HISTÓRIA VIVA
DEGREDADO PARA MOÇAMBIQUE
Ainda que promovido ao posto de tenente por D. Miguel, como vimos no capítulo anterior, ele, recusando-se a aclamar este monarca como «rei absoluto» e, face a essa sua opção política, de pouco lhe valeu a sua brilhante e condecorada carreira militar conseguida até aí, como elemento ativo na Guerra Peninsular.
Preso na Praça de Elvas e remetido para as prisões do Castelo de S. Jorge, Forte de S. Julião da Barra e Cova da Moura, em 1832 seria deportado para Moçambique, na condição de «degredado».
Não foi o único. Teve boa companhia, pois «a lista dos 618 presos políticos que entre 1828 a 1833, entraram na cadeia de S. Julião da Barra é muito expressiva: 227 militares, 93 estudantes, professores e membros de profissões universitárias, 87 de profissões ligadas ao comércio, 78 com profissões populares, 52 funcionários públicos, 44 eclesiásticos, 31 proprietários e lavradores» (1)
Preso em 1828, depois de saborear as ‘comodidades’ da celas do Castelo de S. Jorge, Cova da Moura e S. Julião da Barra, abemos que no ano de 1832, ano em que o exército liberal e D. Pedro entraram no Porto, partiu de Lisboa na «Charrua Princesa Real» com destino à Ilha de Moçambique.
Não tivemos acesso a documentação que informe do dia da partida, nem do número dos seus companheiros de viagem e do seu estatuto social. Mas se recuarmos a 1802, seis anos antes de ele assentar praça em Caçadores 3, ficaremos com uma ideia desses embarcadiços. Os eventos não estão tão afastados assim e quem estiver familiarizado com a lentidão dos tempos e a mudança e/ou permanência das coisas no friso cronolóico da História, a girarem, até muito recentemente, ao ritmo e cadência dos passos da mula de almocreve, aceitará, de boa mente, tudo isso com a seguinte descrição:
«Em 18 de Abril de 1802, a nau de viagem «Marialva» arpou as amarras que a detinham no seu fundeadouro em Lisboa, desferrou as velas e aproou à barra do Tejo, para dali marcar rumo em demanda ao Rio de Janeiro, de onde navegaria para Moçambique e depois para a Índia, em longo e moroso cruzeiro (...) Além da tripulação e guarnição da nau – mais de cem homens – viajava na «Marialva» cerca de 300 passageiros com destino ao Rio de Janeiro, a Moçambique e a Goa. Alguns de qualidade e livres, mas na sua maioria, perto de 200, malfeitores condenados a degredo, assassinos, ladrões, violadores, desertores, salteadores, a escória das cadeias, trânsfugas do patíbulo que em grande número iriam encontrar no degredo pior vida que a mais infamante morte, ou melhor morte do que a miserável vida que os aguardava».(2)
Entre eles ia Manuel Joaquim Mendes de Vasconcelos, que o próprio pai, cansado da suas ´incorrigibilidades’, suplicou às Justiças do Reino a sua deportação para os «Estados da Índia», a fim de, nessas longínquas terras de além-mar, servir a tropa e nela «aprender a ser homem», como se vê, no seguinte Acórdão da Relação, cuja ortografia atualizei:
«Acórdão da Relação, etc. que visto o requerimento de Teotónio Mendes de Carvalho, feito contra o seu filho natural, Manuel Joaquim Mendes de Vasconcelos, em que, expondo a culpável ociosidade deste, a sua incorrigibilidade e ultimamente o considerável furto de dinheiro que lhe fizera, suplica que seja remetido para os Estados da Índia, e como este requerimento justificado com a prova resultante do sumário e com a confissão do suplicado e nas perguntas que fizeram, digo, perguntas que lhe foram feitas, se faz atendível, pois que, no Serviço e disciplina Militar dos ditos Estados, pode o mesmo suplicado melhorar de costumes e tornar a ser um útil cidadão. Portanto condenam em que vá servir os ditos Estados na tropa, por tempo de dez anos, e pague as custas. Lisboa, nove de Março de mil oitocentos e dois – Pereira de Barros – Veiga – Carneiro e Sá Bragança».(3)
Vem o caso à colação não só para ilustrar o tipo de companheiros de viagem que, 30 anos depois, teria Joaquim José Álvares, na «Charrua Princesa Real», mas também por dois motivos mais:
PRIMEIRO: este ‘malfeitor’ não chegou à Índia devido ao facto do barco ter naufragado à entrada da ilha de Moçambique. Ora, barco naufragado, documentos perdidos e «salve-se quem puder». Ele tornou-se militar, subiu os degraus da carreira de armas e, em 2 de Abril de 1829 – reinava D. Miguel em Portugal - foi-lhe passada a «Patente Régia de Governador de Quelimane e Rios de Sena», cargo que ocupou até à morte que ocorreu em Tete, a 16 de Maio de 1832, apenas com 48 anos de idade. Esta ascensão meteórica, de larápio doméstico a Governador de Quelimane e Rios de Sena, dá substância ao dito popular muito vivo entre nós, que só a tropa faz os mancebos «aprender a ser homens».
