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quinta, 15 junho 2017 13:24

DR. MANUEL DE LIMA BASTOS - MAIS UM LIVRO

Escrito por 

SOBRE AQUILINO RIBEIRO

No dia 13 do corrente mês,  mal abri a tradicional caixa de correio, aquela que obriga o gentil e apressado carteiro a levantar a tampinha metálica para se desfazer do peso que carrega, seja a correspondência por nós desejada, seja aquela que abominamos, v.g. a publicidade aos montes e montes de faturas a pagar,  logo me dei conta que havia ali algo que me ia agradar. Retirei o embrulho e, num envelope almofadado, li o endereço do destinatário e do remetente. Era mesmo para mim, o que nem sempre acontece.

Abilio -REDZ

Tinha de ser. O Dr. Manuel de Lima Bastos, residente em Arcozelo, lá para as bandas do mar, cidadão que só vi pessoalmente uma vez (e ele a mim),  de há uns anos a esta parte, tem andado de podão em punho a desbastar a floresta literária  aquiliniana, com a preocupação confessada de nela abrir trilhos que conduzam a amplas clareiras, por forma a que a maior parte das pessoas, de preferência portugueses de lei, amigos de LITERATURA,  possam usufruir dos ventos fortes ou amenos, das cores, dos aromas, do convívio das gentes e dos bichos que fazem habitat nessa floresta das letras e, eventualmente, com um nico de imaginação, lobrigar os faunos e duendes que sempre se ocultaram e circularam nas serras onde os lobos uivavam, no tempo em que os carreiros e os caminhos estavam puídos por pastores e lavradores, carreiros e caminhos que foram substituídos por estradões de terra batida que conduzem, agora, aos geradores eólicos a coroar o topo dos montes, esses produtores da energia que alimenta tudo quanto é suporte de imagem e literatura digital. Eles, esses gigantes, tomaram o lugar dos serranos que faleceram, que se ausentaram ou fugiram para sempre dali, sem deixar rasto.

Mas quem não fugiu desses montes e vales e neles deixou rasto profundo, foi Mestre Aquilino e o seu incondicional discípulo,  Lima Bastos. Ele, nesse seu afã de contribuir para um melhor conhecimento dos trilhos deixados pelo Mestre,  depois de levar a mão à testa e limpar o suor do rosto (sim, quem pensa que ler, escrever e investigar não cansa, nem faz suar, é porque ignora quer uma coisa, quer outra, a sério) ainda teve vontade e força para se deslocar à Estação do Correio mais próxima, comprar um envelope almofadado, colocar-lhe os nomes do destinatário e do remetente, pagar a franquia e... aí vai, seja o «que os Correios quiserem». E a encomenda chegou. Mais um livro seu ligado à obra de Aquilino Ribeiro. Desta vez com o título «No Adeus à Sombra do Mestre Aquilino».

Como sempre, comecei por colocar o polegar entre a capa e a contracapa e folhear o miolo do fim para o princípio, à maneira do mágico que brinca com um baralho de cartas e encanta a audiência basbaque. Não tinha imagens, tal como os restantes. Só prosa. Feito isso, fixei por instantes a capa, o rosto de Aquilino e aquelas faixas verdes com o nome do autor e título da obra destacados a branco. Logo de seguida ataquei as badanas recheadas com textos alusivos à obra e à pessoa do autor, assinados por figuras que, às lides das letras, em geral, e de Aquilino, em particular, têm dedicado algum do seu precioso tempo de vida. 

 Essa galeria de personalidades abre com  Manuel da Silva Martins, «bispo emérito de Setúbal». Segue-se outro de Luís Neiva Santos, «devotado aquiliniano, cultor das artes e das letras». E outro de José Manuel Mendes, «escritor, presidente da Associação Portuguesa de Escritores». E outro, assinado por mim próprio. E outro assinado por Arlindo Cunha, «professor universitário». E outro de Aquilino Ribeiro Machado, «ex-deputado e primeiro presidente da Câmara de Lisboa». E outro do «vereador do pelouro da Cultura da Câmara Municipal de Sernancelhe», Armando Mateus. E outro, finalmente, a preencher o espaço da contracapa, por inteiro, texto assinado por Miguel Veiga, «portuense ilustre, grande advogado, homem dos livros e da cultura, recentemente falecido».

