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quarta, 14 junho 2017 12:22

CUJÓ - RETALHOS DE HISTÓRIA - VI

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CUJÓ, RETALHOS DE HISTÓRIA - VII

Eis como o livro «Nova Floresta ou Silva de vários apotegmas» (I Tomo), do Padre Manuel Bernardes, se torna um filão perseguido por mim em busca de enriquecimento cultural, à semelhança do filão de volfrâmio perseguido, durante e o pós guerra, por mulheres e homens da minha terra natal, em busca de melhor vida material.

 

Digamos que o livro «Nova Floresta ou Silva de vários apotegmas» (I Tomo)  do Padre Manuel Bernardes, a cirandar, década após década, por entre pessoas, armários e copeiras fumarentas da minha terra natal, chegado à minha mão, nestes princípios do século XXI,  à semelhança do filão de volfrâmio que, sendo eu ainda pequeno, os homens e mulheres de Cujó, de saca a tiracolo, camartelo, picareto e gasómetro na mão, chama azulada a sair-lhe do bico, resultante dos pingos de água sobre o carbureto, gás acetileno a romper o breu das profundezas da mina, a alumiar os sonhos dessa gente que, durante e no pós guerra, buscava melhorar a sua vida material, eu, à semelhança deles, dizia, penetro no filão deixado por Manuel Bernardes e, em busca do meu enriquecimento cultural, encontro os apotegmas, os valores e os princípios que moldaram as mentalidades, as atitudes e os comportamentos das gerações que me precederam, aqueles que levaram uma mulher a confessar-se e a penitenciar-se publicamente na Igreja Matriz, por ter sido mãe de uma filha que tinha por pai um padre. (ver crónicas anteriores) Isto, nos anos 60 do século XX. Mas como um, dois, três é a conta que Deus fez e o padre sabia contar, ignoro se as outras duas mães de S. Joaninho passaram por igual teste de salvação.

1-Cujó-reduzDe facto, para entendermos essa atitude de perdão pessoal e colectivo, a humilhação pública a que teve de sujeitar-se a pecadora, para entendermos todos os movimentos ligados à emancipação feminina, à libertação da mulher dos nossos tempos, não há como recuarmos às profundezas do passado, penetrarmos nas páginas da história e da literatura, remontarmos aos tempos bíblicos e, atentos à pena e à palavra dos  MENTORES, esses oleiros de heróis e santos, cuja obra  a Santa Inquisição não queimou, teremos matéria de sobra para enchermos o saco, apagarmos o gasómetro e, à luz do Sol, à luz da liberdade do pensamento e da expressão,  apreciarmos a riqueza extraída da mina. 

 O Padre Manuel Bernardes, na linha do que diziam os sermonários do seu tempo, tinha bem presente o papel da mulher na sociedade e o perigo que ela representava na comunidade.  

Num sermonário manuscrito que encontrei na Biblioteca Municipal de Castro Daire, nos anos 80 do século XX, de cujo conteúdo fiz uso no meu romance histórico «Julgamento», saído a público no ano 2000 com a chancela da «Palimage Editores», de Viseu (diga-se, para aviso dos incautos, Editora de Apartado, da responsabilidade que foi de Jorge Fragoso, entretanto mudado para a «Terra Ocre, - Edições», em Coimbra, indiferente aos meus protestos e reclamações e contra o estipulado no «Código dos Direitos de Autor e Direitos Conexos», deixou, há um bom par de anos, de me prestar contas dos exemplares vendidos e dos que existem em armazém) nesse sermonário, dizia eu, o pregador, referindo-se à morte de João Baptista, proclamava entusiasmado:

