Trilhos Serranos

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quinta, 19 janeiro 2017 15:07

TROPA - REGIMENTOS MILITARES,3

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A TROPA, 3

No meu livro "Cujó, uma terra de Riba-Paiva" editado em 1993, deixei dois episódios registados na tradição oral relacionados com fuga ardilosa de dois mancebos ao recrutamento militar em tempos distantes, quando foram surpreendidos pelos recrutadores aparecidos de imprevisto. E, face à forma como tal se fazia, não custa nada emprestar-lhe autenticidade. Vejamos mais um trecho do REGIMENTO:

 REGIMENTOS-REDZ"O Capitão Mor da gente de qualquer cidade, vila ou concelho saberá ao certo com muita diligência e brevidade quanta gente há no lugar de sua Capitania e seu termo que conforme a dita lei é obrigada a ter armas e a fará toda assentar por Escrivão da Câmara do dito lugar, nomeando cada um por seu nome, com as mais declarações necessárias em um Livro que para isso haverá, de que as folhas serão numeradas e assinadas pelo dito Capitão conforme a Ordenação, com tanto que não sejam pessoas Eclesiásticas, nem Fidalgos, nem outras pessoas que continuadamente  tenham cavalo, nem  outras de dezoito anos para baixo, nem se sessenta para cima, não parecendo ao Capitão Mor que destas idades devem também entrar na Ordenanças algumas pessoas que por terem aspeto e disposição para isso, porque neste caso entrarão. E não se poderá escusar pessoas alguma das que conforme a este Regimento tem obrigação de entrar na Ordenança por razão de  privilégio algum de qualquer qualidade que seja, posto que incorporado em direito ou por contrato, porque por esta vez e para este efeito hei por derrogados todos os ditos privilégios, havendo respeito a ter para bem das mesmas pessoas e assim dos povos.

(...) 

E porque conforme a este Regimento nos ditos lugares e aldeias dos Termos  das cidades, vilas e concelhos, há também de haver ordenanças e exercício de armas o Capitão Mor da cidade, vila ou concelho se ajuntará em Câmara, com os oficiais dela e por todos se elegerão Capitães às Freguesias, Vintenas e Lugares dos ditos Termos, repartindo os lugares e aldeias de maneira que haja em cada Capitão ao menos cem homens pela ordem acima declarada e que se possam ajuntar cada vez que conforme a este Regimento tem a isto obrigação. E pela mesma maneira se elegerão em Camara os mais Oficiais das companhias dos ditos Termos que forem necessários.

(...)

 Cada um dos capitães das companhias terá sua Bandeira de Ordenança e um Tambor e de sua mão dará a Bandeira ao Alferes, quando a dita Bandeira houver de sair fora e com o Tambor fará servir um criado seu que para isso mandará ensinar pelo honrado cargo que se lhe dá. E quando o Capitão da companhia for impedido de tal impedimento que não possa ir em pessoa com a dita gente, irá em seu lugar o Alferes da dita companhia, ao qual  obedecerá toda a gente dela da maneira que são obrigados obedecer ao seu Capitão, e em lugar do Alferes servirá um dos Cabos de Esquadra e em lugar dos Cabos de Esquadra um dos da companhia, qual para isto ordenar o Capitão. E quando o impedimento, ou ausência do Capitão durar mais de um ano, o Alferes que em lugar do dito Capitão e a companhia houver de servir de Capitão, será posto pelo dito Capitão Mor e lhe dará juramento que sirva o dito cargo bem e verdadeira mente guardando em todo o que se contem neste Regimento".

 
Vemos que por ausência, ou impedimento do titular do cargo, estava bem estipulada a ordem sucessória no comando. E, por ausência prolongada, na promoção do alferes a capitão, vejo o gérmen da velha expressão castrense: "a antiguidade é um posto". 

