Trilhos Serranos

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quinta, 21 novembro 2019 13:05

USEIRO E VEZEIRO DA CADEIA

Escrito por 

O HOMEM E O MEIO

Em 17 de novembro, p.p., fazendo uso o meu mural do Facebook (O FACEBOOK É UMA LIÇÃO) publiquei a cópia digitalizada do REGISTO DE ENTRADA na cadeia comarcã de Castro Daire de um jovem de 18 anos de idade, agricultor, natural dos Braços de Cá, “filho natural de Eufémia Ferreira” (v.g. “filho ilegítimo”) e, subsequentemente, lancei o DESAFIO aos meus amigos facebookeanos para, baseados nos dados lançados nesse registo, atentos aos “averbamentos” de repetidas “entradas” e correspondentes “saídas” deixados na margem direita da folha, darem continuidade a uma narrativa a que eu próprio dei início, assim:

 

”Era uma vez uma mãe solteira, natural dos Braços, concelho de Castro Daire. Em 1911 teve um “filho natural” que criou com todo o amor de mãe. Já criado, com 18 anos de idade, o filho foi preso, não por “furto”, à semelhança de tantos outros que, nesse tempo, davam entrada na cadeia, mas por....”

ASSENTOE por aqui me fiquei esperançado de ver que a narrativa seria continuada pelos meus amigos, tendo por protagonistas a Mãe Eufémia e o Filho Júlio. Os “averbamentos” deixados na ficha prisional, nomeadamente a frequência de entrada e saída na cadeia, dariam assunto bastante para sobre ele refletirmos “socialmente” e imaginarmos o que teria levado um jovem daquela idade a ser assíduo cliente da cadeia, não por “furto”, como seria de esperar naqueles tempos (estávamos em 1929) mas por “ofensas corporais” e “embriaguez”.

Mal sucedido neste meu DESAFIO, desacompanhado na “escrita criativa” tal qual fazia na escola, levando os alunos a continuarem uma “estória” começada por outro, dita “narrativa aberta”, vou eu reler novamente o REGISTO de entrada na cadeia e “averbamentos” por forma a completarmos a “estória” e a ficarmos com a ideia do perfil do jovem e do meio onde foi gerado e criado.

Dito isto, conhecida a sua origem e identificação, “filho natural  de  Eufémia Ferreira”, agricultorverificámos que ele “não assinou” o auto de entrada por “não saber escrever”, o que, ao tempo, a bem dizer, não constituiria notícia notável por serem poucos os portugueses que, por este Portugal afora, manejando bem uma enxada, embora, não sabiam manejar uma caneta, nem conheciam o tamanho e feitio de uma letra.

Dezoito anos feitos, com um buço sob o nariz a dizer-lhe que já era quase um homem, uma “cicatriz na mão esquerda, entre o polegar e o indicador”, vemos o Júlio agarrado às terras durante o dia e nas horas de lazer metido nas tavernas, onde houvesse outros comparsas com quem ele fazia súcia. E fazem o quê? Falavam de quê? Jogam a sueca e bisca lambida, contam anedotas e façanhas de briga,  e falam do que fazem todas as pessoas da aldeia, sejam homens, sejam mulheres. E onde quer que se juntassem, novos, velhos, ou de meia-idade, um pingo de vinho a mais, uma palavra fora de tom, um grão na asa, é mais que certo vir a terreiro, como ofensa pessoal, a sua filiação. E dito e ouvido isso, estava o caldo entornado para o Júlio.

É bem conhecida a expressão que, em certos meios sociais e culturais, salta da boca fora mais rápida que um espirro inesperado. E acontece sempre que alguém, querendo ofender o filho, ofende a mãe. E isso era coisa a que o Júlio, no vigor da vida, sangue na guelra, músculo de cavador, respondia imediatamente a murro, a pau ou navalhada. Aquela cicatriz na “mão esquerda, entre o polegar e o indicador”, era sinal de que no seu bolso a “naifa” estava prontinha a ser desembolsada e a fazer no provocador o que já lhe tinham feito a si. Essa cicatriz dizia mais sobre a sua identidade do que a impressão digital gravada a negro deixada, para sempre, na ficha prisional. Ambas eram um desafio futuro aos especialistas da Justiça e da Psicologia, a estabelecerem cientificamente a conexão entre os traços curvilíneos da pele e os traços tortos/direitos das personalidades e comportamentos.

