Trilhos Serranos

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terça, 02 maio 2017 20:14

AQUILINO - O HOMEM DA NAVE

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AQUILINO - O HOMEM DA NAVE

Ano 2007. Abriu mais uma época de caça. E, nós, sócios da «Associação Nossa Senhora dos Aflitos», aí vamos palmilhar a serra da Nave, desde Carapito ao planalto Orcas, a descambar para os lados de Alvite.

 

A caça é uma espécie de ritual inscrito no código genético de todo o homem que, no fluir da civilização, nunca cortou o cordão umbilical que o prende à natureza e com a natureza partilha hoje as horas de lazer, como outrora partilhou as horas, os dias, os anos, séculos de trabalhos na luta pela sobrevivência.

É isso. E tal como o romeiro que prepara o farnel para a longa caminhada, crente no milagre implorado ao Santo da sua devoção, o caçador calcorreia quilómetros serra fora esperançado que se realize o milagre de ver saltar uma peça de pena ou de pêlo, coisa que, hoje em dia, se vai tornando muito difícil para Santo Huberto ou quaisquer dos santos identificados no Flos Sanctorum.

NAVE-1Depois de uma manhã inteira a pisarmos tojos, sargaços, carqueijas, matagais entremeados de roxos remendos de rosmaninho, depois de furarmos por entre giestas, quais lobos a esgueirarem-se dos pastores mas sempre esperançados em filhar uma rês, ou qual bandoleiro a esgueirar-se às manápulas da polícia em tempos de fome e de ladroeira, depois de ultrapassarmos valados, de subirmos e descermos encostas, de contornarmos magotes de penedos, sentinelas milenares a velarem pela serra e a mostrarem quão volátil é a vida humana, chegámos ao local das «orcas», cansados, suados, sequiosos, famintos.

Nem um tiro dado. Nem uma peça à cinta. Esventrámos o farnel e, roídos de larica, logo ali lhe fizemos significativo rombo. Na trinca entrou o fumeiro de Lamego e a triga-milha de Castro Daire. entraram os saborosos queijo e pão da Lapa. Tudo regado com um «Terras do Demo», vinho que a Cooperativa Agrícola do Távora, sedeada na vila de Moimenta da Beira, baptizou assim em homenagem ao grande escritor Aquilino Ribeiro.

O sítio para o almoço e repouso tão merecidos foi, seguramente, habitado pelos nossos ancestrais neolíticos. Já com a bicha-solitária adormecida, satisfeitos, passeámos os olhos em redor. Dali se vêem umas tantas «orcas», todas elas recentemente identificadas por arqueólogos. Nomeadas a esmo, ele é a «Orca da Fonte do Rato», ele é «Orca das Carqueijas, ele é a «Orca do Bebedouro», ele é «Orca das Seixas», ele é a «Orca Grande», todas elas monumentos megalíticos que remontam a cerca de 5.000 anos, ao tempo pré-histórico que os historiadores chamam «Neolítico».

Eu, sempre acompanhado nestas lides de caçador pelo meu primo Manuel Carvalho Soares, puxei a conversa para a história. Interrogámo-nos como seria a vida dos povos que tais monumentos construíram. Que técnicas, que ferramentas utilizaram? Para que serviram aqueles monumentos? Que estudos há sobre esse passado longínquo? Fizemos perguntas e congeminamos respostas. E foi nessa conversa sobre tempos e vidas remotas, que, de ventres virados ao céu, às duas por três, findou a conversa. O corpo pedia sesta. E foi então, naquele silêncio, que, entre o acordado e o dormir, entre a fantasia e a realidade, posto naquela fronteira entre o sono e o sonho, aconteceu o vos conto:

