Trilhos Serranos

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quinta, 19 janeiro 2017 15:09

TROPA - REGIMENTOS MILITARES, 4

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TROPA, 4

E creio ter chegado ao ponto que me levou a reler os REGIMENTOS  de D. Sebastião, para refletir sobre a expressão "tropa-fandanga". Necessário é, todavia, darmos um salto do século XVI para o século XVIII e, já agora, até aos nossos dias. 

Vimos no juramento do capitão-mor que ele assinou "por sua mão". Está-se mesmo a ver que, por este Reino afora, seriam muito poucos os que tinham privilégio de saber ler e escrever. É tema que para a maioria de nós não precisa demonstração. É só lembrar o grau de analfabetismo que existia nos meados do século XX.

REGIMENTOS-REDZEm 1758, os abades e reverendos das paróquias que hoje integram o concelho de Castro Daire, respondendo ao inquérito mandado fazer pelo Marquês de Pombal visando apurar, entre outras coisas, saber os efeitos do terramoto de 1755, em todo o país, à pergunta se «havia na terra homens insignes em armas e letras» responderam genericamente que «não»,  sem mais comentários.

Diferentemente procedeu, porém, o Abade de Ester, Bernardo Ferreira da Costa, que usou de uma ironia que ainda hoje delicia qualquer homem que ama as letras e as estilísticas figuras literárias. Ora vejam:  ARMAS? «Têm os seus arados e mais ferramentas agrícolas com que ganham o pão de cada dia».  LETRAS? «Como bons cristãos que são, assinam de cruz quando a vara do juiz lhes bate à porta». 

Estou a falar das gentes da serra do Montemuro e as luzes que elas tinham das letras no Século das Luzes. E como recentemente, num trabalho sobre "Mões"  falei no Capitão-mor, aqui fica um complemento dessa crónica, por forma a que os naturais daquela vila, que tanto apreciaram o trabalho, saibam quais eram as suas atribuições e responsabilidades.

E volto assim à vaca fria. Ninguém podia escapar-se a prestar serviço na ORDENANÇA e, como se isso fosse pouco, proibidos estavam, sob as penas que já vimos, de "usar capa" nos exercícios.

Ora, sabendo eu que os REGIMENTOS eram extensivos a todo o Reino, a todas as suas cidades, vilas e concelhos e aldeias do termo, mas ignorando, embora, que tipo de capa era essa, assento que não era, seguramente, "capa de estudante" pois os estudantes eram poucos nas terras de Sua Majestade ou não os havia por serras em fora. E não sendo "capa de estudante" também não era, seguramente, a capa  dos três mosqueteiros,  ou aquelas que todos nós conhecemos dos filmes de "capa e espada". Essas, a existirem, só nobilitavam as tropas de Sua Majestade e não o contrário. Assim, por exclusão de partes, não sendo essas as capas, sou obrigado a concluir que a "capa" condenada em exercício militar era nada menos do que "capucha", a capa serrana que chegou aos nossos dias, indumentária do pastor, do lavrador, do camponês, de pé descalço ou de tamancos, aqueles que eram obrigados a integrar a ORDENANÇA. E se ela chegou ao século XXI usada por serranos, sendo-lhes embora útil, mal ficava nos militares d'El-Rei. E, proibindo o seu uso durante o exercício, o jovem monarca, sem saber, quase duzentos anos antes do fandango se justapor à tropa, não queria que os seus homens de guerra, arregimentados nos moldes em que oeram, se apresentassem em parada como tropa-fandanga. 

E como diferente é a HISTÓRIA extraída assim diretamente das fontes manuscritas ou impressas daquela que aprendi na Escola Primária. Por mais arreigado patriotismo que me penetre a alma, não é sem algum desconforto e frustração que vejo cair os ídolos com pés de barro, os heróis que encantaram minha infância. 

link de vídeo da CAPUCHA: https://youtu.be/wp6HXsvGOa0

 D. João V - REDZD. JOÃO V

Os tempos de outrora não rodavam ao ritmo dos tempos de hoje. A História mostra-nos que antes da Revolução Industrial tudo rodava à velocidade do passo do almocreve e do andamento das mulas que levavam sobre a albarda a traquitana necessária à guerra. É só ver que o REGIMENTO MILITAR de D. Sebastião, feito no século XVI, ainda que com algumas alterações nos tempos subsequentes, chegaram ao tempo de D. João V, século XVIII. Ele assim o diz ao acabar com o processo de eleição dos comandantes da Milícia que se fazia nas Câmaras Municipais e introduzir novo processo. A partir daí os cargos de comando seriam ocupados por «pessoas da melhor nobreza, cristandade e desinteresse», bem diferente daquelas que a esses cargos tinham acesso no tempo de D. Sebastião. Lembram-se? Olhem o respigo:

«Para que os Capitães das companhias e os Alferes e Sargentos delas folguem mais de servir os ditos cargos e por lhes fazer mercê, hei por bem que cada um deles goze e use do privilégio de Cavaleiro, posto que o não seja (...) Gaspar de Seixas o fez em Almeirim a dez de dezembro de M.D.LXX. Jorge da Costa o fez escrever» (pp. 133)

Mas foi ainda no tempo de D. Sebastião que vislumbrámos um mal estar na «nobreza de linhagem» resultante, certamente desta atitude do Monarca. E disso ele nos dá conta na «Provisão sobre as ordenanças agora novamente feita com algumas declarações que não estavam nos Primeiros Regimentos:

 «(...)

