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domingo, 09 março 2014 16:52

TRIBUNAL DE CASTRO DAIRE (1)

Escrito por 
DA FICÇÃO À REALIDADE

PARA UMA MELHOR JUSTIÇA (1)

1 - INTRÓITO

 Para este comecilho de novelo, a fim de melhor se entender como, no exercício da minha cidadania, encarei o processo judicial, a audiência e as sentenças decorrentes de um  «julgamento real» que tiveram lugar no Tribunal Judicial de Castro Daire, Círculo Judicial de Lamego e no Tribunal da Relação do Porto, no qual fui protagonista como AUTOR e AUTOR/RECONVINDO da acção, impelido por razões e fundamentos que, no que a mim respeita, nada tinham de ficção, antes pelo contrário, nada melhor do que transcrever do meu livro «Julgamento», romance histórico editado no ano 2000, o seguinte excerto. Assim:

2 – A FICÇÃO

Tribunal-2«Em véspera do julgamento o juiz desapareceu (...) defensor da transparência e autenticidade em todo o tipo de relações  humanas (...) decidido a «ser» e não apenas «parecer», não encontrou outra saída senão a morte (...)

Foi encontrado uns dias mais tarde a boiar no Poço dos Molgos (...)
Num papel solto encontrado sobre a sua secretária, estava marcada a data e o local do julgamento. Segundo ele, o edifício que ostentava a legenda DOMVS JUSTITIAE ficaria de portas fechadas. O julgamento iria decorrer em lugar amplo e aberto. Era sob a frondosa copa da «Carvalha do Presépio», ao Mosteiro. E foi. Foi à sombra deste «’Roblin’ dos Bosques» que outro juiz, os jurados e demais elementos ligados ao Tribunal se reuniram. Esclarecidos todos, sobre o assunto a tratar, o juiz, escorado na sapiência académica e da vida, está pronto a exercer a sua missão. Sentado atrás de uma mesa de carvalho improvisada, pega num calhau rolado, bate com ele três vezes no seu tampo e diz, em voz alta, de modo a chamar a atenção do mais desatento:


- Está aberta a audiência!». (cf. Abílio Pereira de Carvalho, «Julgamento», Palimage, 2000) 

Nas poucas linhas que transcrevi, todas elas no último capítulo do romance, como que a fechar toda a trama, deixei bem claro o que metaforicamente pensava sobre a Justiça  em Portugal. Com o suicídio do juiz, no rio Paiva, e a sua substituição  por outro, não pretendi outra coisa senão significar a morte simbólica da velha magistratura formal, aspecto austero, circunspecta, toda de preto vestida, liturgia do «levantar e sentar», mais a incutir medo do que respeito. Ritual lúgubre que, nos tempos modernos, nem sequer, encontra acolhimento em todos os magistrados. Alguns conheci eu (actualmente jubilados) que, pela sua humildade e sabedoria, me deram mostras de terem assimilado muito bem os conceitos de PODER  e de AUTORIDADE, de MEDO e de RESPEITO. Sendo que o PODER se associa ao MEDO e a AUTORIDADE se associa ao RESPEITO. E mais ficou esclarecido: que o MEDO se manifesta somente na presença de quem tem o PODER e o RESPEITO pela AUTORIDADE se manifesta mesmo na sua ausência. O PODER é intrínseco à função de que se está investido, a AUTORIDADE resulta do comportamento, do saber, da competência, da forma humana de estar face ao seu semelhante, independentemente do estatuto socioprofissional. 

O exemplo mais flagrante que conheci, não conformado com o funcionamento da velha Justiça, foi o daquele «Juiz que se cansou de sê-lo», em Lourenço Marques, Moçambique, terra de outras gentes e outros costumes. Cansado de tomar decisões baseadas na matéria produzida nos autos, ciente de que ela tantas vezes estava eivada de mentiras e falsidades, matriculou-se na Faculdade de Veterinária, decidido a encontrar entre os animais a realização profissional e humana, que, no seu entender, não encontrava entre os homens, naquela profissão. Na sua consciência não havia espaço para o álibi justificativo: «se o juiz for para o inferno, vai montado nas testemunhas».(cf.www.trilhos-serranos.com», botão «novidades».

Mas, como dizia, com o encerramento da DOMVS JVSTITIAE, nesse meu romance, deslocando o julgamento para um espaço aberto e arejado, a sombra da centenária «Carvalha do Presépio», os membros do tribunal, sentados à roda de uma tosca mesa improvisada, o juiz a servir-se de um calhau rolado, em vez do torneado e polido macete de madeira, mais não pretendi que insinuar o desejo de ver uma justiça simplificada, rápida, eficiente, liberta da teia em que se enredam todos aqueles que a servem, todos aqueles que dela se servem e todos aqueles que obrigados são a servirem-se dela. E rematando o livro com a expressão lapidar proferida pelo juiz substituto: «está aberta a audiência», qual chave com que se fecha a arca onde se arruma algo precioso, quis significar claramente que o verdadeiro e último juiz era o auditório presente, o povo, no caso vertente, os leitores que tivessem a paciência de ler o livro até ao fim e discernissem sobre o conteúdo das páginas que lhe davam corpo, que liam os documentos citados e descodificassem as metáforas e analogias literárias da sua tessitura.

(continua)

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.