Trilhos Serranos

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sexta, 26 maio 2017 14:01

GRAVURA - HABIT DE SERRURIER

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HISTÓRIA VIVA

Só mesmo de artista. Só mesmo de mestre ou de ambos num só. Suspendem-se umas latas num fio ou colam-se numa superfície plana, junta-se um monte de areia e pranta-se no meio dele uma telefonia, expõem-se num museu de renome e temos ali as obras de escultores de arte moderna. Temos um cesto de cenouras, batatas e outros produtos agrícolas numa despensa, temos um Chefe de culinária a conceber um prato «grumet»  e a receber uma estrela Michelin. Temos alicates, turqueses, tenazes, martelos, tornos,  malhos, bigornas dispersas num espaço designado antigamente entre nós por «tenda», nuns sítios e por «forja» noutros e com isso tudo, cada peça no seu sítio, na oficina L'Armessin moldaram-se figuras humanas, retratando profissões e os produtos artísticos, utilitários e funcionais que resultavam delas. Eis uma dessas gravuras pendurada na Oficina do Mestre Zé Ferreiro, de Castro Daire, devidamente legendada:  «HABIT DE SERRURIER».

Serralheiro - RED

Olhemos a gravura: uma figura humana com cabeça, tronco e membros escarrapachada numa bigorna como se ela fora a cela de cavalo, assente sobre um cepo. Virada para nós, uma perna para cada lado, pés assentes no chão, sapatos de chapa, embelezados com grosas e limas colocadas em forma de laço, tão característico do calçado "peralta" do século XVII. As pernas, tanto a direita como a esquerda, canelas resistentes, são formadas por dois tornos de bancada, com a  boca à altura do joelho e manípulos de aperto bem visíveis, ao longo deles. Nas coxas, ladeando a bigorna, duas chapas curvadas. A da perna esquerda está lisa e na perna direita sobressaem, atravessados, dois «espelhos», também chamados «escudetes»  de fechadura, aquelas peças que davam beleza às portas das moradias antigas, autênticas obras de arte terminadas em cabeça de víbora ou em flor de lis. No tronco dessa figura humana, eis a fornalha acesa, sob a qual vemos o espaço das ferramentas que é preciso ter à "mão de semear", espaço ladeado por dois «escudetes» de fechadura. A cobertura da fornalha forma os ombros encimados pela cabeça do serralheiro, coberta com um elmo de guerreiro. Atrás da figura está o fole aberto, de cinco elementos, acionado pela mão esquerda do serralheiro a puxar a alavanca. No antebraço, mais dois "espelhos" de fechadura e no braço as ferragens destinadas a baús, caixas e caixotins de viagem. No braço e antebraço direito, as mesmas ferragens e a mão a segurar o respetivo martelo.

Na bancada lateral, onde está fixado um torno igual aos que formam as pernas até ao joelho, vemos ferramentas várias e uma moldura (grade) de ferro forjado já terminada e assente.ESPELHOS-1-horizontal

Na parte da frente do cepo de madeira onde assenta a bigorna, devidamente arrumadas, uma tenaz e uma turquês. Ao lado, de cabo ao alto, o indispensável malho, essa peça cujo peso eu ainda experimentei em Cujó, na Tenda dos Ramalhos, nos dias invernosos de frio e neve,  sítio onde se juntava a mocidade em busca de calor e de conversa. Ali era um espaço de convívio, de literatura oral, de estudo social e da ductilidade do ferro quente e frio, espaço e tempo de exercício dos músculos e do cérebro.

 

Só falta referir a paisagem que o artista resolveu colocar nas traseiras deste profissional da «Arte Forjada». Ao fundo, de ambos os lados, vemos montes e serras. No meio delas uma massa enorme de água que se esgueira pelos arcos da ponte desenhada no seu lado direito. E o acesso à ponte faz-se por detrás da figura montada na bigorna, como que nessa figura grotesca confluíssem a águaterra , fogo e ar,  os quatro elementos que, segundo os antigos filósofos pré-socráticos, constituíam  os elementos básicos da matéria. 
Pois. Mas hoje, nem espelhos, nem escudetes, em fechaduras. Nem martelos, nem malhos, nem «matéria». E se o meu polegar me serviu para calcar a aldraba recurvada da porta com lingueta interna de segurança, o polegar da juventude de hoje treina-se a dedilhar imateriais SMS para os amigos e familiares, nos telemóveis e equipamentos afins. Ainda bem, mas convém ter presente os trilhos percorridos do saber, da imaginação e da criatividade. Cientes, também, de que o próprio S. Pedro, exibindo as pesadas e recurvadas chaves do Céu, terá de adaptar-se e passar a usar os cartões eletrónicos que nos dão entrada nos quartos de hotel ou na viatura em que viajamos, se ela é de gama alta e já incorpora a tecnologia de ponta.

Abílio/2017

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.