PRESÉPIOS
Em 2018 publiquei, neste meu espaço, duas fotos alusivas ao NATAL sob o título “DO FIGURATIVO AO SÍMBÓLICO”. Ambas aludiam à QUADRA NATALÍCIA, mas ambas distintas eram daqueles PRESÉPIOS TRADICIONAIS catequéticos, onde, em torno das imagens de JESUS, MARIA e JOSÉ, aparecem, infalivelmente, o burrinho, a vaquinha e os pastorinhos, mais os três reis magos Baltazar, Gaspar, Belchior e os respetivos camelos bem albardados com incenso, ouro e mira.
PRIMEIRA PARTE
Sem esse núcleo de figuras, distribuídas por íngremes montes e escabrosos caminhos que levavam a uma pobre CABANA com um MENINO deitado sobre ásperas e picantes palhinhas, não havia PRESÉPIO, nem NATAL. E ninguém se interrogava que MÃE era aquela que, em vez de aconchegar ao seu peito a criancinha recém-nascida, transmitindo-lhe o calor do seu colo, a expunha, assim, pouco mais que nua, sobre palhinhas soltas despidas de calor e aconchego humano. Claro que num quadro campesino assim recreado em miniatura, valia ao “crianço” o pródigo e carinhoso bafo dos animais que, em tais carinhos, substituíam os pais. E, então como hoje, não faltam ocasiões para vermos os quadrúpedes a darem boas lições ao humanos no que respeita a proteger as suas crias.
Enfim eram essas as imagens, os protagonistas do PRESÉPIO ANTIGO e nós, crianças serranas, pastorinhos e pastorinhas-escolares, que carregávamos as nossas cestas de musgos e pedrinhas para essa recreação “histórica”, nadas e criadas em meio aldeão, rotas, esfarrapadas, descalços ou de tamancos, todos em redor do prato da consoada - batatas, bacalhau e couve troncha - éramos felizardos que nem príncipes aquecidos ao borralho das lareiras a ouvir a repetida história do DEUS MENINO, de mistura com bruxas e lobisomens.
SEGUNDA PARTE
De há uns tempos a esta parte tornou-se evidente o abandono da representação FIGURATIVA, pura e dura, tornando-se visível o crescente gosto pela representação SIMBÓLICA, seja porque as novas gerações, deixaram de andar descalças ou de tamancos, elas, que na sua maioria ascenderam a outra forma de vida, andam agora rotas por opção, elas aprenderam projetar a história, a cultura, as tradições, seja por tudo isso, ou seja porque entre nós vão desaparecendo os burrinhos e as vacas de trabalho e de leite, por força da agricultura tradicional abandonada.
Digamos que a recriação de uma TRADIÇÃO, com carateres documentadamente rurais, apagou esses traços identificadores e, deixado o carater marcadamente primário e artesanal, aparece-nos agora, em algumas das REPRESENTAÇÕES, a subida categoria de esculturas dignas de serem fundidas em bronze e postas num qualquer largo ou praça urbanas de vila ou cidade, como marca de um evento histórico, religioso e cultural. A matéria plástica de qualquer natureza virou verbo, escrita, poema, prosa, aberta a toda a todas as leituras e interpretações de gente sensível e culta.
Com efeito, neste ano de 2024, entre as muitas representações de PRESÉPIOS ARTESANAIS (alguns deles de inspiração pioneira) expostos no Largo das Carrancas, em Castro Daire, a minha sensibilidade artística quedou-se na ESCULTURA posta no Largo de S. Pedro, junto ao velho HOSPITAL DA MISERICÓRDIA, com a legenda “CENTRO HISTÓRICO O CASTELO”.
O artista ou artistas que ali reproduziram uma TRINDADE retirada da Internet (“data venia” ao criativo original) conseguiram acasalar, na peça executada, de forma inteligente, sensível, emocional e histórica, o FIGURATIVO e o SIMBÓLICO, fazendo uso das técnicas e produtos modernos espumosos e isolantes injetáveis, disponíveis no mercado.