Ele foi preso pela primeira vez em 16 de julho de 1929, condenado pelo crime de “ofensas corporais”. E, cumprida a pena, retornou à cadeia em 21 novembro do mesmo ano, “condenado a 15 dias de prisão correcional, 5 dias de multa a 1.00 por dia, 100.00 de imposto de justiça, por não pagar tem de cumprir 40 dias de prisão”.

Moço irrequieto, rebeldia a correr-lhe no sangue, mal andaria quem, querendo ofendê-lo, ofendesse a mãe. E aprendido o caminho para a cadeia, tornou-se useiro e vezeiro a ocupar a tábua que lhe disseram ser sua, naquela casa de janelas gradeadas, ali mesmo pegada á casa brasonado dos Aguilares. Cresceu a ouvir dizer nas feiras, romarias e tavernas que “todos temos uma tábua na cadeia e outra no hospital”.  E ele, sabendo isso, todas as vezes que se via envolvido em zaragata, preferia dispensar a tábua do hospital e fazer uso da tábua da cadeia. Assim o atestam os seguintes averbamentos:

Cadeia “1 - Deu novamente entrada nesta cadeia no dia 27-1-1930, pelas 21 horas.

2 - Deu novamente entrada nesta cadeia em 15 de maio de 1930.

3 - Deu novamente entrada nesta cadeia em 4 de agosto de 1933, por ofensas corporais.

4 - Deu novamente entrada nesta cadeia no dia 27 de outubro de 1937, a fim de cumprir a pena a que foi condenado em 3 dias de multa a 7.00 por dia e 50.00 de imposto de justiça pelo crime 185 do Código Penal, parágrafo 3. Embriaguez”.

Por certo anotaram (além da subida dos custos judiciais) que todas estas entradas e saídas, nos anos que decorrem entre 1929 e 1937, os crimes que o levaram à cadeia foram sempre por “ofensas corporais” e uma delas por “embriaguez”.

Filho natural” de Eufémia Ferreira, acarinhado pela mãe (pai ausente e/ou desconhecido) não era preso por “furto”. Não era preso por ser “ladrão”, como tantos outros que deviam ser, hoje, e andam por aí de gravata italiana ao pescoço, que não sabem o que é uma enxada, nem bebem vinho carrascão. Roubam simplesmente e pronto. Mas, sendo o Júlio quem era, não se importava de ir parar à cadeia todas as vezes que tivesse de defender a dignidade da mãe: “filho da puta, não”.

E então não é que, lida a sua ficha prisional, gerado e criado assim, no meio serrano, rústico e sem letras, agricultor, o raio do moço, sempre pronto a defender a dignidade da mãe, a estes anos de distância e já feito em pó, até captou a minha simpatia? Se eu vivesse no seu tempo e estivesse a fazer súcia com ele na taverna (tal como, da mesma idade, fazia em Cujó com os meus amigos, antes de ir para longes terras) e assistisse a essa provocação, pôr-me-ia a seu lado. O filho recusava ver colada à sua progenitora a expressão mais gasta no léxico oral português. Expressão ofensiva essa que ninguém se atreveu, até hoje, a riscar da verborreia oral e assenta que num uma luva em tantos que (com pai e mãe identificados) andam por aí entre nós, ouvindo-a e merecendo-a, sem culpa nenhuma da progenitora que os pôs no mundo.

Ponto final. Não vou repeti-la. E aposto que nem é preciso, pois «atire a primeira pedra» aquele que nunca tal expressão proferiu por «dá cá aquela palha».

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.