«E sabeis quem fez emudecer esta voz do céu? Quem havia-de ser? Uma mulher dissoluta, uma mulher desenvolta. Uma mulher lasciva. A meretriz do Apocalipse. A Isabel de Samaria. A Semiramis da Babilónia. A Cleópatra do Egipto: a Messalina de Roma; Herodíades, enfim, escândalo de Jerusalém e monstruoso aborto do seu sexo, foi a homicida fatal do Grande Baptista. Ah! E quantos estragos deste género não tem executado a mão poderosa que se deixa governar por estas detestáveis Circes do Amor desordenado! Ah! Que abismos de males não traz consigo a indignação de uma mulher quando chega a ser idolatrada nos Altares da sensualidade? A requerimento desta bárbara Medeia separaram os verdugos a maior cabeça dos Mártires e,  colocada na ímpia mesa de Herodes, foi torpe despojo das vinganças da adúltera mulher de Filipe e lastimoso troféu da mais desenfreada Lascívia».(1)

O autor do sermão, ainda que tenha deixado Eva fora da lista, tê-la-ia no pensamento ao arrolar todas estas mulheres da Antiguidade, cujos nomes e história de  vida a maior parte dos cristãos ouvintes ignorava absolutamente. Não importava isso. Eram mulheres... e tanto bastava para lhes atribuir todos os males do mundo. 

E o Padre Manuel Bernardes?

Esse, tendo por método partir de um adágio, de um dito, de um apotegma, um princípio filosófico ou moral, etc. para sobre eles discorrer e extrair doutrina edificante, tinha de começar por Pelágia, ela própria uma mulher da Antiguidade, uma pecadora pública, sórdida e feia que S. Nonno viu subir ao céu na «figura de uma candíssima pomba», depois de convertida.

«De S. Nonno, Bispo de Heliopolis:

2-Red«Estando este Santo com outros bispos no pórtico do templo de S. Julião Mártir, na cidade de Antioquia, passou pela praça Pelágia, moça gentia de rara formosura e pública pecadora. A qual ia mui acompanhada de servos, sentada em um jumentinho ricamente adereçado, toda brilhando telas e exalando âmbares e coberta de pérolas e preciosa pedraria constelada em jóias e brincos de vários e curiosos feitios.
Aqueles veneráveis Prelados, para não ensanguentar-se nos abrolhos do escândalo com tão provocativo e picante objecto, abaixaram com pronta e cauta modéstia os olhos. Menos o Santo que com os seus foi seguindo enquanto a alcançaram. E depois disse para eles:
«não vos deleitou grandemente a vista desta mulher
Calaram-se os bispos e o santo inclinando a cabeça sobre os joelhos, começou a chorar enternecidamente. Tornou a perguntar-lhes: «
Não folgastes de ver o adorno daquela mulher» Pois a mim, vos afirmo, foi de grande proveito porque me pregou dentro da alma esta doutrina: que é possível que uma criatura para agradar a outras se esmere tanto e não haja pontinho de perfeição que não ponha em se fazer formosa e grata aos olhos mundanos, empregando neste estudo muitas horas e eu, Cristão, Sacerdote, e Bispo tão descuidado vivo de me fazer agradável aos olhos de meu Deus? Isto é o que folguei de ver naquela miserável porque estoutro é o que me pesa ver em mim pecador miserabilíssimo».

Posta a questão segue-se a doutrina e nela as advertências que devemos ter relativamente aos atavios da mulher. Assim: «desvia o teu rosto da mulher enfeitada e não empregues a vista na formosura alheia; por amor da formosura da mulher muitos se perderam e daqui se ateia o fogo a concupiscência. Por onde S. Gregório Papa e S. Jerónimo assentam nesta máxima: que não deve ser visto o objecto que não deve ser apetecido: «Intueri non licet, quod non licet concupiscere».

E continuaremos embrenhados na «Nova Floresta ou Silva» na próxima crónica, onde o bicho mau, a fera, a serpente, continua a ser a mulher.

(1)«Sermoens Panegyricos e Quaresmais» ms s/d, fls 24v a 29r/v ? B. Municipal de Castro Daire.

 

NOTA: Este texto foi publicado pela primeira vez em 2010 no meu velho site «trilhos-serranos.com» e transposto para aqui hoje mesmo. Faz parte de uma sequência de crónicas inspiradas na obra do padre escritor Manuel Bernardes.

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.