PRIMEIRA PARTE
Abro a caixa de correio colada ao portão metálico de entrada da minha moradia e retiro dela, pela portinhola interior que dá para o pátio, um envelope almofadado, esponjoso que me dá como destinatário.
Pelo remetente logo vi tratar-se de um livro encomendado, dias antes, pelo telefone, da autoria do PROFESSOR ANTÓNIO BORGES COELHO com o título “OS LUSÍADAS”, e subtítulo “ANTOLOGIA TEMÁTICA E TEXTO CRÍTICO,”, Edições AVANTE. Presumi estar ali dentro uma esponja “prenhe de suco” que eu iria espremer e saborear até à última gota, pois, dada a proveniência, promissor e apetitoso era, seguramente, todo o seu conteúdo.
SEGUNDA PARTE
Ciente de que o PROFESSOR, se estivéssemos frente-a-frente (como estivemos algumas vezes, ele na condição de PROFESSOR e eu na condição de aluno) me toleraria, humanamente, a analogia que faço deste seu trabalho, semelhando-o a uma “esponja prenhe de suco”. Não é minha intenção fazer-lhe uma recensão crítica, pois arcaboiço erudito não tenho para isso e, assim, a primeira coisa que me ocorreu (daí o termo “suco” em vez de “sumo”, quatro letras que remetem para a lusofonia) foi recuar largos anos na idade (já carrego às costas o peso de 85) e, em mente remoçado, retornar a MOÇAMBIQUE, à cidade de Lourenço Marques, entrar no EXTERNATO MARQUES AGOSTINHO, onde, face a uma turma de alunos do CURSO GERAL DOS LICEUS (Curso nocturno, portanto, alunos adultos) logo na primeira aula de PORTUGUÊS lhes sugerir que abrissem “OS LUSÍADAS” no CANTO IX, exatamente na “ILHA DOS AMORES”.
Estudante universitário e professor no ENSINO PARTICULAR, devidamente autorizado pelo Ministério da Educação, diferentemente da forma como, alguns anos antes, era administrada a leitura e análise desta OBRA ÉPICA, método que levava mais a negá-la do que apetecê-la e amá-la (sorte minha, não procedera bem assim o PROFESSOR DR FRANCISCO CRISTÓVÃO RICARDO que tal tarefa tinha, de quem me tornei colega e amigo) eu, na companhia dos meus alunos e alunas resolvi entrar neste TEMPLO PAGÃO (benzido pela Inquisição) usando a porta mais larga, mais a jeito, mais apelativa, mais apetitosa, mais lúbrica. Aquela que os responsáveis pelo ENSINO de então preferiam fechada a SETE SELOS (expressão bíblica) e dela fugiam como o DIABO DA CRUZ, ainda que o bom leitor, pelo aroma natural que exala, sente e não cala, a dimensão HUMANA, UNIVERSAL e INTEMPORAL que emana.
Foi só rodar a aldraba do apalaçado e majestoso portão do TEMPLO - CASTELO, CATEDRAL ou, se alguma simpatia e empatia houver pelos camponeses, a CABANA onde mora e na qual se entra rodando apenas um simples e tosco cravelho de madeira. Mas sempre, em qualquer dos casos, animado JARDIM TERREAL, a Europa inteira, a África inteira, a Ásia inteira, o mundo inteiro, mares e continentes, na sua biodiversidade animal e vegetal. Uma biblioteca repleta de Artes e Letras. Um espanto. As esculturas eróticas de Khajuraho (os séculos X e XI na India, dinastia Chandela) espreitavam ali a cada canto. As figuras esculpidas nos modilhões das igrejas românicas cristãs medievais na Europa, são um simples arremedo.
Ó que famintos beijos na floresta,
E que mimoso choro que soava!
Que afagos tão suaves, que ira honesta,
Que em risinhos alegres se tornava!
O que mais passam na manhã, e na sesta,
Que Vénus com prazeres inflamava,
Melhor é experimentá-lo que julgá-lo,
Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo”.
