Trilhos Serranos

Está em... Início Crónicas BALTAR - O ABACATEIRO
sábado, 09 maio 2020 15:25

BALTAR - O ABACATEIRO

Escrito por 

EMIGRANTE NACIONALIZADO

Há um bom par de anos, não sei se de barco ou de avião, numa altura em que a GLOBALIZAÇÃO, o TURISMO e o COMÉRCIO à escala mundial, não tinham ainda forjado os estreitos elos de ligação entre povos e nações, a deslocação fácil de pessoas e produtos; tempo de ver e conhecer monumentos e culturas diferentes; tempo de apreciar e saborear o que de exótico e diferente existe no mundo; tempo que as grandes superfícies comerciais, essas catedrais do CONSUMISMO, eram coisas do porvir, chegou a Portugal um EMIGRANTE, cuja identidade estava estampada no seu passaporte. Nele se mostrava o seu nome, o seu rosto e o próprio e país de origem.

 

D.ISABEL - CópiaUma senhora de Baltar, de seu nome ISABEL, casada, ainda jovem, possuidora de terras de regadio e de árvores de fruta, vendo, pela primeira vez aquele fruto desconhecido - PERA ABACATE de seu nome - mirou, remirou e, levada pela viva curiosidade feminina, resolveu comprar uma. Somente uma. Queria saber o que era e que sabor tinha, já que vinda de longe, invulgar e desconhecida era na região.

Pensado e feito. Naquele dia, na sua seira de compras domésticas, juntamente com as demais necessárias em sua casa, que a levaram à feira do “crasto”, vinha incluída aquela peça de fruta exótica de nome e de feitio. Era isso. Ela não deixaria de ser uma surpresa para o marido, tão jovem quanto ela, um homem que, ligado à lavoura aprendera de pequenino a desvendar os segredos da terra, a exercer ofício ancestral de lavrador e saber de cor e salteado a arte e o tempo de semear e de recolher.

Na hora da refeição, a D. Isabel, sentada à mesa com o consorte, naquele seu feitio de nascença, natural e espontâneo, com malícia bastante a sair-lhe dos olhos, fitando a surpresa do marido, disse-lhe sorridente:

- Hoje vais provar fruta diferente, uma peça em que nunca ferraste dente.

E, à sua frente, numa mão a faca e na outra a pera, golpeou-a ao comprido, em duas partes. Mas, se pensou surpreender o marido, surpreendidos ficaram ambos com o caroço enorme que se aninhava no seu interior. Redondo, castanho, liso, escorregadio e duro, soltou-se do miolo da pera deixando nas duas metades uma covinha correspondente ao espaço que ocupava. Era a semente extraída por cesariana do ventre da mãe, pronta a entrar na terra e a cumprir o código genético nele inscrito pela natureza, nada mais do que o encargo de difundir a sua espécie em todo o sítio que lhe não fosse adverso. Bastava que caísse ou fosse semeada em solo e clima favoráveis. Mas, solo e clima favoráveis, segundo os livros da Botânica, não tínha, seguramente, uma semente tropical, em terras de Baltar, uma aldeia da Beira Alta, concelho de Castro Daire, sitos no hemisfério norte, longe do seu habitat natural. Pena sua.

ABACATEIROPorém, a D. Isabel e o marido ignoravam essas minudências da Botânica. E, pera dividida ao meio, caroço castanho, redondo, lustroso e escorregadio posto de lado, cada um botou mão à sua colher e cada qual, com a sua metade aninhada na concha da mão, levaram à boca colheradas daquela massa macia esverdeada, estranha na textura e no sabor.

- Sim, nunca comi - retorquiu o marido, com igual malícia - mas a fruta cá da casa é mais saborosa.

E era. Habituados aos paladares ancestrais das frutas da região, aquele sabor esverdeado não lhes caiu atrativamente no goto. Não merecia repetir a compra e a experiência.

Contudo, assente ideia, a D. Isabel, com tanta terra em redor de sua moradia, ignorando a genética, o habitat natural e as condições de clima necessários à árvore que produziu tal fruto, olhou para o caroço e pensou que seria um pecado atirá-lo ao lixo. Habituada a semear, a plantar e a colher, agarrou nele, fez um furo na terra, quase à entrada da moradia e deixou que a natureza cumprisse as suas leis. E ela cumpriu. O caroço germinou, fez-se planta, fez-se árvore, tomou copa, floriu e, muito preguiçosamente, começou a dar fruto. Uma alegria e um espanto, lá em casa. O filho mais velho da D. Isabel foi para Angola, onde reside e trabalha. Rodeado, a bem dizer, de abacateiros. E todas as vezes que vem à casa da mãe, não deixa de mostrar a sua estranheza ao ver cá, aquela árvore solitária, forte e sadia, a dar peras tão boas como as de lá.

