Trilhos Serranos

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quinta, 12 setembro 2024 13:44

SER HISTORIADOR

Escrito por 

A NOSSA TERRA - A NOSSA GENTE

São os ossos do ofício”, assim diz o povo e eu, para comecilho de novelo, faço uso dessa  vulgaríssima expressão para dizer que não é fácil ao historiador exercer o seu múnus. 

 PRIMEIRA PARTE - HEURÍSTICA/HERMENÊUTICA

Fareja-Sentença2É isso. Sem ser mago, nem possuir ou dominar as técnicas das “ciências ocultas”, ele, manuseando documentos, pergaminhos, fotografias, manuscritos, folhetos, jornais, anúncios, estudos e fontes afins, incluindo lápides nas campas funerárias, tudo o que é suporte de informação, passa o tempo a exumar os protagonistas da HISTÓRIA, a trazê-los de volta à vida, às terras que pisaram, a lembrar-lhes os actos que praticaram, decisões tomadas e a deixar aos vindouros do mundo vivo tudo o que consegue exumar do mundo morto.

1-LibeloDe facto regressar ao passado, penetrar nas mentalidades da época, conhecer os usos e costumes, comportamentos, relações sociais, formas de vida, é mesmo uma “trabalhêra” que pode não fazer calos nas mãos, como acontece ao cavador, mas faz, seguramente, calos na alma.  Deixa marcas. A lida frequente com documentos antigos, com gente e factos distantes, leva o historiador a encolher o fio do tempo e aquilo que para o cidadão comum está muito longe, está para o historiador “logo ali” ao “dobrar da esquina” e chega-lhe às narinas o doce perfume das pessoas abastadas (senhores e donas), nos seus amplos salões com mobílias de “estilo” e o repelente suor de quem lhes trabalha as terras aforadas, emprazadas, de invernos ao estios sem conta.

É isso. E debruçado que esteja sobre um manuscrito, fala com as pessoas ali sepultadas (há muito ou menos tempo) e respira os ares que eles respiraram, seja dentro de um castelo, de um solar brasonado, ou num casebre coberto de colmo, perdido, algures, nas pregas dos montes. 

Numa relação de empatia com toda essa gente morta,  protagonistas que foram da HISTÓRIA, o historiador devolve-os à vida, dá-lhe fôlego e andamento,  e torna-se uma dessas pessoas, seu  companheiro de classe, de lazer e de trabalho. Seu contemporâneo. E com elas canta vitórias, chora derrotas, vive a alegria de momentos felizes e sente as dores e a tristeza de momentos maus, das fomes, pestes e guerras. Com eles comunga ou rejeita as ideias e os valores, sem tomar partido.

7-D.Henrique-Mões - CópiaNo que respeita à HISTÓRIA LOCAL lembro dois exemplos apenas. Lembro o D. Henrique de Azevedo Faro Noronha e Menezes, cuja  parcela de vida ficou registada num epitáfio lavrado em granito, junto à sua campa rasa, junto à Igreja, cujo estado de abandono mostra o respeito que se tem pelos antepassados. Ele foi «moço fidalgo», «fidalgo da Casa Real», «juiz de fora em Mirandela», «Governador-Geral em Beja» durante o «Governo Liberal»

Acompanhei-o nas viagens que fez para Mirandela, para Beja, onde foi assumir o cargo de Governador-Geral. Vi-o acomodar as suas vestimentas nos baús, os tarecos da higiene doméstica e livralhada jurídica para bom exercício do múnus e da governação. Senti, com ele, os solavancos da estrada, o descanso nas estalagens e  alquilarias, a qualidade e tempero das refeições, o retempero de energias, a muda de cavalos e o recomeço da viagem. E em cada estalagem tivemos ocasião de saborear os pratos cozinhados: “carneiro assado, rim grelhado, feijão guisado, arroz de marisco, arroz com pardais, iscas com batatas, carne estofada, peixe frito, bifes, papas de farinha de pau, acompanhado de vinho, seguido de um licor e apreciar o sabor de um bolo de amor ou um pastel de nata”.(cf. «Retorno ao Século XIX» (1-2), neste SITE)