(“Canto IX, estrofe 83)
E foi um ver se te avias. Cada aluno, todos eles no vigor da juventude, em menos de um ai viraram argonautas experimentados. E cada aluna uma ninfa daquela ilha perdida, matagal de gozo, não recatado, de virtude e não pecado. Os primeiros, os argonautas, cansados de mar e sal, mãos calejadas do áspero manejo do cordame que mantém içado o velame e/ou os polidos arcos e flechas e mechas de canhões, de espingardas e bestas, corriam tresloucados atrás daquelas deidades apetitosas nunca vistas nem sonhadas. E duvidavam dessas realidades inesperadas com aspeto de mulheres. Como agarrá-las? Como palpá-las? Como possuí-las? Como tê-las?
As segundas, as ninfas, elegantes e esbeltas figuras femininas, louras, morenas, negras, mulatas, cor de canela, aspergiam em redondo a sua formusura de corpos, sorrisos e graças. Fugidias como garças em rios e rias, cisnes em lagos repousantes, puseram-se a fazer negaças aos recém-chegados. Uma espécie de jogo erótico e furtivo de ademanes diversos e graciosos, ora mostrando-se, ora escondendo-se, ora sim, ora não, jeitos e trejeitos que mais cobiçosos inchavam os olhos esbogalhados dos nautas excitados, nquele corre-corre, acerca-te, entrega-te, não me fujas, não me acenes. Deslizavam espumosas e cantantes as águas nas ribeiras e, nelas, seminuas ou inteiras, belas, as ninfas mostravam-se e escondiam matreiras. E nas praias, sem vestidos nem saias, espreitavam atrás dos coqueiros de frutos ao alto que, de salto, foram os primeiros navegantes cruzadores de mares inteiros do oriente ao ocidente. O mundo, a natureza e a gente. Envolvia o ambiente uma atmosfera virginal e natural de acasalamento.
De uma os cabelos de ouro o vento leva
Correndo, e da outra as fraldas delicadas;
Acende-se o desejo, que se ceva
Nas alvas carnes, súbito mostradas.
Uma de indústria cai, e já releva,
Com mostras mais macias aue indinadas,
Que sobre ela, empecendo, também caia
Quem a seguiu pela arenosa praia. (Canto IX, Est. 71)
Outros, por outra parte, vão topar
Com as deusas despidas, que se lavavam;
Elas começam súbito a gritar,
Como que assalto tal não esperavam;
Umas, fingindo menos estimar
A vergonha que a força, se lançavam
Nuas por entre o mato, aos olhos dando
O que às mãos cobiçosas vão negando”. (Idem, est. 72)
Da minha lavra (e fora de aulas) eu diria que nesse jogo assim, de entrega e de fuga, de beijo e desejo, naquele esconde-esconde todos eles tatearam o Venus monte, desceram a espumosa ribeira, penetraram sertões dentro, esquecidos das naus, das cordas e das velas. Dos nós da arte de marinhagem. Um mistério. Por todos os lados, eles viraram volumosos troncos de árvores e elas jiboias neles enroladas. E rebola-que-rebola, a rebolar unidos, aos pares, dois corpos num só corpo, cansados, às naus retornaram a custo, exaustos, saudosos, a explodir experiências, vivências e ilusões. Todos eles viraram poetas. Todos eles viraram Camões. E Dinamenes todas elas, a pinchar que nem gazelas. Marujos e marujas perfumadas de aromas mil, do sândalo, noz-moscada, gengibre, canela e caril. Subiram às naus e com elas na mente prosseguiram a gesta lusitana. Mastros ao alto, velas enfunadas, a saga seguiu avante a rasgar ignotos mares de vento em popa. Não acabava ali o mundo das sereias, o mundo real e o mundo das ideias.
SEGUNDA PARTE
Digamos que, sem respeito pelos cânones clássicos seguidos nas escolas, relativamente à leitura e análise d’OS LUSÍADAS”, a minha ação docente, naquela turma, teve assim o começo com o ânimo dos meus companheiros de viagem. E não faltavam entre eles alguns Magricos e outros valentões patrícios que Camões não esqueceu na sua obra. E outros Magriços conheci eu nestas minhas andanças no caminho da vida, entre soldados, civis, cipaios e ordenanças, em territórios onde pus pé firme, por feiras e mercados. Avante.
