DIA DA LÍNGUA PORTUGUESA
No dia cinco p.p. escrevi e publiquei no meu mural e no mural de DOUTOR Amadeu Carvalho Homem, Professor jubilado da Universidade de Coimbra, “LITERATURA E POESIA”, um texto relativo ao MOSTAJEIRO que existe no meu quintal, plantado por mim, trazido da Serra da Nave, ainda pequenino.
Chegado à idade adulta, com a idade das minhas duas netas MAFALDA e MARTA, cujas iniciais estão gravadas no troco, já me prendou com os seus frutos em anos passados, , mas nunca o vi tão florido, vestido de branco, como este ano de 2023. Daí se tornar notícia e eu o associar à roca de linho da minha mãe. E tudo o mais que se segue, tal qual:
MOSTAJEIRO
Ano 2023. Sem engano, maio é o mês e, desta vez, o mostajeiro, copa carregada de flores brancas, aspeto roqueiro, lembra-me a roca armada de linho, cintada pela minha mãe, ao serão, nos tempos que lá vão. Roca no cós da saia espetada, mão esquerda levantada, braço curvado pelo cotovelo, indicador e polegar salibados, beijados, ripavam da rocada, pedacinhos de linho. E a mão direita, braço estendido (mas que experiência, mas que estudo!) segurava e rodava o fuso, pião suspenso pelo fio torcido, torce-que-torce, fia-que-fia, pião cada vez com maior barriga, fuso barrigudo que só voltava a sê-lo, retirada que fosse a maçaroca fiada e eu vê-lo, esquelético e nu, tal qual era, a adelgaçar do cu para a cabeça. E nela um rasgo espiralado que, para encanto e espanto meu, recebia e torcia o linho saído da rocada a cada beijo.
A candeia, de pavio alimentado a petróleo, alumia tudo em redor. E a prole, sete ao todo (quatro rapazes e três raparigas) ouve atentamente as lendas de lobisomens, bruxas e almas penadas. Fomes, pestes e guerras. E, pelas terras, bentas, curandeiros, benzedeiras, personagens de narrativas verdadeiras, identificadas no espaço e no tempo, sem uso de letras e canetas. Só a imaginação, a memória e o pensamento.
Nas paredes negras do fumo pelo consumo diário de lenha verde (na aldeia nada se perde e até o fumo é um bem precioso para as carnes fumadas) paredes negras, dizia, o verniz reluzente, espelhava a sombra da chama da lucerna eterna que nelas se projetava, desfigurava e contorcia, ajeitando-se às reentrâncias e saliências de obra feita de pedra sobre perda, sem régua nem esquadro.
Almas do outro mundo. Almas penadas. Personagens da narrativa que eu, criança ainda, bem no fundo, via naquela sombra oscilante, projetada na parede, sombra disforme, de pé ou deitada, alma penada, contorcida e sofrida conforme a aragem ou a brisa que recebia e a acariciava.
E a minha mãe, beija, puxa, tira, ripa, estica, enrola, fia. E a rocada se desfazia e enchia de maçarocas a cesta de vime, saídas do fuso, tornado pião barrigudo a cada gesto e beijo da minha mãe, naquela sua arte de fiar.
O fuso era efetivamente um pião suspenso a girar no ar, como aquele pião que eu e outros meninos da minha igualha fazíamos rodar no chão. E, ao serão, quantas rocas armadas se desfizeram naquele labor eterno da minha mãe? E que tormentos tinha já passado o linho em todo o seu caminho até subir à roca pronto a ser fiado e beijado? Que trajetória, que tormentos tinha já passado?
Depois de semeado, feito o arranque, feita a ripagem (linhaça para um lado, fibra para o outro) toda a gente sabia que era preciso alagá-lo, afogá-lo um mês inteiro, noite e dia, em água corrente. Depois era estendido na eira e seco ao sol. Depois era maçado. Depois era tascado. Depois era novamente ripado. E, com tantos tormentos, tomavam nome os “tomemtos, a estopa e o linho nas estrigas” entrançado.
Só então, nessa condição, à roca subia. E, de atormentado que foi em todo a caminhada, roca armada, cintada no cós da saia da minha mãe, só então, dizia, recebia os beijinhos da fiandeira. E, de linho roqueiro, de roca, passa a ser fio de maçaroca tornada novelo antes de ser tecido. Tudo da terra à roca, da roca ao fuso, do fuso ao tear (que longo caminho!) até ser lençol de linho, camisa sem colarinho, veste de fidalgo ou lavrador, bragal de noiva, lenço bordado de namorado, símbolo de amor e encanto, toalha rendada de altar aos pés de um santo.
Tudo. Uma eternidade. Desta vez, neste ano 2023, o mostajeiro em flor, no meu quintal, aquele eu trouxe pequenino da Serra da Nave (aqui o digo para quem não sabe) fez-me voltar ao meu tempo de menino e também lembrar a arte da minha mãe, fiando e lendo em voz alta as narrativas do livro que, sem escola, ela carregava na sua sacola desde que era gente. Roca, fuso, “estórias” e tudo fiado e tecido ali, à lareira e à luz da candeia.
E, depois da ceia, chegada a hora de dormir, ia dormir a prole inteira. Tudo obedecia à voz da fiandeira. E o repertório da minha mãe incluía, e nunca esquecia, a derradeira ação do dia: rezar o terço e muita ave maria pelas almas do Purgatório.
Abílio/05/maio/2023