BADANA - REDZNão me perguntem as razões desta minha peregrinação pelas badanas do livro. Não percam tempo a congeminar que isso se deve ao facto nelas figurar um texto meu. Não. Eu vos digo já que é isso que faço sempre com todos os livros que me vêm à mão, por compra ou por oferta. Só depois vou à Introdução, ao Prefácio, PosfácioÍndice Bibliografia, se se trata de obra de investigação ou a atirar para isso.

Acontece que desta vez (e não foi a primeira) Lima Bastos, lembrou-se de, «com justiça ou sem ela, colocar esta tremeluzente e rústica luminária camponesa ao lado de brilhantes e incandescentes lustres urbanos». Facto que me apressei a dizer-lhe  no e-mail em que lhe agradeci a oferta do livro, acrescentando  que «não seria sério dizer-lhe que me não senti envaidecido com isso, tanto mais que já nem me lembrava de tais palavras ter escrito». Mas, se ele as citava e as atribuía à minha pessoa, elas eram, seguramente, «verdadeiras e justas».

Face a esta minha dúvida, para evitar equívocos, o Dr. Manuel Lima Bastos, à boa maneira de zeloso advogado que foi, com calos no rabo adquiridos nas barras dos tribunais, apressou-se a botar mão às Ordenações Afonsinas, consultar os artigos e parágrafos necessários à defesa da sua causa e, com segurança, lançou nos autos a fonte da citação: «o seu texto, que incluí na badana, fui pescá-lo ao Paiva que corre no seu blogue Trilhos Serranos».

Com efeito assim é. Trata-se do excerto da longa dissertação que alojei no meu site, no dia 3 de março de 2016, sobre o seu OITAVO livro. Aquele onde ele disse, acerca do seu trabalho, que «uns tantos, de certo algum benefício colherão porque percebem destas podas ainda menos do que eu», asserção que eu incorporei imediatamente, dizendo que, no que a mim respeitava, ele tinha acertado em cheio, já que «em tais artes, podador de tesoura romba me confesso». Confissão que, por gentileza, delicadeza e amizade, ele omitiu na transcrição que fez.

Ora pois, sendo esse o seu OITAVO livro, no qual ele, com o humor a  ironia que o caracteriza, disse ter por costume «dar nove voltas em redor do lume, antes de adormecer»,  discorri, então, demoradamente sobre a importância simbólica do número 9, e terminei com o desafio: «venha lá o NONO, ó Dr. Lima Bastos».

E veio. 

CAPA - rEDZLi-o com o agrado se sempre e com o agrado de sempre escrevo estas linhas. E ponho-me no seu lugar, face a uma tarefa nada fácil, ainda que feita com gosto. Imagino-o especado a pensar,  frente a uma imensa e densa floresta: «qual é a melhor maneira de ali penetrar um lenhador?»

E a pensar nisso, ele descobriu um método. Foi como se botasse a mão a uma aldraba daquelas que figuravam nas casas fidalgas ou nos portões de quintas de lavradores abastados e rodá-la. E vai daí, fez como o Padre Manuel Bernardes no seu livro  «Nova Floresta ou Silva de vários apotegmas». Este nosso ilustre escritor usou o método de partir de um adágio, de um dito, de um apotegma, de um princípio filosófico ou moral, etc. para sobre eles discorrer e extrair doutrina edificante, com maestria literária. Mutatis mutandis, Lima Basto começa cada capítulo com um texto de Aquilino para logo de seguida desdobar a meada, por forma a introduzir-nos na floresta aquiliniana. Tirante o Prefácio e o Posfácio, seis são os capítulos que compõem a obra. E seis sãos os textos introdutórios de cada um deles, extraídos do "Solilóquio Autobiográfico Literário"  de Mestre Aquilino.