Mas digo que tal foi o sucesso do meu método que, passados tantos anos, ainda hoje um desses meus alunos, de seu nome Adelino Pina Nunes (mais conhecido por Lino Pardal) de quem não perdi o contacto após a DESCOLONIZAÇÃO e mantive em arquivo sua a ficha escolar com fotografia e avaliação, sempre que me encontra, diz, alto e bom som, aos amigos que o rodeiam, ter sido eu o PROFESSOR que o levou a gostar d’OS LUSÍADAS” e nunca mais esquecer como lhe abri a porta à sua leitura, interpretação e compreensão.
E, mais ainda, ele, que assistiu à queda do Império, com o 25 de abril de 1974, que conjuntamente comigo vimos a navegação ao invés, a expansão virar retração, que vimos os nativos colonizados, até então mandados, tomarem o PODER e mandar, que vimos apeados dos seus pedestais, nas praças, ruas, bairros e quintais, os militares, os escritores, os políticos, figuras de mando, navegantes de quinhentos em bronze fundidos, serem substituídas pelos heróis vencedores insumissos, lembra-me, com oportunidade, a estrofe, onde Camões, numa expressão épica de contexto, como impunham os cânones, escreveu:
“Fazei, senhor, que nunca os admirados
Alemães, Galos, Ítalos e Ingleses
Possam dizer que são para mandados
Mais que para mandar, os Portugueses.
(…)”
(Canto X, est. 152)
O que me leva, nestes século XX e XXI, a colar aqui, em verso “rudo” a minha reflexão sobre esta inversão de marcha, iniciada no século XV-XVI:
DESCOLONIZAÇÃO
PRIMEIRA COLUNA |
SEGUNDA COLUNA |
“(…)É o prólogo da debandada,Tempo de arrumar a trouxa e partirComo alertaram atempadamenteOs poetas-cantores de AbrilQue os governantes não viram,Não escutaram,Não leram, ignoraram.Muita habitação abandonadaO cais abarrotado de contentores,Malas embrulhos num repente.Barcos e aviões cheios de genteQue vai e não volta a vir:Operários enfermeiros doutoresFuncionários domésticas lavradoresCrianças meninos brancosNovos velhos mulatosCivis militares políciasCriadas criados senhores.Serventes negros assimilados,Cães pássaros e gatosReceosos de perseguição e sevícias. |
É o retorno ao retânguloÀ beira mar plantadoTerritório donde partiu GamaDe muitos outros acompanhadoA caminho da Índia sem tormenta.É o século dezasseis ao invésJá ninguém por aqui se aguentaNo império de lés a lés.Tudo, tudo se vai emboraE o Adamastor mostra agoraO seu rosto verdadeiro.Vinga-se do pioneiroQue um dia se atreveuA dobrar o Boa Esperança:O navegador BartolomeuCantado por Camões.Vinga-se das geraçõesQue aqui fizeram vidaAqui buscaram pão e guaridaSem pensarem na contradança.
abílio (FACEBOOK) |
Alguns anos antes, convém lembrá-lo agora, naquela atmosfera nacional de que Portugal era do Minho a Timor, os mesmos compêndios cá e lá, os testes feitos em Lisboa e remetidos para liceus oficiais de todo o território, daquém e dalém mar, onde eram respondidos, aprovados ou reprovados por alunos no ENSINO PARTICULAR ensinados, nas aulas do CURSO GERAL DOS LICEUS, a sintaxe gramatical, as orações, o sujeito e o predicado e bem assim o começa ação da epopeia e a mitologia da antiguidade, os cânones clássicos dos poemas heroicos, as fontes que o poeta transportava acomodados na cabeça (já que ele não levava consigo nenhuma biblioteca), era mais árida floresta, menos apelativa e sensual, menos emotiva e mais racional do que a ILHA DOS AMORES. Mas também nela me fiz acompanhar por esses meus empenhados alunos e alunas que, trabalhando de dia e estudando à noite, aspiravam navegar por outros mares e céus e manejar o leme profissional a seu jeito com o CURSO GERAL DOS LICEUS feito.