ABACATE NA ÁRVORECom efeito esta espécie de pera e de outras frutas tropicais, só chegaram em abundância a Portugal com a vinda dos RETORNADOS das ex-colónias e posterior criação das grandes SUPERFÍCIES COMERCIAIS. Até então a generalidade dos portugueses ignorava a forma, a cor e o sabor da ANONA, da  PAPAIA, do MAMÃO, da MANGA, do ABACATE e de outras congêneres que, hoje em dia, ocupam vulgarmente as prateleiras dos mercados. E longe estavam de pensar que todas essas frutas faziam parte da dieta alimentar daqueles emifrantes que por, por essas terras longínquas e quentes, deixaram anos de vida ou, até, vidas inteiras.

Fui a Baltar recentemente para filmar, mais uma vez, um CASTANHEIRO CENTENÁRIO (se não é milenar) que é propriedade sua. Um monumento vegetal, lorcado pelos anos, que bem pode remontar aos primórdios da nossa nacionalidade, a fazermos fé no saber popular: “trezentos anos a crescer, trezentos anos no seu ser e trezentos anos s morrer”, saber respaldado pelo estudo dos cientistas BOTÂNICOS que afirmam pertencer o CASTANHEIRO à família “fagaceae” de folha caduca, atingir a altura de 30 metros e 1500 anos de vida, só tendo por parceiros nesta maratona de longevidade, o CARVALHO, o CEDRO e o CIPRESTE, todos de vida longa.

2013-BALTAR.D.I.SABEL - CópiaGentil, como sempre, disposta abertamente a colaborar na divulgação daquilo que é IMPRESSIONANTEMENTE NOSSO, disse-me que ignorava a certidão de idade daquele CASTANHEIRO, pois sempre o conhecera assim poderoso e corpulento, a produzir anualmente cestas e cestas de castanhas. Mas se ignorava a idade daquela árvore, podia mostrar-me uma outra, também digna de ir para o mundo, que foi por ela própria semeada, ali juntinho à sua casa. Invulgar. Que a fosse ver e filmar.

E levou-me até ela. Era nada menos do que o ABACATEIRO de porte, copa  majestosa e muito florida, neste mês de maio. Na minha frente estava uma árvore cujo fruto e semente vieram, há muito tempo,  de terra estranha. Semeada e nascida aqui, em Baltar, aqui, em Castro Daire.

Atenta à minha admiração, foi o desfiar da sua história que, a viva voz,  gravei em vídeo e agora ponho em letra redonda, neste texto amplamente ilustrado. O vídeo foi alojado no Youtube e este texto é um complemento dele. É só clicar no link que anexo em rodapé.

ABACATE ABERTAAo sair de sua casa, a D. Isabel ofereceu-me a PERA que filmei, caída naquele dia. Mas não antes de, inpulsionada pela sua sensibilidade e feitio muito pessoais de levar ao mundo o conhecimento e o saber, fazer questão de eu filmar, também, aquelas outras que, penduradas na copa, esperavam ser colhidas ou, por a maturação e força da gravidade, viessem, por si próprias esfacelar-se no chão ou ficarem com as marcas da queda livre.

Foi com todo o gosto que lhe fiz a vontade. Agradeci a oferta e parti. Já em Fareja, lavada e aberta, nunca uma pera destas me soube tão bem. Retornado de Moçambique, onde, durante 17 anos, saboreei toda a espécie de frutos tropicais, consumidor deles continuei a ser em Portugal, quando, abundantemente, tomaram lugar nas prateleiras dos super ou minimercados. Mas o paladar desta oferta fez-me retornar ao momento em que, pela primeira vez, ferrei o dente em pera semelhante. Tinha 22 anos. E, num instante (cousas da memória), recuperada essa sensação, como é que, aos 80 anos de idade, eu não podia ficar grato a tão gentil SENHORA, se ela, com um simples e inesperado gesto, me fez regressar à mocidade, à idade dos sonhos e das esperanças com uma vida inteira pela frente, agora, que ela se aproxima do fim?

clicar no link  https://youtu.be/knWhzZeA8ko

 

Fareja-09-05-2020

Ler 1186 vezes
Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.