2 – A FICÇÃO
«Em véspera do julgamento o juiz desapareceu (...) defensor da transparência e autenticidade em todo o tipo de relações humanas (...) decidido a «ser» e não apenas «parecer», não encontrou outra saída senão a morte (...)
Foi encontrado uns dias mais tarde a boiar no Poço dos Molgos (...)
Num papel solto encontrado sobre a sua secretária, estava marcada a data e o local do julgamento. Segundo ele, o edifício que ostentava a legenda DOMVS JUSTITIAE ficaria de portas fechadas. O julgamento iria decorrer em lugar amplo e aberto. Era sob a frondosa copa da «Carvalha do Presépio», ao Mosteiro. E foi. Foi à sombra deste «’Roblin’ dos Bosques» que outro juiz, os jurados e demais elementos ligados ao Tribunal se reuniram. Esclarecidos todos, sobre o assunto a tratar, o juiz, escorado na sapiência académica e da vida, está pronto a exercer a sua missão. Sentado atrás de uma mesa de carvalho improvisada, pega num calhau rolado, bate com ele três vezes no seu tampo e diz, em voz alta, de modo a chamar a atenção do mais desatento:
- Está aberta a audiência!». (cf. Abílio Pereira de Carvalho, «Julgamento», Palimage, 2000)
Nas poucas linhas que transcrevi, todas elas no último capítulo do romance, como que a fechar toda a trama, deixei bem claro o que metaforicamente pensava sobre a Justiça em Portugal. Com o suicídio do juiz, no rio Paiva, e a sua substituição por outro, não pretendi outra coisa senão significar a morte simbólica da velha magistratura formal, aspecto austero, circunspecta, toda de preto vestida, liturgia do «levantar e sentar», mais a incutir medo do que respeito. Ritual lúgubre que, nos tempos modernos, nem sequer, encontra acolhimento em todos os magistrados. Alguns conheci eu (actualmente jubilados) que, pela sua humildade e sabedoria, me deram mostras de terem assimilado muito bem os conceitos de PODER e de AUTORIDADE, de MEDO e de RESPEITO. Sendo que o PODER se associa ao MEDO e a AUTORIDADE se associa ao RESPEITO. E mais ficou esclarecido: que o MEDO se manifesta somente na presença de quem tem o PODER e o RESPEITO pela AUTORIDADE se manifesta mesmo na sua ausência. O PODER é intrínseco à função de que se está investido, a AUTORIDADE resulta do comportamento, do saber, da competência, da forma humana de estar face ao seu semelhante, independentemente do estatuto socioprofissional.
O exemplo mais flagrante que conheci, não conformado com o funcionamento da velha Justiça, foi o daquele «Juiz que se cansou de sê-lo», em Lourenço Marques, Moçambique, terra de outras gentes e outros costumes. Cansado de tomar decisões baseadas na matéria produzida nos autos, ciente de que ela tantas vezes estava eivada de mentiras e falsidades, matriculou-se na Faculdade de Veterinária, decidido a encontrar entre os animais a realização profissional e humana, que, no seu entender, não encontrava entre os homens, naquela profissão. Na sua consciência não havia espaço para o álibi justificativo: «se o juiz for para o inferno, vai montado nas testemunhas».(cf.www.trilhos-serranos.com», botão «novidades».
Mas, como dizia, com o encerramento da DOMVS JVSTITIAE, nesse meu romance, deslocando o julgamento para um espaço aberto e arejado, a sombra da centenária «Carvalha do Presépio», os membros do tribunal, sentados à roda de uma tosca mesa improvisada, o juiz a servir-se de um calhau rolado, em vez do torneado e polido macete de madeira, mais não pretendi que insinuar o desejo de ver uma justiça simplificada, rápida, eficiente, liberta da teia em que se enredam todos aqueles que a servem, todos aqueles que dela se servem e todos aqueles que obrigados são a servirem-se dela. E rematando o livro com a expressão lapidar proferida pelo juiz substituto: «está aberta a audiência», qual chave com que se fecha a arca onde se arruma algo precioso, quis significar claramente que o verdadeiro e último juiz era o auditório presente, o povo, no caso vertente, os leitores que tivessem a paciência de ler o livro até ao fim e discernissem sobre o conteúdo das páginas que lhe davam corpo, que liam os documentos citados e descodificassem as metáforas e analogias literárias da sua tessitura.
(continua)