Tão verdade isso era como qualquer criança a fazer-se gente neste meio serrano, rústico e trabalhador não tenha acompanhado os adultos - avós, pais e tios - nas suas tarefas de campo, senão mesmo iniciar-se nelas para sempre ou até procurar outra maneira de ganhar a vida sem fazer calos nas mãos, que resultavam infalivelmente da cava das hortas com a enxada, da lavra da leira à frente das vacas junguidas, aguilhada na mão, ou, então, a guardar gado na serra e lameiros de família, ocupação que lhe dava mais liberdade de observação da natureza e tempo de brincadeira com colegas da mesma idade, saltar à macaca, saltar de ramo para ramo de árvore PODADA OU POR PODAR, à Tarzan, sem Tarzan conhecer. Aprender e praticar os jogos tradicionais vindos dos fundos dos tempos, ou correr atrás de gafanhotos e borboletas.
Espaços abertos propícios a que os olhos se perdessem nos longes e nos pertos, sentidos despertos (sem a vigilância e protecionismo que veio a moldar o comportamento dos progenitores actuais, para mal dos filhos e preocupações suas) as cores penetravam livremente e às lufadas nos cérebros infantis através das retinas, os odores através das pituitárias e o veludo da maia, mais a agressividade do tojo, em igual volume, através do tato. Era um crescer de ver, ouvir e sentir a voz e os movimentos da natureza, o chilreio do passaredo e a fala, as pragas e as rezas simultâneas das gentes camponesas, nos seus labores, suas amizades e quezílias.
Ao tempo, pelas aldeias da serra, não existia o hábito de oferecer dinheiro às crianças. Como oferecê-lo, se dinheiro não havia e o comércio se fazia por “troca directa”? Trocavam-se ovos por sardinhas, animais por animais - “ela por ela, ou pêlo por pêlo, e negócio feito” - malgas de milho por outra coisa qualquer, trocavam-se serviços, “vais para mim, eu vou para ti” nas segadas, malhadas e quejandos, e, em consequência, o MEALHEIRO, esse objeto hoje tão corriqueiro, era coisa do porvir, era coisa de gente citadina, aburguesada, ou camponesa em vias de se aburguesar.
E crescer assim, fez com que toda a criança, nada e criada na serra, fizesse da sua MEMÓRIA um MEALHEIRO especial, único, singular. É que sem dinheiro, sem mesada, nem símile que lhe servisse na mercancia do mundo, melhor não havia do que fazer TESOURO dos seus pensamentos, ideias, conhecimentos, encantos, medos, lendas de mouras encantadas, de bruxas, de lobisomens, observações, analogias, riqueza que carregaria pela vida inteira e, quem saberia, útil seria tal recheio no momento em que, por acaso ou vocação, já em idade adulta, a vida lhe proporciasse montar banca na feira das ideias, dos pensamentos, saberes e conhecimentos campestres de tempos idos, quiçá projectados nos tempos futuros. Se tal acontecesse era só pagar o “terrado” obrigatório, abrir o estendal, e expôr ao público todo o TESOURO acumulado e, com ou sem pregão, dizer simplesmente a quem passa: eis aqui o meu tesouro, com muita honra.
Atreito que sou a frequentar as feiras urbanas e as feiras de montanha onde se mercadejam ou trocam vivências humanas, ideias, pensamentos e afetos postos em letra redonda, vem toda esta perlenga a prpósito do livro «Simbioses Montemuranas» que acabei de ler, cuja autora é Dolores Marques, natural do Moção, concelho de Castro Daire.
E dito e feito. Correndo os olhos sobre a mercancia exposta na feira das letras, lembrei-me logo da PUCARINHA DE BARRO e ver a autora, ainda criança, a observar a sua mãe ou qualquer outra familiar adulta a confecionar o cozinhado e, de colher de pau na mão, a fazer rodupiar os ingredientes, voltas e mais voltas, para facilitar a cozedura.
Ingredientes vários e dessa forma guardados e cozinhados, postos agora na banca, não é difícil descortinar nela o que acima disse sobre o TESOURO que toda a criança guardou no MEALHEIRO da sua MEMÓRIA. Ele é a problemática das águas e do seu uso comunitário. Ele é os maus acessos aos lugarejos e terras de mato e lavradio. Ele é o pastoreio e a agricultura. Ele é o despetar de anseios inquietos para uns e a acomodação ao “status” para outros. Ele é a emigração para o estrangeiro e a migração para as capitais do reino, nem que seja como serviçais. Ele é os pedintes, pobres e sérios a calcorrearem caminhos de canudo a tiracolo, atestando o seu estatuto de prdintes, e os ratoneiros sem escrúpulos, que passam mão baixa por toda a coisa alheia. Ele é o vai e vem ao moinho hidráulico, a mó a girar em torno se si própria, sem sair do mesmo sítio. Taleigas de milho moidas e por moer. Ele é o estrelouçar do chamadoiro “tram...tram...tram” naquela dormente monotonia que infalivelmente conduz a um sono de santo ou santa. Migrada e a fazer vida lá pelos arredores da capital do reino, juntou ao cozinhado as misérias dos “sem abrigo” que fazem das ruas e becos a sua morada, dos caixotes de cartão os quartos de dormir e, com as pitadas humanas indispensáveis, temos o caldo feito, para fugir ao dito popular “caldo entornado”.
E isto ne leva de retorno à pucarinha e à colher de pau. Mão treinada, gira-que-gira, mexe os ingredientes uma vida inteira. Cozinhados que estão, bem caldeados e misturados os sabores, as cores, os afetos, os conhecimentos, a “cozinheira” servindo-se da bandeja da saudade, ainda que com alguns devaneios pela serra e redondezas, faz da aldeia de Moção, sua terra natal, o centro do mundo e, de colherada a colherada, sem cuidada esquematização formal, esvazia a pucarinha. Esvaziada, contente, feliz e realizada, diz sem mais para quem gosta das coisas rurais: “ora sirvam-se”!
E cada um come do que gosta, pois diz o povo sábio: “os gostos não se discutem”.