Outras epopeias, tudo, não cantada em verso “sublime e rudo”. Por isso, metidos nesses matagais literários menos apelativos na forma e no conteúdo, não passámos em vão pelas obrigatórias regras gramaticais, pela “grandeza do assunto tratado”, pelo “herói invocado”, pela “unidade da ação”, a divisão do poema em partes:“Proposição” (objeto do canto, est. 1-3)“Invocação”, (inspiração às Nifas, com a originalidade “Tágidesl (do Tejo, est. 4-5); “Dedicatória”, (oferta da obra, est. 16-18), “Narração” (est. 19…) que, seguindo os moldes clássicos, começa no “meio da ação”..
Foi isso. Foi há muitos anos. Foi em tempos que lá vão. Concluo, portanto, que estou velho, mas sempre com um pé nas terras orientais e outro no Restelo.
É que na nau da “HISTÓRIA DA EXPANSÃO PORTUGUESA” sob o comando do Capitão-de mar-e-TERRA, professor ALEXANDRE LOBATO, na Universidade de Lourenço Marques (docente que mais sabia das épicas façanhas dos portugueses por aquelas bandas do Índico, com obra bastante publicada) naveguei nas costas do Índico, tive acesso à identificação, categoria e condição social dos embarcadiços que rasgaram os mares e conquistaram as terras do império. Socorro-me aqui, para o efeito, de Filipe Gastão de Almeida de Eça, extraindo do seu livro “DE DESTERRADO A GOVERNADOR GERAL”, editado em 1950, o seguinte passo, que, escrito embora, em prosa simples e linear em nada detoa do canora verso camoneano escrito em tom gandiloquente. Assim:
“Não é de espantar, pois, que num meio heterogéneo constituído por uma grande maioria de degredados e sentenciados, de falhados e aventureiros, de viciosos e ociosos, quase sempre analfabetos e quase nunca virtuosos, a palavra de ordem circulasse no ambito da venalidade, da concussão, da fraude, peculato, suborno, corrupção e quejandas torpezas e indignidades, fosse qual fosse a categoria, profissão, raça ou cor de tão perniciosos elementos. A imoralidade tornara-se endémica e a todos atingia, desde as casamatas das prisões aos palácios de próceres, desde as casernas às sacristias.
Nobreza, Clero e Povo, deixavam-se arrastar na onda avassaladora das ambições ilegítimas e os poucos homens de bem aue por lá apareciam, ou morriam minados de desgostos, ou retiravam prematuramente, desiludidos da regeneração de tal grei”. (ob.cit pp. 72-73)
QUARTA PARTE
Posto o que, volto ao livro do PROFESSOR BORGES COELHO. Lombada assente na palma da mão direita, miolo virado para mim, como se fosse um espelho, folheei-o com a mão esquerda (eu sou canhoto) assim a modos como os ricos, mais preocupados com o TER do que com o SER, sorridentes, puxam as orelhas a um maço de notas azuis ou vermelhas. E vi “claramente visto” que o recheio era constituído por “estâncias” selecionadas, seguidas de “textos críticos”, REFLEXÕES ERUDITAS, por forma a que, palavras ditas, o leitor entendesse, fio a pavio, o nosso ÉPICO, nem sempre bem tratado e interpretado, senão mesmo adulterado.
Comparei-o a uma “esponja prenhe de suco” e disse que iria espremê-la e saboreá-la até à última gota. Não é inusitada a analogia. Imaginem-me num qualquer deserto, sem árvores, rios e fontes por perto e sequioso, ansioso de uma gota de orvalho poético, histórico e literário que amenize a secura que me rodeia, onde, de ordinário, dia após dia, anos inteiros, se fala de cabritos e de cordeiros, se não bebe literatura, história e poesia? Foi um consolo. À sombra reconfortante, fora do deserto e do redil saciei a sede. Esgotei o cantil.
O professor António Borges Coelho (que também foi profesor da minha esposa MAFALDA e eu aqui faço uso de alguns dos desenhos dela, assinados ou em esboço) a rondar, segundo me disse pelo telefone, 96 anos de idade (quase um século de vida e muitos séculos de saber) não perdeu tempo com a análise gramatical, nem era de perder com esse inferno que martirizava os estudantes para logo esquecerem feitos que fossem os exames.
