PROLONGAMENTO DO DIA DE TRABALHO
1 – OS SERÕES
No meu tempo de juventude e puberdade, na minha aldeia e suas circunvizinhas, em toda a serra onde a agricultura e a pastorícia eram as principais fontes de rendimento, o dia de trabalho prolongava-se noite afora. Eram os serões. E havia serões ao ar livre, geralmente feitos nas noites de verão ou tempo quente, destinados às desfolhadas do milho e maçadas do linho. E os serões em espaços cobertos e acolhedores, destinados às escarpiadas da lã e à fiação do linho, que tinham lugar nas noites frias e prolongadas do Inverno.
2 - OS SERÕES AO AR LIVRE
2-1 - DESFOLHADAS
Todos os participantes se colocavam em redor das carradas de milho, descarregadas anteriormente nas quintãs ou nas eiras. Começada a tarefa, caneira a caneira, eles despiam as espigas do folhelho que as revestia e, nuas que estavam, atiravam-nas para o cesto mais próximo que, depois de cheio, era despejado no canastro. Assim por diante, até o trabalho ficar concluído.
O bonito, ou seja, a parte folclórica que bem pode ser interpretada como a quebra pública de um tabu moral comunitário respeitantes ao beijo, era quando aparecia uma espiga de milho vermelho, - o milho rei. Nessa altura, o felizardo ou felizarda a cuja mão tal espiga caísse em sorte, tinha o direito e o dever de ir beijar todas as pessoas da roda. Novos e velhos. Entre modinhas cantadas durante a tarefa, aquele era o momento mais espalhafatoso, mais alegre, mais malicioso e indiciador de princípio de namoricos, caso o milho rei caísse nas mãos de jovens solteiros. A primeira pessoa a beijar, ou já era namorado(a) ou indiciava o desejo de vir a sê-lo(a).
2-2 - MAÇADAS DO LINHO
No que respeita às maçadas do linho, os elementos da comunidade, tal como faziam na altura das malhadas de centeio, acorriam a dar a sua ajuda. Molhos de linho secos, depois de terem estado mergulhados em águas correntes os dias necessários, eram transportados para as eiras, prontos para serem maçados.
Mancheia a mancheia, numa mão o linho, na outra a maça barriguda de madeira, pum…pum…pum,, eis a marca e o ritmo das cantigas e modas tradicionais, enquanto a fibra se vai libertando e amaciando, perdendo os tomentos até ficar pronta para entrar na fase seguinte de produção: a tascagem.
E o linho, só depois de tascado, com auxílio de uma a «espadana» de madeira muito parecida com as maiores facas dos talhantes de carne, podia seguir para mais uma fase da sua mortificação. E por várias passaria ainda, até se tornar lençol, saco, toalha e até, lenço de namorados.
3 - SERÕES EM ESPAÇOS COBERTOS
3-1 - ESCAPIADA DA LÃ
No meio do salão um monte de lã. A sua volta acomodam-se as raparigas e quando o seu rapaz chega, ambos, ombro com ombro, perna com perna, dão-se por compensados da ansiedade que durante o dia alimentaram.
Alguns rapazes entram encapuçados. Rosto bem metido no fundo da capucha, observam quem esta no serão, certificam-se de que não esta ali transgressor da praxe que permite andar de noite. Apenas aos mancebos com mais de dezanove anos de idade, isso era permitido. Depois vão fiscalizar outra casa com mesmo objectivo ou, então, a procura de rapariga, se ainda não têm namorada.
Nisto, como em tudo, há sempre alguém que vai contra o estatuído. E rapaz que «sem ordens» se aventure a ir aos serões, seja porque queira impor-se à comunidade como homem valente e sem medo, seja porque os sentimentos se sobrepõem a razão passará, por certo, um mau bocado.
O manto negro da noite desafia qualquer serviço de telex na transmissão da notícia sobre o transgressor. No exterior da casa não tardam a juntarem-se outros rapazes munidos de sacholos, paus de raxa, cajados, dispostos a punir o aventureiro e a defender estatuto de zeladores da noite, fruição de liberdade conseguida em julgamento.
Se por «artes e manhas», dignas de um Dartagnan sem punhos de renda, cavalo, nem espada, antes vestido de burel, tamancos e varapau, conseguir escapar ao cerco, pode dar-se por satisfeito e repetir a proeza. Se o travesti ou qualquer outro disfarce não resultou, espera-o um chuval de pancadaria ou, com alguma sorte, uma saraivada de pedras que mesmo assim o podem levar, aquelas horas da noite, a casa do tio Salvador, sempre pronto a sair da cama e com pinça, agrafes e pensos, suturar e tratar o rasgão de pedra solta lançada por mão anónima.
Depois de escarpiada a lã vai a escarduçar e a cardar. O cardador, rap… rap…,rap… quantas vezes não troca, por outras novas, essas luvas dentadas, vendo-as abalar para as fábricas da Covilhã, onde o seu dente curto, desgastado pelo uso, as tornam mais adequadas a limpeza do cotão das grandes peças de burel saídas dos seus teares industriais?
Depois de cardada, a lã está pronta a subir a roca, a descer ao fuso, tudo a vista do borralho, da candeia a petróleo.
O imaginário rural, a postura do camponês frente ao mundo que o rodeia, desaguam, noite após noite, naquele pequeno espaço da cozinha.
Histórias, contos de lobisomens, de bruxas e de almas penadas do outro mundo, com adágios e milagres pelo meio, preenchem o tempo e o universo de gerações. Com sofreguidão as crianças pedem mais, sempre mais, sedentas do fantástico, do maravilhoso, do visível e do invisível, do diferente. A literatura oral é a rainha.
A acção decorre frequentemente em lugares próximos, conhecidos, mas o tempo não tem contornos. As personagens desempenham sempre o mesmo papel na narrativa. A diferença, o enredo e a extensão estão na memória, no engenho de quem conta, na arte de quem ao conto acrescenta um ponto.
Dois fios torcidos dão corpo ao novelo e este, polindo as agulhas feitas das varas dos sombreiros, fabrico caseiro, desfaz-se em meias, caturnos, camisolas, carapuças, rodilhas para carregos à cabeça, ou, então, segue para a casa da tecedeira. Aí espera-a urdidura, a entrada no tear e a saída em peça destinada a mantas para camas ou em teia a caminho do pisão.
Cf. Abílio Pereira de Carvalho «CUJÓ – UMA TERRA DE RIBA PAIVA», ed. 1993 (digitalizdo em «word» e publicado no «Notícias de Castro Daire» em 28-03-3013. Alojado hoje mesmo, neste site.