Tropas organizadas em ESQUADRAS, COMPANHIAS E BANDEIRAS, com o número estipulado para cada uma delas , vejamos agora como eram essas tropas eram exercitadas de modo a ficarem prontas para enfrentar a moirama, que era o inimigo imediato e próximo, ali mesmo no norte de África. Assim:

 "E para a dita gente se exercitar na Ordenança e uso das armas e bom tratamento e limpeza delas: hei por bem que cada oito dias haja exercício em domingo ou dia Santo. E no lugar onde houver uma só Bandeira irão ao exercício duas esquadras que são cinquenta homens, a um domingo, e outras duas ao outro, até irem todas E a gente desta Bandeira se exercitará toda junta no cabo do mês. E onde houver duas Bandeiras irão cada domingo cinco esquadras de maneira que cada quinze dias se exercite uma Bandeira toda junta. E se forem mais Bandeiras que duas, irá uma Bandeira cada domingo de maneira que por esta ordem se exercitem todas as companhias uma vez em cada mês.

Os Cabos de Esquadra terão cuidado de ajuntar cada um, a gente da sua esquadra e ir com ela em Ordenança de cinco em cinco ou de três em três, todos com suas armas assim arcabuzeiros, e besteiros com os lanceiros e piqueiros onde estiver o Capitão da sua companhia e com ele na dita Ordenança irão com sua Bandeira e Tambor ao Lugar onde se houver de fazer o exercício que será no campo. E o dito Capitão fará fazer barreira e cada um dos atiradores atirará um tiro por obrigação, fora os mais que quiserem atirar por sua vontade e o que melhor atirar este tiro entre os arcabuzeiros e espingardeiros nos lugares que tiverem nas cabeças de quatrocentos vizinhos para cima, haverão um tostão de preço, entre os besteiros haverá meio tostão. E o lanceiro que levar sua lança e espada mais limpa e melhor tratada, haverá meio tostão. E nos lugares que tiverem nas cabeças dos ditos quatrocentos  vizinhos para baixo, haverá a metade dos preços; e aos arcabuzeiros e espingardeiros será dada pólvora e chumbo para este tiro; e o Capitão da Bandeira estará ao atirar da barreira e será Juiz dos preços que se ganharem. E o recebedor do dinheiro que nisto se há de despender entregará ao Capitão de cada companhia o que for necessário para os preços de cada um dos dias, em que os há de haver para os pagarem logo a quem os ganhar. E se alguém se agravar do que o dito Capitão sobre isto julgar, irá ao Capitão Mor com seus agravos e ele determinará verbalmente as dúvidas que dos tais preços nascerem".

(...)

Para que os Capitães das companhias e os Alferes e Sargentos delas folguem mais de servir os ditos cargos e por lhes fazer mercê, hei por bem que cada um deles goze e use do privilégio de Cavaleiro, posto que o não seja (...) Gaspar de Seixas o fez em Almeirim a dez de dezembro de M.D.LXX. Jorge da Costa o fez escrever» (pp. 133)

 (...)

 Os Corregedores das Comarcas quando forem por correição aos lugares delas e aos Provedores das ditas comarcas, naqueles lugares onde os ditos corregedores não entrarem por via de correição, tendo informação que os Capitães Mores ou os Capitães das companhias, ou outros Oficiais delas escusam algumas pessoas de ir na Ordenança que conforme ao Regimento devam ir nela, ou lhe levam peitas, ou dádivas ou fazem em seus cargos outras cousas que não devam e dão opressão ao Povo e que há disto escândalo, tirarão testemunhas e achando culpados alguns Capitães Mores, Senhores de terras e Alcaides Mores mo escrevam e me enviarão o treslado das culpas de cada um para nisso mandar proceder como houver por meu serviço e contra todos os outros Capitães Mores ou das companhias que não forem Senhores de terras e Alcaides Mores e quaisquer outros oficiais delas que acharem culpados, procederão como for justiça, dando apelação e agravo nos casos em que couber para a pessoa que em minha corte nomear e não para as Casas da Suplicação, nem de Cível. E procederão nisto sem delongas e o mais sumariamente que conforme o direito pode ser (...) Gaspar Seixas a fez em Almeirim a quinze dias do mês de maio de mil e quinhentos e setenta e quatro. Jorge da Costa a fez escrever» (pp, 159)

Está visto. Cada habitação de "vassalo" (em cidade, vila, aldeia ou lugar) era uma camarata ou caserna do quartel nacional. E num Reino com características marcadamente medievais (aquelas que chegaram vivinhas da silva até à nossa mocidade)  cada sapateiro urbano ou camponês das aldeias, de enxada, de chuço ou de pique, forquilha e machado, estadulho ou fueiro na mão, era um soldado de Sua Majestade obrigado a integrar a Bandeira, a Esquadra ou a Companhia próximas. Os arqueiros e os besteiros que integravam essa células militares eram de outra laia.