Aqui chegado, seria redundante reportar-me, mais uma vez, à maestria que ele assume no seu papel de guia orientador num roteiro sobejamente de si conhecido. Não sou dos que, entrado no templo das letras, deixa o hissope sossegado na caldeirinha com receio aspergir adjetivos e louvores sobre as obras e sobre os autores que tal merecem. Não. Por regra, não sendo muito pródigo em louvores, diferentemente de alguns profissionais do mesmo ofício, digo o que penso e sinto sobre as obras que leio. Outros há, porém, que, por complexo de superioridade ou seu contrário, assim não procedem. O hissope e a caldeirinha não são objetos dados a louvores e rituais profanos.

Aprecio um livro por aquilo que vale do ponto de vista literário e também pelos caminhos que me abre para o futuro ou que me levam de volta ao passado. De todos os capítulos deste livro destaco o CAPÍTULO II, onde Lima Bastos mostra as relações havidas entre Aquilino Ribeiro Manuel da Fonseca. Um beirão e um alentejano. Emocionei-me. Este capítulo fez-me recuar uns anos e pôr-me à conversa, frente a frente, com Manuel da Fonseca. É que eu tive o privilégio de, mais do que uma vez, falar com ele, exatamente em terras transtaganas. 

Como? É sabido que passei alguns anos no Alentejo, mais propriamente em Beja e Castro Verde, entre 1976  e 1983. Nesse interim não havia escola que não convidasse Manuel da Fonseca para ele falar das suas obras, Carlos Moedaspersonagens, tramas e paisagens. Numa das vezes, sabendo-me ele colaborador do "Diário de Alentejo" de que era diretor José António Moedas, pai do, agora, muito conhecido Comissário Europeu, Carlos Moedas (então meu aluno na Escola Preparatória Mário Beirão, de Beja, um excelente aluno, por sinal, como pode ver-se no "fac-simíle" da Caderneta Escolar que publiquei na minha página do Facebook. e aqui reproduzo), sabendo-me natural da Beira, perguntou-me se eu tinha conhecido o seu amigo e «par do Reino», Aquilino Ribeiro. A expressão «par do Reino» saiu embrulhada num sorriso marcadamente irónico. Respondi-lhe que não, e disse-lhe que, sendo quase vizinhos, mesmo que ambos sentíssemos os frios das serras do Montemuro e da Nave, nunca nos tínhamos encontrado, ainda que respirando os mesmos ares. Ele passava a vida a escrever sobre os labrostes destes poviléus e montes, a descrever os seus hábitos, costumes e valores. Do vestuário de burel aos tamancos turdetanos ferrados com chapas de ferro e testeiras de chapa. E enquanto ele escrevia isso tudo e tudo isso se tornou o escritor que é,  eu rompia o burel a que ele aludia, saído do pisão do meu avô, e, com esses tamancos nos pés, puía os trilhos e carreiros que ramificavam montes e vales, que conduziam aos lameiros ou às leiras de vessada onde «arado vai, arado vem», eu escrevia em bustrofédon a narrativa da minha sobrevivência, igual à dos meus pais, dos meus avós e avós dos meus avós.

Exímio «contador de estórias», gordinho, baixinho, nariz meio rubicundo,  ele escutou-me com atenção e disse-me com aquela voz calma e melosa, marcadamente alentejana: «pena não o ter conhecido, perdeu excelentes momentos de vida. Mas olhe lá, porque não escreve isso que acaba de me dizer?»

Escreveria sim, prometi-lhe, mas mais tarde. Por ora, tinha outra pergunta a fazer-lhe que resultava da minha prática docente. Eu era professor do CICLO PREPARATÓRIO e, como tal, no meu horário letivo constavam obrigatoriamente as disciplinas de HISTÓRIA e PORTUGUÊS. Nas aulas de PORTUGUÊS eu verifiquei que os alunos, tanto em Beja como em Castro Verde, interpretavam mais facilmente os textos de Manuel da Fonseca do que os textos de Aquilino Ribeiro. Sim. Eu selecionava textos destes dois autores, fazia testes com eles, e, por fazê-lo, detetei essa realidade de leitura e de interpretação. Posto perante isso, depois de algum silêncio a matutar, respondeu: «olhe que não é por eu escrever melhor do que ele. A razão deve estar no chão que pisam. Os livros exalam a atmosfera da terra onde nascem e os meus livros, tal como os seus alunos, são alentejanos».