Eu explico. Aos olhos de qualquer visitante, espectador, mirone, curioso e/ou estudioso, logo surgem as imagens da NATIVIDADE, portanto de NATAL e do PRESÉPIO. Só que as imagens humanas que ali vemos deram o salto qualitativo do FIGURATIVO para o SIMBÓLICO, que o mesmo é dizer, não são reproduções exatas de figuras humanas, mas para elas remetem imediatamente. E não haverá quem não veja ali JOSÉ, MARIA e o MENINO, desta feita fora das ásperas palhinhas e aconchegadinho, enroladinho no braço esquerdo da mãe, como deixa adivinhar o toutiço da cabecinha, única parte do corpo que dele se vislumbra.
CONCLUSÃO
Simbiose EVIDENTE do FIGURATIVO e do SIMBÓLICO, merece destaque aquilo que na peça (em toda ela), resta de campesino e autêntico.
Ora, quem como eu fez uso, até aos 18 anos, da capucha de burel e sabe o que ela é e vale nos tempos de chuva e de frio, não deixa de associar o manto usado pelos FIGURAS ali representadas, a esta peça de vestuário de burel, saída da lã dos ovinos, indispensáveis companheiros de vida de todos os serranos. Tosquiada, lavada, escarpeada, carduçada, cardada, fiada, chegava aos teares artesanais, ali se faziam teias levadas para os pisões hidráulicos perdidos na rede dos nossos rios e, pano devidamente “enfortido” era, finalmente, talhado e cosido por mãos de alfaiates experimentados. Obras feitas à medida e por encomenda: capuchas, mantas, calças, casacos, coletes de burel. Tudo de burel. Meados do século XX. Idade Média. Tempo de Jesus Nazareno. O meu tempo.
E do meu tempo e conceção de um colega meu no Externato Marques Agostinho, em Lourenço Marques, é o POSTAL de “FESTAS FELIZES” do NATAL DE 1974, tal qual vemos, aqui ao lado. Arquiteto de profissão, faleceu em Aveiro, poucos meses depois de eu e o meu e seu ex-aluno, ADELINO PINA NUNES (LINO PARDAL) o termos visitado mais à FAMÍLIA, em 2022, como ficou registado na foto do encontro, aqui ao lado. Na primeira mesa, à esquerda, o arquiteto e a digníssima esposa. No lado direito eu e o nosso ex-aluno, ADELINO PINA NUNES, o grande responsável pelo encontro que, ao volante do seu BMW, fez questão de reunir os dois professores que teve na costa oriental de África. Testemunho de espeito, consideração e amizades que vêm de longe.
É desse, então, jovem arquiteto, esta peça de arte alusiva à QUADRA NATALÍCIA, com o título “FRATERNIDADE”, posta aqui ao lado direito deste texto. Estávamos em dezembro de 1974. Ali, e naquele tempo, mais não era preciso para, num conjunto de tábuas recortadas e furadas, aparecerem irmanadas, sem distinção de ideario político, de raça, de cor e religião, uma floresta natural e uma floresta humana. Discute-se hoje por acá e por todo o mundo o RACISMO. Será preciso sublinhar a ideia luminosa que, nesse contexto histórico de DESCOLONIZAÇÃO, ali em Moçambique, brilhou na jovem cabeça do arquiteto meu colega docente? Claro que ele ainda viu, em vida sua, as primeiras desavenças políticas entre os naturais daquele território, mas faleceu sem ver os «distúrbios» que ocorreram nas ruas, avenidas e praças de Moçambique, depois das últimas eleições. Que dirão eles, os DESAVINDOS, naturais da terra onde deixei parte da minha juventude, desta escultura com o título FRATERNIDADE?
Em MEMÓRIA do autor, tantos anos depois, nesta QUADRA NATALÍCIA aqui deixo o seu nome em letras maiúsculas: VICTOR MANUEL SILVA, professor que foi no EXTERNATO MARQUES AGOSTINHO, em Lourenço Marques, hoje MAPUTO.