E no exercício militar era obrigado a dar pelo menos um tiro, como vimos. Os amigos que exerceram ou cumpriram (tal como eu) o serviço militar noutros moldes de organização estão a ver o filme: as rodovias, as habitações, os arados nos campos, os rebanhos na serra e mesmo em redor de Lisboa, os pisões junto de rios e ribeiros a fazerem o burel para o vestuário: calças de burel, coletes de burel, casacos de burel, capuchas de burel. Tudo de burel, aquele que chegou aos meus tempos, eu que o usei, eu que sou neto de pisoeiro.

Por favor, amigos, dispensem-me de pôr a bobine na máquina de projetar e, aos 77 anos, retornar ao "Cinema Santiago", em Tete, onde fui projecionista aos 22. Mas sempre direi, mais uma vez, o quanto a HISTÓRIA nos ensina, ou nos lembra. Não fossem os livros, os documentos e o produto da investigação, quem é que de nós, a vivermos no século XXI, saberia da existência da "cunha" e da "peita", nestas coisas de livrar os mancebos da tropa, seja em tempo de guerra ou em tempo de paz? Não. Ora essa! Nós nunca vimos falar de tal, nem soubemos de tal coisa. E há quem não queira lembrar isso. Certamente aqueles para quem os meus textos são incómodos.

Quatro anos depois, isto é, em 1574, D. Sebastião entende, através de uma «Provisão», aclarar algumas dúvidas suscitadas na lei anterior e dela me sirvo para relevar o que julgo estar na base da expressão que me levou a digitalizar os retalhos que aqui deixei do "REGIMENTO" do Rei Desejado. Assim:

 "(...) Porque na Milícia uma das coisas que melhor parece e mais convém para o exercício da guerra é andarem os Sargentos Mores, Capitães das Companhias, oficiais e soldados delas em corpo, hei por bem que Sargento Mor algum, nem Capitão, nem outro oficial da companhia, nem soldado possa trazer capa, depois de se formar a companhia e sair do lugar costumado ou da casa do Capitão, até se tornar a recolher e desfazer E qualquer Sargento Mor, ou Capitão das companhias das cidades destes Reinos e das vilas que sem o termo forem de quinhentos vizinhos e daí para cima, quem o contrário fizer pagará pela primeira vez que for achado com capa mil reis e pela segunda dois mil reis e pela terceira três mil reis. E os Sargentos Mores e Capitães das companhias das outras vilas e lugares menores pagarão a primeira vez quinhentos reis e a segunda mil reis e a terceira mil e quinhentos reis.

E os outros oficiais das companhias pagarão pela primeira vez trezentos reis e a segunda seiscentos e a terceira mil reis.

E uns e outros estarão pela terceira vez quinze dias na prisão que lhe pertencer segundo a qualidade das suas pessoas; e isto se entenderá assim sendo compreendidos todas as três vezes dentro de seis meses. E os soldados incorrerão por este caso nas mesmas penas em que por bem do Regimento Geral das ordenanças incorrem  aqueles que não vão aos exercícios nos dias da sua obrigação (...)"

Proibidos a usar "capa" durante o exercício militar, sob a pena estipulada se desobedecessem, perguntei-me que raio de  "capa" seria esta tão desprestigiante para o exército de Sua Majestade. é como vemos a seguir:

Proibidos a usar "capa" durante o exercício militar, sob a pena estipulada se desobedecessem, perguntei-me que raio de "capa" seria esta tão desprestigiante para o exército de Sua Majestade.. Alvitro que seja a capucha serrana que chegou aos nossos dias.    (CONTINUA)

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.