Humanista que é, sublinhou o humanismo do poeta, as suas andanças pelo mundo, os seus saberes, forma de estar e de viveres. Quedou-se nas suas origens, filiação e naturalidade. Defende Lisboa contra Coimbra. Mostrou a importância da obra em si, os interesses económicos e morais que moviam os intervenientes, os reis, os navegantes, os piratas e os comerciantes, governantes nacionais e coloniais, seguiu os passos do vate que, mesmo “manco” de um olho, viu bem, e denunciou melhor, as injustiças e avidez de governados e governantes: clero, nobreza e povo. Mais linear e nada poético fez o mesmo Almeida De Eça, como acima deixai na transcrição, por via das dúvidas.
Um encanto. No entanto, sem traquejo bastante para escalpelizar a vertente erudita deste livro, nem propensão para isso, ele serviu-me, aqui e ali, digamos a cada onstante, de pretexto para repescar alguns lampejos que, eu próprio, em prosa ou em verso, fui deixando pelo caminho da vida, enquando podador que, de podão em punho, tem procurado abrir algumas clareiras de conhecimento na Florestas das Letras.
E não. Não. Não navego na “Nau Catrineta” que tem muito que contar.
O Professor António Borges Coelho, mostrou a condição social dos embarcadiços e espírito aventureiro humano (universal), digamos aue personificado em Fernão Veloso. Bravatas e fraquezas da essência humana. E om ele vimos como Fernão Veloso, deu “às de vila diogo” quando se viu acometido pelos “cafres” arrogantemente provocara. Eu o lembro, botando mão ao meu compêndio liceal:
"Disse então a Veloso um companheiro
(Começando-se todos a sorrir):
"Oulá, Veloso amigo, aquele outeiro
É milhor de decer que de subir."
"Si, é (responde o ousado aventureiro);
Mas, quando eu pera cá vi tantos vir
Daqueles cães, depressa um pouco vim,
Por me lembrar que estáveis cá sem mim."
(Canto V, 35)
Este é o Veloso cantado de Camões. Mas o outro Veloso canto eu glosando o nosso vate, inspirado num facto histórico que tem Gaspar Veloso como protagonista, alcaide-mor que foi na Capitania de Moçambique, contemporâneo de Camões.
Alcaide diligente, pronto a socorrer as naus da Índia e as gentes que ali chegavam (à Ilha de Moçambique) em condições deploráveis ou carregadas de especiarias, pronto estava igualmente a regressar ao Reino bem "abotoado" com o produto do contrabando da mercancia que, todos os dias, no mar e em terra se fazia.
Mas nesse tipo de negócio não teve do seu lado Cristóvão de Távora, empossado em cargo superior. Com razão ou por intriga, acompanhado de João de Lemos, escrivão de Sofala, mandou tirar uma devassa geral na qual achou tão culpado Gaspar Veloso que o mandou prender e sequestrar toda a sua fazenda, substituindo-o, então, no cargo por Jorge Figueiredo que era escrivão.
Chegado ali Fernão da Alcáçova, Cristóvão de Távora mostrou-lhe a devassa, sublinhando que o estado da feitoria era uma "casa de pimenta que aqui está de partes onde estavam umas jarras de cânfora da qual fazenda ele tinha a maior parte roubada".
Devassa feita, papelada lida, apurados os factos, reais ou aparentes, não isentos, certmante, de intriga, (ontem, hoje e sempre), não eram muito diferentes os homens de antigamente, dos homens que somos, do rouba, ensaca e foge. Estávamos no ano de 1517. E Veloso, no ledo engano de enriquecer como tantos que, com treino, nas naus, nas caravelas, nos batéis sem quilha faziam contrabando no mar e na terra firme, ficou preso na ilha, à espera de ser recambiado para o Reino.
E este evento histórico, ao qual cheguei pela mão do Professor ALEXANDRE LOBATO, meu professor na Universidade de Lourenço Marques, responsável que era pela cadeira de HISTÓRIA DA EXPANSÃO PORTUGUESA, deu-me ocasião para glosar Camões, naquele passo do «aventureiro Veloso», assim:
Disse então a Veloso um companheiro
(começando-se todos a sorrir)
De alcaide passaste a prisioneiro
Sabes agora o que é descer e subir.
Sim, respondeu o ousado aventureiro
Mas quando vi tanto ladrão por aí
À solta, eu pr'a cadeia depressa vim
Por me lembrar que estáveis cá sem mim.