Dei-me por satisfeito e, deslocado que vim para o norte, para a ESCOLA PREPARATÓRIA DE CASTRO DAIRE, fiz a mesma experiência e obtive os mesmos resultados, mas aqui em sentido contrário. Eles interpretavam mais facilmente Aquilino do que Manuel da Fonseca. Conclui, advertido por aquele escritor, que os alunos daquele nível etário intuíam e/ou percecionavam a mensagem textual, não tanto pela arte literária nela posta pelos autores, mas antes pela atmosfera sociológica, geografia física e humana que eles impregnaram nas suas narrativas. Ao fim e ao cabo, a geografia sentimental.

Neste seu livro, tanto no Prefácio como no Posfácio, apesar do desalento que transpiram as dificuldades enunciadas de fazer qualquer obrinha escrita, os gastos e a remuneração que não compensa a trabalheira (direi «trabalhêra», fazendo jus a memórias antigas), Lima Bastos previne os seus leitores que ainda não deu a tarefa por terminada. Que tem «in mente» dar ordem a uns tantos gatafunhos que andam lá por casa, mas sem  garantia que venham a tornar-se letra redonda. De resto, se isso acontecer, mais não faz do que imitar o Mestre, pois também ele prometeu o livro «Sob o Pendão Bárbaro» e foi-se embora sem verter esse romance para letra de imprensa.

ALDRABA-REDZPor isso, neste contexto de hesitações e receios, ao terminar a leitura deste «No Adeus à Sombra de Mestre Aquilino»  lhe digo, Dr. Manuel Lima Bastos: não se apoquente. Traga somente até nós aquilo que a saúde, a vontade e a boa disposição lho permitirem. Não deixe de prendar-nos com as suas pitadas de ironia e de humor. Nesse ensejo não lhe digo Adeus. E se de alguma coisa lhe serve, como incentivo, uma conversa nossa ida no tempo (coisas da memória digital) rodando a aldraba do meu portão, entrando ambos no meu pátio, uma espécie de claustro de mosteiro antigo onde sou o único monge, sem qualquer complexo e numa atmosfera aquiliniana, com inteiro respeito pela sua confessada postura agnóstica ou pernóstica,  boto mão ao hissope, retiro-o da caldeirinha  e de braço estendido naquele gesto e jeito que tão bem conhecemos, eis em cada gotícula que dele sai o brilho da franqueza, da frontalidade e da verdade que faz de mim um aquiliniano. É que, quando se não é na escrita, pode, ao menos ser-se na franqueza e no caracter. São gotículas, palavras escritas aquando da publicação do seu SEGUNDO LIVRO. Assim, tal qual:

«Artista da palavra, bom garfo e conhecedor da cozinha beirã, como o seu Mentor, dono de uma escrita escorreita com ingredientes bastantes de ironia, de erotismo e de crítica social, estes seus dois livros são autênticos roteiros geográficos e literários que nos levam a revisitar ou a conhecer melhor as Terras do Demo e, bem assim, o seu próprio itinerário de vida (...)  ele é o benéfico companheirismo do Mestre sentido durante anos sem fim, e, ao mesmo tempo, o gritante temor de sentir  que ele, na arte de coser letras, palavras, frases e livros, seja o «resto» atirado borda fora, neste Portugal do século XXI, onde o Chico, sem letras, mas esperto,  «é tudo» e vive bem».

E ainda:

«Bem anda Manuel Lima Bastos nesta sua tentativa de ressuscitar o Mestre, v.g., a obra do Mestre, disposto a lutar contra os moinhos de vento. Nos tempos que correm é façanha! Hoje, tempo do digital, do e-mail, das SMSs codificadas, reduzidas a letras, tempo rápido, de lance-de-olhos e de soma e segue, e de rompe e rasga, só com muita coragem e muita paixão. Tempo em que na Internet, nesta nova abóbada celeste,  novas estrelas atraem gentes novas, tal como as estrelas da autêntica abóbada celeste me atraiam a mim, na minha meninice, à falta de outra luz mais próxima e apelativa. Avante!

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.