SEGUNDO: Joaquim José Álvares, como veremos mais desenvolvidamente a seu tempo, irá também parar a Quelimane, pouco tempo depois da morte deste Governador, seguidor ferrenho de D. Miguel. Numa das suas visitas a Tete, enquanto governador de todas aquelas terras, no decurso de uma cerimónia religiosa, apercebeu-se de que o oficiante, «António Nunes da Graça, da Ordem dos Carmelitas Descalços, vigário-geral dos Rios de Sena e comissário da sua Ordem» era «malhado constitucional de sete costados, um pernicioso inimigo do Trono e do Altar e que, em boa verdade, e ali em Tete, constituía um pavoroso perigo para o regime». (4)
Um homem tão perigoso assim havia que denunciá-lo, imediatamente, ao Governador de Moçambique Paulo de Brito, no sentido de expurgar tal mal das terras da sua governança. Mas, por ironia do destino, o vigário-geral não só permaneceu no seu posto, como foi ele próprio que teve de fazer o enterro daquele que o denunciou. E, relatando o facto, Almeida de Eça, historiador que estou seguindo, ironiza:
«À beira do coval, o Carmelita murmurou atabalhoadamente a encomendação do ritual e quando atingiu a parte do piedoso sufrágio ‘sit tibi terra levis’ agarrou nervosamente um punhado de terra, lançou-a para o coval, olhou de soslaio o esquife do governador, carregou o sobrecenho e rancorosamente resmungou: sicut plumbum». (5)
Manuel Joaquim Mendes de Vasconcelos e Joaquim José Álvares, dois degredados para Moçambique, um, em 1802 e outro em 1832, tiveram percursos de vida diferentes:
O PRIMEIRO, de corrécio encartado e ratoneiro familiar, aderente do absolutismo, viu-se promovido por «Carta Régia de D. Miguel» a Governador de Quelimane e Rios de Sena.
O SEGUNDO, promovido a tenente do Exército Português, por «Carta régia de D. Miguel», em 1828, (como já vimos) sofreu o degredo por não apoiar politicamente quem o promoveu e por não abdicar das suas ideias liberais.
Ideias provindas da França, este militar português acolheu-as com a mesma veemência com que combateu os Franceses, quando estes invadiram Portugal, tempo em que, também, se realizou um embarque de Lisboa para o Brasil, cujos embarcados eram de estatuto bem diferente daquele que se processou na nau «Marialva» a caminho de Moçambique.
Era a Corte Portuguesa e toda a ‘sociedade’ que em torno dela gravitava. Em Portugal ficavam os que não tinham dinheiro para embarcar e os «militares» no seu posto, incumbidos de defenderem a Pátria.
Joaquim José Álvares, foi dos que ficou no seu posto. Fez todas as campanhas da Guerra Peninsular, combateu Junot, Soul e Masssena. Foi gravemente ferido, em 1810, na ponte de Mucela, como já referi a seu tempo, onde deu o peito às balas e baionetas. Mas isso de pouco valeu ao romântico e fogoso jovem. Face ao despotismo miguelista, Moçambique continuou a ser a «terra prometida» e esperada para todos os que, no «Reino», acusados eram de afrontar os valores instituídos.
Chegada a sua vez, e pelas razões ditas, embarcou para além-mar, já que «Senhores d'Além Mar em África» eram todos os reis portugueses.
(continua)