(Abílio/setembro2015)
QUINTA PARTE
O PROFESSOR BORGES COLELHO começa este seu livro refletindo sobre o DESCONCERTO DO MUNDO visto por LUIS VAZ DE CAMÕES e remata aludindo aos RETRATOS que se conhecem do POETA. E mosta a sua simpatia/empatia por aquele que foi feito em Goa, um ano após a sua morte, v.g. em 1581 resultante das informações orais colhidas entre as pessoas que o conheceram, desde nobres a gente do povo. “Rudes marinheiros e soldados, gente do “pobre “ povo, manta de retalhos que envolvia também escravos dos vários continentes, refizeram-lhe amorosamente o rosto e a figura”.
Sem o querer, ou talvez querendo, este meu antigo professor na Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, deixou encaixilhada, em poucas linhas, a figura de CAMÕES e nela, as cores multirraciais e sociais, a universalidade e intemporalidade da obra produzida -lírica e épica - e mais o vulto de uma figura humana que recende aos mil interesses, grandezas e baixezas do império, os mil aromas das especiarias que enfunaram as velas das naus e caravelas, produtos que se negociavam em qualquer “bazar” de quinhentos e se negoceiam nas grandes superfícies dos nossos dias. Os Lusíadas, mesmo que HINO NACIONAL será sempre, para qualquer estudioso, curioso ou intelectual, uma obra imortal, recheada que está de história, universal, intemporal e humana.
Mas se Borges Coelho rematou com os RETRATOS e começou com o DESCONCERTO DO MUNDO, é também com esse DESCONCERTO que quero acabar este meu registo, respigando para aqui parte do poema que, em verso humilde, figura nos meus “Trilhos Serranos”, inspirado na balada da NEVE de Augusto Gil. Assim.
Sem sair deste meu chão
Vejo o globo terreal
E nada do que vejo me encanta.
Cai chuva no meu quintal
Caiem bombas na terra santa
Bíblico campo do Armagedão.
E uma infinita tristeza,
Uma funda turbação
Entra em mim, fica em mim presa.
Mata o homem a Natureza
O homem a si mesmo se mata
E ante tanta crueldade
De olhos postos em Gaza
Pergunta o meu coração.
Onde está a HUMANIDADE?
Abílio/19/10/2023 (publicado no Facebook)
CONCLUSÃO
Por ali, pelo MÉDIO ORIENTE, pátria de Fenícios, navegadores e comerciantes antigos, passou a ROTA DAS ESPECIARIAS, na Idade Média. Por esses tempos, algures, no outro lado do mundo, havia um rei cristão, de seu nome Prestes João. Quem queria saber dele? El-Rei D. João II. Eu, eia, membro da epopeia, invisível, fui avante, na companhia de Afonso de Paiva e Pero da Covilhã, procurá-lo a caminho do Levante. Metemo-nos Mediterrâneo dentro, Ásia dentro. África dentro. Sem sinais de encontrá-lo. Mas encontrámo-lo lá na costa oriental. E a África não era somente selva, leões, elefantes, serpentes, macacos e tribos de tangas. a história descobre-se, escreve-se não se tapa. Não falo do reino do Monomotapa, mas de Tombuctu, onde havia uma universidade. O mesmo na Etiópia e muitos manuscritos tinham ambas. A moirama e a cristandade copta daquelas bandas. Não foi busca vã e, de “corpo são e alma sã” por lá se ficou Pero da Covilhã. Encontrado, mais tarde por nós naquele lugar exótico recusou-se voltar ao Portugal patriótico. Nunca curei de saber porquê. Mas, tal como Henrique Galvão, depois de conhecer “OUTRAS TERRAS, OUTRAS GENTES” africanas e orientais, conclui que não foi por razões dementes.