  nNAVE-2 «Eu estava rodeado de homens de antanho cobertos com de peles de animais empunhando arcos e flechas Mulheres a acompanhá-los e filhos em redor delas como os pitos em redor da pita na eira ou na quintã de uma qualquer aldeia serrana Rodeado estava de cabanas, palhotas, habitações e abrigos feitos de materiais vegetais a destoarem flagrantemente da meia dúzia de construções feitas com grandes pedras Em torno dispersos pelos lameiros e encostas arriba ou mesmo por entre os abrigos assim construídos centenas de animais animavam o quadro que onírico pintor me pôs na retina cheio de movimento e vida Que via eu? Já sei Retornei ao tempo dos meus antepassados pré-históricos meio sedentários meio nómadas sempre dispostos a conquistarem e a usufruírem terras que lhes proporcionassem caça abundante e frutos e raízes silvestres para se alimentarem Aquele lugar era um deles Pastos cabonde muita água e, em todas as terras altas e serranas, não faltavam castanhas bolotas amoras e mostajos? Vi mesmo bandos de crianças, cinco reis de gente, a empoleiram-se nos mostajeiros e a fazerem neles o que bandos de estorninhos fazem no rebusco dos olivais em fim de safra Mas como? como podia ser isso se de repente aquela «Orca Grande», aquele túmulo-templo onde acabara de sepultar-se o «Grande Chefe» da tribo «Euscara» que habitava o planalto da Nave a bem dizer «O Homem da Nave», aquele túmulo-templo rural rodeado de faunos e gnomos se transformara magicamente num templo-túmulo urbano de grandes proporções, com janelas e zimbório a servir-lhe de coroa, coisas de reis ou de papas espaço empestado de incenso e mirra O mármore polido suplanta o tosco granito E o mesmo acontecia com as habitações e com os abrigos Tudo ali perdera as marcas de ruralidade pagã e se transmutara numa cidade cristã com  prédios separados por ruas e ruelas, praças e jardins, inundados de gente e automóveis em deslocação frenética Que era aquilo? Uma cerimónia fúnebre substituíra outra cerimónia fúnebre mas os rituais em torno do templo-túmulo eram distintos dos que rodearam o túmulo-templo. Afora isso, e sendo dois embora, podia dizer-se que se tratava de uma só  sepultura A sepultura  d' «O Homem da Nave», do homem do leme do homem que retornara à terra onde «os lobos uivam». Dois, três quatro grifos traçam o céu silencioso em busca de cadáveres silenciados. Um grupo de corvos rasga o silêncio e segue sem destino o seu voo negro. No giestal próximo o papaguear das gralhas denuncia papalvo por perto a tratar da vidinha A brisa agita o panasco do lameiro onde se esconde a magia ondular do olho-meirinho inspiração natural dos actuais fabricantes de colchões de água. Ao ritmo da respiração absorvo o roxo aroma do rosmaninho absorvo o espírito do Grande Chefe que exala pela serra fora em cada lancha de lameiro, em cada pego de ribeiro em cada ramo de mostajeiro em cada orca dispersa por «Terras do Demo» as que englobam os concelhos de  Vila Nova de Paiva, Sernancelhe, Moimenta da Beira. Ouço mesmo a sua voz «Eu, sou um artista rude, filho da minha terra. Nasce-se com o berço às costas como uma geba. A beira Alta não tem símile no Mundo. Em poucas dezenas de quilómetros reproduz-se a terra toda: amenidade e braveza, a colina e o vale, a civilização e a selvajaria. À volta da aldeia onde ergui a minha barraca, no Inverno uivam os lobos ao desafio com o vento. Bela fanfarra! Na Primavera alteiam-se do solo, pelos caminhos trilhados, flores que a botânica dos sábios não teve ocasião de descobrir.» E ouço a sua grande interrogação sobre o trabalho que desenvolveu no seio da tribo das letras «Passei a vida dobrado sobre a banca de escritor e só há pouco dei conta que estava velho. Como pôde isso ser? Pois parece que foi ontem que fiz o meu curso, que me refugiei em Paris, que bati as perdizes, que amei e já estou na casa dos setenta (?) Valeu a pena toda esta existência de sacrifício, de que ninguém se apercebeu, de que aliás ninguém me encomendou o sermão? Em minha consciência não seu responder. Nesta peregrinação a Compostela, que é a vida, esgotou-se-me o bornal de romeiro e a cabacinha, ou está por pouco. A jornada foi longa e muitos dos que tinham rompido a marcha comigo ficaram no percurso, alma em pena e clamorosa». Uma folha amarelecida pelo Outono, dispensada de uma bétula próxima, árvore pronta a oferecer-se nua ao Inverno, esvoaça sobre mim como milhafre em busca de presa Pousa-me na testa e leio as observações que o Grande Chefe fez sobre um dos seus primeiros trabalhos«Já aí me mostro apaixonado pela natureza, à maneira dos impressionistas. A natureza goza, nos meus livros, de uma insuspeita personalidade. Para mim o homem só conta no meio físico, tanto físico como social. Quero-o evolucionando no cenário que lhe é próprio».