Longe fica Beja, mas os seus serviços são ali requeridos. Foi em 1840. O setembrismo, (cf. “Setembrismo”, neste SITE) a que Costa Cabral poria fim em 1842,  grassava no país e, em Castro Daire, arredores de Folgosa, em 1840, era assassinado o Padre José Joaquim de Almeida Bizarro, liberal, às mãos de miguelistas, todos de Farejinhas. Um dos meliantes acabaria condenado à morte por enforcamento. A forca foi levantada na Praça Aguilar, em C. Daire (1844)   e, por letra da sentença, as mãos foram-lhe  decepadas e expostas na povoação, durante seis meses. 

Em redor da forca a populaça concelhia arregimentada pelas partes beligerantes. Vimos o regozijo nos rostos dos liberais pelo desfecho do processo e os rostos compadecidos dos miguelistas. Custoso foi verem baloiçar - vai-e-vem - que nem pêndulo de relógio francês, o corpo de um dos seus companheiros de ideário. Uns e outros, naquela Praça Aguilar, naquele pequeno reduto, em Castro Daire,  estava o país inteiro, dividido em fações políticas, sem  mosquetes e forquilhas nas mãos. António Silva Gaio romanceou, com maestria literária, as desavenças havidas nesta guerra civil, entre liberais e absolutistas, movidas por ódios e vingançasno seu livro “Mário – Episódios das Lutas Civis Portuguesas”. 

Tabelião-1880 - REDZAcompanhei igualmente o escrivão/tabelião, António José Loureiro de Almeida, com CARTA DE NOMEAÇÃO datada de 1880 para logo ir prestar serviço na ilha de S. Jorge, no Açores. Dali foi transferido para Tabuaço donde retornou a C. Daire. Acompanhámo-lo  nas suas deslocações e sentimos os incómodos das diligências e os baloiços dos barcos. Não era fácil a vida, mesmo para os que cidadãos que saíam da Universidade de Coimbra, com o canudo de licenciados ou bacharéis em Direito.

SEGUNDA PARTE - FOTOGRAFIAS

É, pois, mais fácil ao historiador exumar um morto de um manuscrito, pô-lo a andar - “levanta-te e anda”, diz Jesus a Lázaro - do que falar com as pessoas que vemos numa fotografia, encontrada algures perdida, sem qualquer informação, sem referência de data e identificação. Elas estão ali, olham para nós, vestidas a seu modo, a seu gosto, os seus ares sorridentes, ou rostos fechados, metidos para dentro,  eles próprios exteriorizando as suas personalidades, os seus “egos”.

Uma fotografia assim (aqueles que vemos mais abaixo)  é um quebra-cabeças para todos nós investigadores, ávidos de saber, fazer-saber e divulgar o produto da nossa investigação. Elevarmos os retratados à categoria de protagonistas da história, integradas no seu  TEMPO E ESPAÇO. Quando viveram elas? que parcela de território pisaram? em que lugar habitaram? a que família pertenceram? quem foram elas, afinal? 

Ciente de que, genericamente, as comunidades “de antigamente” eram uma espécie de tribo na qual todos os elementos se conheciam, reciprocamente, pois nasciam, cresciam e viviam anos seguidos a lidar uns com os outros, praticavam os mesmos rituais de trabalho e de culto, ouviam os mesmos sinos das igrejas, ou sinetas das ermidas, o toque alegre  das aleluias e as tristezas de finados, integravam as mesmas procissões, iam às mesmas missas, sabiam as mesmas orações e responsos, participavam nas mesmas ladainhas e faziam, em conjunto,  as preces em torno do mesmo penedo do clamadoiro, tomavam banho no mesmo rio, bebiam das mesmas fontes, recebiam nome na mesma pia batismal, iam às mesmas romarias e feiras, etc. etc., aconteceu terem-me chegado aos meus arquivos algumas fotografias vindas de espólios conhecidos e outras abandonados algures, sem qualquer identificação de proveniência. Papéis velhos, inúteis, que alguém ali abandonou ou perdeu.