Assinado era já, em 1494, o Tratado de Tordesilhas. Dividido o mundo em duas partes, continentes e ilhas, as naus, galeões, galés, veleiros e caravelas, abarrotavam de canela, pimenta, noz-moscada, ouro, marfim, prata escravas e escravos, pais e filhas. E o Papa não tardou a legitimar o título de D. Manuel, “Senhor da Conquista, navegação, comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e India”. Di-lo João de Barros, na “Década” I, Lv. VI, cap. I, pp228-230). E também o tráfego de escravos. Assim:
“Descobriu terras habitadas do gentio herético para se poderem conquistar e tomar das mãos deles como de injustos possuidores, pois negam a glória que devem ao seu Criador e Remidor (…) descobriu o comércio das especiarias, as quais eram tratadas e navegadas por aqueles povos infiéis…)
Toda a gente assinava esta glória? Não. Das Américas, nos anos 1538 ou 1539, chegou a voz de Frei Francisco de Vitória, em relatório escrito:
“(…) O Papa não é senhor civil ou temporal de todo o orbe falando de domínio e poder civil em sentido próprio (…) ainda que os enfieis não queiram reconhecer domínio algum ao Papa, nem por isso se lhes pode fazer guerra, nem tomar seus bens” (idem).
João de Barros e outros historiadores deixaram-nos documentos raros sobre navegações, conquistas e descobertas. E porque dizê-lo, em História não é coisa rara, boto a mão a Zurara (1452/1453) e leio a primeira partilha dos escravos, em Lagos:
“Mas qual seria o coração, por duro que ser pudesse, que não fosse pungido de piedoso sentimento, vendo assim aquela campanha? (…) Mas para seu dó ser mais acrescentado, sobrevieram aqueles que tinham cargo de partilha e começaram de se apartarem uns dos outros, a fim de porem seus quinhões em igualeza; onde convinha de se apartarem os filhos dos pais e as mulheres dos maridos e uns irmãos de outros. A amigos nem a parentes não se guardava nenhuma lei, somente cada um caía onde a sorte o levava”. (Zurara, “Crónica de Guiné”, Liv. Civilização, 1973, pp. 122-123)
Que eu saiba, Zurara era um cronista, não era um poeta e, garantidamente, não fingia ser dor, a dor que deveras descrevia.
E só em 1572 surgiria a primeira edição de “Os Lusíadas”, a gesta heróica dos portugueses, mais de uma centena de estrofes, divididas em cantos, a cantar as glórias nacionais, a nossas aventuras pelo globo terrestre e a chegada de Vasco da Gama à Índia. O comércio das especiarias que tinha Veneza por capital, muda a mesa para Lisboa que se to4na capital do reino e do mundo. Mas, para tanto, foi preciso dobrar , no fundo da África o CABO (1488), ali onde o Indico e o Atlântico, dois girantes, encrespam e se confrontam, há milénios, séculos, anos, dias, horas, instantes, sob o olhar atento do promontório orográfico de fronte, aquele monte que Camões personificou no Gigante ADAMASTOR, assim:
Não acabava, quando uma figura
Se nos mostra no ar, robusta e válida,
De disforme e grandíssima estatura,
O rosto carregado, a barba esquálida,
Os olhos encovados, e a postura
Medonha e má, e a cor terrena e pálida,
Cheios de terra e crespos os cabelos,
A boca negra, os dentes amarelos.
E eu, aventureiro, seguindo a mesma rota, a caminho de Moçambique, turista, sentado na proa dde um barco sem velas nem a Cruz de Cristo nelas, ia anotando as impressões da viagm em busca de um futuro incerto, mas um mar de esperanças à minha frente.
A páginas tantas, no seu segundo “texto crítico” (pp.39), o Professor Borges Coelho, deixa uma interrogação eivada de alguma tristeza: “quantas pessoas me têm perguntado, muitas delas com a escolaridade máxima: mas que importância têm afinal Camões e “Os Lusíadas”? Para que serve a poesia? - Gostava que esta edição pudesse ser uma resposta aceitável à pergunta.”
Caso para, no remate final deste meu apontamento, este BEIRÃO de raiz, com 85 anos de idade, perguntar ao TRANSMONTANO Borges Coelho, de 96 (meu professor que foi na universidade de Lisboa) se o seu trabalho de historiador e poeta, juntamente com o de Dr. Francisco Cristóvão Ricardo, ALGARVIO (meu professor que foi de liceu, em L. Marques, (já falecido) deixaram marcas visíveis na peça de barro que moldaram na sua roda de oleiros, ou se foi tudo trabalho vão. Com esta idade e com curriculo profissional e social lacrado com selo público e raso de tabelião de comarca, dispenso exame e avaliação. Certo?