Hei por bem que em todos os lugares, onde houver alguns criados meus ou da Rainha e infantes ou outras pessoas que sejam escudeiros de linhagem e daí para cima, que não tiverem cavalo por não terem a quantia da fazenda que a Lei dispõe, se faça das tais pessoas uma esquadra, ou duas, segundo a quantidade que delas houver na companhia em que forem assentadas, a qual esquadra, ou esquadras irão sempre no melhor e mais honrado lugar da companhia e o Capitão dela terá seu Cabo de Esquadra, e as tais pessoas no dia em que a sua companhia houver de sair, irão buscar o capitão dela que há de ser seu Cabo, a sua casa e daí irão com ele no melhor lugar da companhia, onde o exercício se houver de fazer; e não havendo em alguns lugares tantos criados meus, ou da Rainha e Infantes, ou outras pessoas de qualidade que conforme ao acima dito hajam de fazer uma esquadra, todavia irão juntos a par do Capitão no melhor lugar da Companhia e ele será seu Cabo, como dito é. Hei por bem que se não contem por homens de cavalos aqueles, cujos cavalos sirvam também de albarda e serão obrigados a ir na Ordenança de pé, como se não tivessem cavalos».

Hoje, ontem e sempre a ascensão social nem sempre foi bem vista pelas classes de ordem superior. Vemos aqui um exemplo, mas eu posso trazer outro arrancado às profundezas da Idade Média. Ele está nas Inquirições de D. Afonso III, de 1258. O caso foi que em terras de «Sancti Martini de Cavanon» um tal senhor de seu nome «Donus Beloy, vilanus, fecit ipsam ecclesiam in sua propria hereditatem, et milites de Amaral filiaverunt eam por forciam». Quer dizer, Donus Beloy, seguramente «cavaleiro vilão», com fazenda suficiente que lhe permitia antepor ao seu nome o título "Dom", fez a igreja nas suas propriedades, mas os "milites" pertencentes à nobreza de linhagem, a fina flor da sociedade ao tempo, mostraram a «nobreza» do seu quilate, zás: "tomaram-na à força". Qual "Dom", qual carapuça. Isso só para nobreza de sangue.

Mas vejamos a principal alteração regimental de D. João V, em 1709:

 «Eu ElRei faço saber aos que este Alvará virem que tendo consideração a que o Regimento que o Senhor Rei D. Sebastião estabeleceu para o bom regímen e serviço das Ordenanças, sendo o mais ajustado à razão e benefício dos Povos, procurando que o governo deles e das companhias fosse á sua eleição se tem pelos mesmo povos abusado dele, fazendo-se eleições geralmente com dolo e violência de que resultam crimes, despesas e descrédito de famílias inteiras, criando-se ódios que se conservam de pais a filhos em grande desserviço de Deus e grave dano à consideração de meus vassalos, cujos excessos não tem atalhado as repetidas ordens que os Senhores Reis meus predecessores mandaram passar em corroboração e inteira observância do dito Regimento, nem o castigo que vários lugares tem experimentado com as alçadas a que deu motivo a sua contumácia; antes de ter mostrado a experiência que cada dia cresce a sua rebeldia, achando-se a maior parte dos concelhos com grande escândalo  da Justiça e perturbação do bom governo.

Desejando eu  evitar este dano e que em meus vassalos haja toda a união e que sejam governados por pessoas dignas de ocupar os postos Militares e não por aquelas que com maior poder e séquito sem merecimento, ou capacidade os usurpam para suas vinganças: hei por bem extinguir as ditas eleições dos postos da Milícia, derrogando nesta parte o dito Regimento, ficando eu seu vigor as mais disposições dele. E porque não é minha intenção dissipar das Câmaras  a jurisdição que tinham em se fazerem nelas as tais eleições, concorrendo para elas co seus votos, antes fiando dos oficiais que nas ditas Câmaras me servem, o façam com aquele zelo e atenção que devem pela obrigação de seus cargos: quero e mando que nas cidades, vilas e concelhos destes meus Reinos em que estiverem vagos ou vagarem os postos de Capitães mores, Sargentos Mores e Capitães das companhias da ordenança delas, se guarde a forma seguinte: estando vago ou vagando o posto de Capitão Mor de qualquer cidade, vila ou concelho em que não assistam os Senhores deles, ou os Alcaides Mores, farão os oficiais da Câmara dele aviso ao Corregedor, ou Provedor da Comarca, qual se achar mais  vizinho, o qual será obrigado a ir à dita Câmara e com os oficiais dela farão entre si com toda a atenção e zelo escolha de três pessoas da melhor nobreza, cristandade e desinteresse; do limite do mesmo Concelho, vila ou cidade e com individuação das circunstâncias e aceitação que concorrem em cada uma das ditas pessoas, farão uma informação ao General, ou Cabo que governar as armas da Província, a qual assinarão o corregedor, ou Provedor que assistir e os Oficiais da Câmara e o General, ou Cabo tomando as informações necessárias me proporá pelo meu Conselho de Guerra as pessoas que julgar mais convenientes para ocupar o dito posto (...) e para os provimentos dos postos de Sargentos Mores e Capitães das companhias se guardará a mesma forma (...)  Manuel Duarte de Carrião o fez em Lisboa aos dezoito dias do mês de Outubro de mil setecentos e nove anos.  João Pereira da Cunha Ferraz o fez escrever. REY»  (pp. 160-168)

(continua)

 
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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.