COMISSÃO DE FESTASDocumentos. Fotografias manchadas, cor esbatida, olhei para os retratados e constatei que não pertenciam à minha “tribo” de criação, aquela onde eu nasci, cresci e me tornei adulto. Lá, na minha aldeia, onde só a lua, as estrelas e o sol alumiavam os bens ao luar, até pelo tamancar, pelo andar, na noite escura, se identificavam as pessoas. Para mim, nestas fotografias, por mais que queimasse os neurónios, que penetrasse nos recônditos  da memória, eram somente pessoas, seres humanos num momento de convívio a posar para uma câmara fotográfica. Pessoas dotadas de sentimentos, afetos e sentido de grupo, todas unidas por elos afetivos. Um documento surdo e mudo, que bem podia servir os criadores da moda, inspirando-se no seu vestuário para criarem novas peças e apresentarem as suas novidades anuais, nesta nossa sociedade consumista, mas, para mim, nada.

 Não desisti de saber que eram. Sabendo pertencerem à comunidade “castrense” mirei o seu vestuário, a sua postura e concluí, com alguma margem de erro, situá-las nos anos 20/30 do século XX. Gente morta. Gente do outro mundo que foi deste.

MARCO GEODÉSICOSeguro disso, recorri a pessoas idosas, aquelas bibliotecas ambulantes que eu nunca descarto nas minhas pesquisas sociais, sempre que me debruço sobre o passado próximo. Era o caso. Um osso duro de roer. 

Mostrei-lhes as fotografias. E, cada uma de per si, não tardaram a identificar os retratados, entre os quais figurava uma criancinha ainda de seu nome Claudina. Eureka. Sou um afortunado. É que, os interpelados, por terem essa idade, cresceram a ver toda aquela gente toda, a falar com ela e segura estar de quem eram. Seus companheiros de vida. Tudo falecido. Vivos  estavam eles. Quem? a D. Claudina Monteiro, o senhor António da Cunha, a D. Alice Almeida, o senhor Júlio Alexandre Pinto, o senhor Manuel Araújo e Gama, o senhor Zeca Carneiro, José Carlos Ferreira Pinto, (o Carlinhos) todos, entretanto, falecidos.

O mesmo aconteceu com outra foto mais tardia que para mim não passava, igualmente, disso mesmo, não foram eles. Pois foram também essas pessoas idosas que, vindas dos princípios do século XX, ignorando, embora, a identidade de algumas pessoas retratadas, identificaram a maioria delas, o que me permitiu publicá-las e trazê-las a este APONTAMENTO, com as respetivas legendas.

Essas fontes de informação oral, a quem recorri não raras vezes para ser esclarecido de algum pormenor histórico-social, ou em busca de saber novo, levou-me a fotografar, em vida, o CARLINHOS e a Dona CLAUDINA MONTEIRO atrás do seu balção de mercearia e de tecidos. Já faleceram. Sobre o primeiro já escrevi e publiquei extensa crónica. A segunda, além das informações, cedeu-me, ainda em vida, algumas fotos suas e de seu marido, senhor Mário Monteiro, mais conhecido, no concelho, por “Mário dos Cacos” por ser na sua loja que se encontrava de tudo. Tudo o que, pelas aldeias do Município, se consumia na governança da vida. A par de café em gão, moído ali mesmo na quantidade pedida pelo cliente,  estava tudo o que era mercearia, petroleo, azeite, candeeiros e até latas decoradas com veleiros de piratas para guardar as miudezas da costura, agulhas, linhas e dedais.

CONCLUSÃO

Carlinhos-1CacosEste APONTAMENTO é feito em MEMÓRIA de todos, incluindo os que não tive a oportunidade de não fotografar no seu posto de trabalho. Todos aqueles que se prestaram, gentilmente, a dar-me as informações pedidas.  Cada qual, a seu modo, deu o seu contributo ao conhecimento e divulgação da NOSSA TERRA e da NOSSA GENTE.

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.