 NAVE - 3È isso. Evolucionando no «cenário que me é próprio» acordei. Estava na hora de regressar à realidade. De voltar a pisar monte à cata de perdizes. Mas antes de agarrar nos apetrechos da caça, aqui mesmo, ainda deitado junto à «Orca Grande», mesmo sem perceber nada de psicanálise, aqui li no meu sonho, por via enviesada, um dos meus anseios mais profundos: ver realizada a descentralização política, administrativa e cultural do país, ver regressar às origens o Mestre que se disse «apaixonado pela natureza», certo de que para ele «o homem só conta no meio físico, tanto físico como social». Um sonho bem sei. Um sonho difícil de realizar. Uma nova obra de Santa Engrácia, se levarmos em conta que, quem pontifica nestas coisas da «cultura», são os descendentes daqueles companheiros de Aquilino a quem um dia, em Lisboa, ele perguntou: «ó amigos, sabem o que são mostajos, o que são pútegas?».

Aquilino estava seguro de que eles não sabiam. Que eles nunca tinham chupado as suas tetinas, que nunca as tinham espremido e, com o seu conteúdo, feito queijinhos numa caixa de fósforos vazia. Isso era para serranos, para todas as crianças de escola, pastorinhos-escolares que com isso se entretinham quando elas, pela Primavera, vinham ao mundo. Ele estava seguro disso. E eu estou seguro de que bem andariam os intelectuais da nossa praça em perguntar-se se, no respeito pelo espírito que perpassa as obras do escritor que se considerava «inteiriço como um bárbaro», o melhor lugar para o seu repouso eterno é um templo-túmulo cristão a cheirar a incenso no silêncio da santidade, ou um túmulo-templo pagão a cheirar a rosmaninho e a ouvir o coaxar das rãs, o assobio do melro, o grasnar do gaio, o cantar da cotovia, o uivo dos lobos.

Ao fim do dia, cinto vazio. Ao quarto domingo de caça, cinto vazio. A serra da Nave, no que toca à perdiz vermelha, foi chão que deu uvas. Estamos em 2007. E, a este respeito, também ouço o que Aquilino Ribeiro, profeticamente, escreveu em 1954, precisamente no seu livro «O Homem da Nave»:

«Nos baptizados a caça fornecia o prato de resistência. Hoje é comer de ricos e há-de acabar por ser iguaria de lordes e de grã-duques, como o caviar».

Está visto. Vou arrumar a espingarda e, na companhia de um cajado, usufruir as belezas das serras da Nave e do Montemuro, aquelas belezas que são eternas, aquelas que todos os anos morrem e renascem sem intervenção do homem. Procurar um sargaçal onde possa encontrar pútegas.

nota: Abílio Pereira de Carvalho - 2007 - TEXTO migrado hoje mesmo do velho para este novo site.

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.