HISTÓRIA VIVA
É o mês de Maio, é o tempo da vessada. A charrua, relha afiada, aiveca oleada, vai ao fim da leira e retorna, virando leiva sobre leiva. Aquele pedaço de terra negra é a folha onde os camponeses, séculos, anos e meses, sem escolha, escrevem, mil vezes, a sua história em escrita bustrofedon. Ele é o lavrar, ele o cavar, ele é o gradear a terra chã de regadio. Saco de serapilheira ao tiracolo, o lavrador mete a mão dentro e, com gesto solto e longo, espalha pelo terreno lavrado o milho ensacado. Grade passada e repassada, está feita a vessada. Um espicho, em forma de bengala aguçada, acaba a missão e não há grão que se mostre à superfície da terra negra que não seja afundado, antes de ser levado no papo do melro, do gaio e outra passarada que, por sua vez, está tão treinada nestas tarefas como o camponês.
Depois é esperar que nasça e que cresça. Sucede-se a arrelenta, que o mesmo é dizer o desbaste de modo a que cada graeiro não incomode o vizinho e o deixe desenvolver e crescer sadio. Ele são as águas a deslizarem desde o Portinho até à Fontanheira, até ao Gestal, até ao Lamaceiro e toda aquela área é uma tela de cor vária. Ele é a rega, diurna ou nocturna, conforme a vez de cada morador da aldeia e, com candeia ou sem candeia, pés metidos na terra, talhadoiro aqui, talhadoiro ali, ninguém receia ir matar a sede a cada caneiro a qualquer hora. Ele é a espiga a crescer e a ostentar, na extremidade, os bigodes louros e compridos que fazem inveja aos bigodes de D. Carlos e outras Excelências Portuguesas da Monarquia e da República, no tempo em que se usava barba e bigode e no tempo em que, por regra, homens raros tinham barba e vergonha na cara. O artista das cores foi mudando a tela com a passagem do tempo.
Ele é o descruitar cada graeiro, primeiro, e depois o cortar das canas acima da espiga. Ele é aproveitar tudo isso para forragens, pois, no Inverno, os animais agradecem o petisco. Ele é o libertar da maçaroca de empecilhos e sombras, deixar que o sol caia directo sobre ela e a amadureça. O verde dá lugar ao castanho e ao amarelo. Ele é o aparecimento de espantalhos no meio dos milheirais mais afastados da povoação onde a fauna alada, para quem tudo é baldio, é dona e senhora de todo o sementio. Ele é os gaios a ignorarem essas esculturas artesanais vestidas com roupas velhas, a não ligaram ao «tam-tam-tam das caravelas e a fazerem poleiro em cada espiga, bica-que-bica, a despirem-na, ansiosos de saberem o estado da maturação de cada grão e a comê-lo que é um regalo. Ele é a mão dos catraios pastores a imitá-los e a meterem a unha em cada grão a testarem se estão no ponto para assar. Se botam leite, é ponto assente, está na hora. Um pequeno empurrão para baixo, folhelho fora, e a espiga não tarda a ser assada, levada à boca que nem realejo em dia de romaria, trincada e a barriga aconchegada com milho assado.
O milho que semeado, ceifado, desfolhado, encanastrado, debulhado, secado, moído, em farinha transformado, amassado, fermentado, tendido e cozido dará broa, saída do formo, algumas delas com côdeas duras que nem corno.A broa de milho era o alimento diário do camponês. A toda a hora. O pão de trigo, nestas terras da serra e para estas gentes, era coisa rara. Só de Páscoa em Páscoa e quem o sabe explicar? fazia parte do folar que os padrinhos davam aos afilhados: um bolo de trigo e uma laranja, isto até chegarem à vida adulta. Daí que, já namorados, rebanhos na serra irmanados, se juntassem grupos de rapazes e raparigas cantando e atirando a laranja ao ar. Nesse dia, a broa ficava no açafate. O folar subia à serra e em jogo aberto ou jogo recatado, namorada e namorado, no trajar e no comer, distinguiam esse dia dos restantes dias.E foi assim que um dia, capucha dobrada sobre uns sargaços aveludados a servirem de assento, lado a lado, um par de namorados, tão aconchegados quanto o permitia a moral ditada pela comunidade, deu liberdade à atracção natural que, deste o Paraíso Terreal onde esteve Adão e Eva, existe entre o macho e a fêmea. E, por entre carícias, beijos e afagos, ele ia perguntado, louco de desejos: já posso? resposta pronta dela: ainda não, ainda é cedo. Mais afagos, mais carícias, mais beijos, dedos metidos nas tranças enroladas na nuca dela à moda de rodilha e, a medo, insistia ele: já posso? ainda não, ainda é cedo, respondia ela. E, desejoso, tantas vezes ele repetiu que ela, por fim, anuiu; sim já podes. E eles que, naquele momento, estavam naquela posição dela ver o céu e ele ver o céu nos olhos dela, ele levantou-se, foi buscar a saqueta de trapos esganada por um nagalho, usada na serra para levar os alimentos, e, depois de tantos afagos e carinhos, te tantas carícias e beijinhos, retirou de lá o folar dado pelos padrinhos e, sem mácula, passaram aquele dia de Páscoa. Nesse dia, se bem digo, comeram trigo e nenhum deles rilhou a broa saída do forno, com a côdea rija que nem corno.
Posto no Facebook em 21 de abril de 2014 e alojado hoje mesmo neste meu site.