Foi durante anos companheiro de caça do Padre Duarte, que foi pároco naquela aldeia e meu colega, professor de História e de Português, na Escola Preparatória de Castro Daire. Com ele correu montes e vales. A seu lado abateu coelhos e perdizes. Com ele se habituou a saborear o que é bom na vida e está apostado em manter o hábito enquanto puder, já que na juventude, dado o tempo da guerra que corria, tal como todos os jovens da sua geração, não pôde dar-se a tal luxo.
A aldeia de Pinheiro. Em primeiro plano a IgrejaNa mesa do restaurante onde, por acaso, viemos a conhecer-nos, temos tido conversas sobre esses tempos, sobre os tempos que correm, e sobre a vida em geral. Sobre a nossa geração e sobre a geração que agora por aí se diz «à rasca», jovens que não fazem a mínima ideia do que é estar à rasca.Ora, foi durante uma dessas nossas conversas que, reparando eu na enorme cicatriz que se afunda na cova que lhe deforma o crânio careca lhe perguntei a que de devia tal sinal? o seu rosto mudou de figura e de voz embargada, duas lágrimas a resvalarem-lhe faces abaixo, pediu-me desculpa daquela sua reacção e, a custo lá me foi dizendo:Corria o ano de 1945. Apenas com 8 anos de idade, «quem não trabuca não manduca» estava no campo a ajudar os pais a plantar batatas. Cestinha de sementes no braço, era tarefa sua colocar uma semente em cada cavadela aberta. Mas, por distracção sua ou do cavador, ou porque há horas do demo, ele adiantou-se mais do que devia e a sacholada que levada destino ao solo arável, acabou por cair-lhe na cabeça e pôr-lhe os miolos à mostra.Que eu o desculpasse da comoção que, passados tantos anos, sentia a contar-me o sucedido. Não era pelas dores sofridas na altura, de que se não lembrava, mas era pelos gritos que ouviu da mãe aflita: «aí o meu menino», «ai que o meu menino vai morrer», «ai o meu menino», «ai meu Deus?ai quem ajuda?» a correr em todas as direcções, sem saber o que fazer. A senhora sua mãe que poucos anos antes vira morrer o filho mais velho sufocado pelas lombrigas, via agora este de cabeça aberta e às portas da morte!O menino não morreu. Os campos, na altura, estavam pejados de gente a formigar a vida e não tardou a aparecer um vizinho com um cavalo pronto a levá-lo a Castro Daire, onde chegou a respirar. Foi operado no Hospital da Misericórdia. Os responsáveis pela operação, que custou quatro contos de reis, foram o Dr. José Maria, o Dr. Maneca e o Dr. Zeca. A estada no Hospital custou mais um conto de reis. A soma de tudo teve de pagá-la o pai que não tinha essa quantia e, mesmo recorrendo à solidariedade popular, viu-se «à rasca» para pagar a dívida.Dário Pereira Loureiro ... não esqueceu os gritos da senhora sua mãeOperação feita e paga, marca na cabeça para sempre, Dário Pereira Loureiro, cresceu e aprendeu a cavar a terra, a semear batatas, a manejar a enxada, a charrua e todas as mais ferramentas agrícolas. Aprendeu a tratar das vinhas e, mais por ouvir dizer do que de memória vivida, nunca esqueceu o nome da senhora que mais ajudou os pais com dinheiro. Chamava-se Clementina. Mais nomes para quê? Clementina lhe bastou. E ele que, devido aos tempos e aos modos da época, fora transportado num cavalo naquele momento difícil da sua vida, passou anos agarrado ao volante de um camião a transportar terra e brita para estradas do concelho.Deixo aqui o registo desta nossa conversa. Isto porque me impressionou, sobremaneira, constatar que, passados tantos anos, para além dos sinais visíveis deixados na cabeça resultantes do acidente, as dores que ainda hoje embargam a voz do menino acidentado, agora homem no declínio da vida, aquelas que lhe fazem correr as lágrimas rosto abaixo, não são as dores físicas, não, mas aquelas que lhe advêm e doem de ouvir e ver a aflição e os gritos da sua mãe: «ai o meu menino», «ai que o meu menino vai morrer»!É isso. Os gritos que, em 1945, ecoaram nos recôncavos do Paiva, em 2011 ainda ecoam nos recôncavos da sua alma.Abílio Pereira de Carvalho |
quinta, 17 outubro 2019 15:13
Escrito por
Abílio Pereira de Carvalho
«AI O MEU MENINO!»
A FORÇA DOS AFETOS
Neste meu afã de revisitar textos publicados no velho site (o histórico) e transplantá-los para este no activo, coube a vez ao que se segue. Foi escrito em 2011 e o senhor Dário, meu amigo, faleceu em 2018. Mas o texto segue na íntegra.
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Publicado em
Crónicas
Abílio Pereira de Carvalho
Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.