos Estados, pode o mesmo suplicado melhorar de costumes e tornar a ser um útil cidadão. Portanto condenam em que vá servir os ditos Estados na tropa, por tempo de dez anos, e pague as custas. Lisboa, nove de Março de mil oitocentos e dois – Pereira de Barros – Veiga – Carneiro e Sá Bragança».(3)

Vem o caso à colação não só para ilustrar o tipo de companheiros de viagem que, 30 anos depois, teria Joaquim José Álvares, na «Charrua Princesa Real», mas também por dois motivos mais:

PRIMEIRO: este ‘malfeitor’ não chegou à Índia devido ao facto do barco ter naufragado à entrada da ilha de Moçambique. Ora, barco naufragado, documentos perdidos e «salve-se quem puder». Ele tornou-se militar, subiu os degraus da carreira de armas e, em 2 de Abril de 1829 – reinava D. Miguel em Portugal -  foi-lhe passada a «Patente Régia de  Governador de Quelimane e Rios de Sena», cargo que ocupou até à morte que ocorreu em Tete, a 16 de Maio de 1832, apenas com 48 anos de idade. Esta ascensão meteórica, de larápio doméstico a Governador de Quelimane e Rios de Sena, dá substância ao dito popular muito vivo entre nós, que só a tropa faz os mancebos «aprender a ser homens».

Ilha MoçambiqueSEGUNDO: Joaquim José Álvares, como veremos mais desenvolvidamente a seu tempo, irá também parar a Quelimane, pouco tempo depois da morte deste Governador, seguidor ferrenho de D. Miguel. Numa das suas visitas a Tete, enquanto governador de todas aquelas terras, no decurso de uma cerimónia religiosa, apercebeu-se de que o oficiante, «António Nunes da Graça, da Ordem dos Carmelitas Descalços, vigário-geral dos Rios de Sena e comissário da sua Ordem» era «malhado constitucional de sete costados, um pernicioso inimigo do Trono e do Altar e que, em boa verdade, e ali em Tete, constituía um pavoroso perigo para o regime». (4)

Um homem tão perigoso assim havia que denunciá-lo, imediatamente, ao Governador de Moçambique Paulo de Brito, no sentido de expurgar tal mal das terras da sua governança. Mas, por ironia do destino, o vigário-geral não só permaneceu no seu posto, como foi ele próprio que teve de fazer o enterro daquele que o denunciou. E, relatando o facto, Almeida de Eça, historiador que estou seguindo, ironiza:

«À beira do coval, o Carmelita murmurou atabalhoadamente a encomendação do ritual e quando atingiu a parte do piedoso sufrágio ‘sit tibi terra levis’ agarrou nervosamente um punhado de terra, lançou-a para o coval, olhou de soslaio o esquife do governador, carregou o sobrecenho e rancorosamente resmungou: sicut plumbum». (5) 

Manuel Joaquim Mendes de Vasconcelos e Joaquim José Álvares, dois degredados para Moçambique, um, em 1802 e outro em 1832, tiveram percursos de vida diferentes:

O PRIMEIRO, de corrécio encartado e ratoneiro familiar, aderente do absolutismo, viu-se promovido por «Carta Régia de D. Miguel» a Governador de Quelimane e Rios de Sena.

O SEGUNDO,  promovido a tenente do Exército Português, por «Carta régia de D. Miguel», em 1828, (como já vimos) sofreu o degredo por não apoiar politicamente quem o promoveu e por não abdicar das suas ideias liberais.

Ideias provindas da França, este militar português acolheu-as com a mesma veemência com que combateu os Franceses, quando estes invadiram Portugal, tempo em que, também, se realizou um embarque de Lisboa para o Brasil, cujos embarcados eram de estatuto bem diferente daquele que se processou na nau «Marialva» a caminho de Moçambique.

Era a Corte Portuguesa e toda a ‘sociedade’ que em torno dela gravitava. Em Portugal ficavam  os que não tinham dinheiro para embarcar e os «militares» no seu posto, incumbidos de defenderem a Pátria.

Joaquim José Álvares, foi dos que ficou no seu posto. Fez todas as campanhas  da Guerra Peninsular, combateu Junot, Soul e Masssena. Foi gravemente ferido, em 1810, na ponte de Mucela, como já referi a seu tempo, onde deu o peito às balas e baionetas. Mas isso de pouco valeu ao romântico e fogoso jovem. Face ao despotismo miguelista, Moçambique continuou a ser a «terra prometida» e esperada para todos os que, no «Reino», acusados eram de afrontar os valores instituídos.

Chegada a sua vez, e pelas razões ditas, embarcou para além-mar, já que «Senhores d'Além Mar em África» eram todos os reis portugueses.

(continua)



Ler 1426 vezes
Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.