INTRÓITO
“Recorro a uma forma que nunca mais vi repetida, e que trago aqui como memória: o modo como lá para os lados dum lugar onde sei que pisou e em que trabalhou, Castro Verde, de quem sou vizinho próximo, a qualquer comparação tida por indevida, dizia-se:
- " Estás a comparar o cu com a Feira de Castro".
Referia-se à Feira de Castro Verde, que tinha lugar nos princípios de Outubro, e jamais conheci o autor do dito. Na semana que antecedia a Feira de Castro, assim conhecida, à minha porta, toda a noite, passavam e repassavam manadas de bois, os seus grandes chocalhos assinalando a passagem. De dia, descansavam.
No último ano do século passado, estive em trabalho em Castro Verde. Era dia de Feira, da mítica Feira de Castro dos bois e dos chocalhos da minha memória. Acorri, pressuroso! Nem bois, nem chocalhos, nem almocreves, nada do meu imaginário ali estava presente. Algumas mulas manhosas de manhosos ciganos, o resto eram barracas de bugigangas onde se apregoavam inutilidades "Made in China".
Aproveitei a oportunidade e, à “manêra” alentejana (a minha esposa era alentejana), respondi:
“Saborosa vai a conversa, ó compadre! (…) Referiu a FEIRA DE CASTRO. Pois, sem “confundir o cu com a feira”, quando ali estive, fazendo uso de MANUSCRITOS INÉDITOS, escrevi algo sobre ela e TERRÁDEGOS impostos no tempo FILIPINO.
O texto foi publicado no boletim “CASTRA CASTRORUM” fundado pela iniciativa de um jovem advogado, que se tornou NOTÁRIO em Almodôvar, Dr. José Francisco Guerreiro e, aposentado, mantém no ar, na “Rádio Castrense”, o programa PATRIMÓNIO, vai para mais de 30 anos”.
PRIMEIRO CAPÍTULO
Ora, isto foi o bastante para eu correr aos meus arquivos analógicos/digitais e trazer, para este meu espaço, o texto a que aludi acima e outros que publiquei no meu velho site “TRILHOS SERRANOS” e bem assim no periódico municipal “O Campaniço” referentes, também eles, à FEIRA DE CASTRO e à IGREJA DOS REMÉDIOS=IGREJA DAS CHAGAS DO SALVADOR, aquela que foi a beneficiária dos terrádegos da “FEIRA DE CASTRO”, a mando de D. Filipe III, como veremos adiante.
Foi um texto produzido e publicado de parceria com a minha esposa, MAFALDA CARVALHO, igualmente docente na Escola Preparatória daquela vila alentejana e, salvo qualquer trabalho anterior que tenha sido publicado e nos tenha escapado às nossas leituras e pesquisas, bem pode considerar-se pioneiro no que respeita à informação (fora dos arquivos) referindo a data da FUNDAÇÃO da FEIRA DE CASTRO e destino dos TERRÁDEGOS que nela pagavam os feirantes.
Qualquer texto que a tal evento aluda, nas redes sociais, sem se reportar a esta nossa publicação feita no Boletim “CASTRA CASTRORUM”, ou qualquer outra publicação produzida antes da nossa (por nós ignorada) só pode ter sido produzida posteriormente baseada nas mesmas fontes manuscritas, ou, então, ser da autoria dos novos “investigadores /historiadores/digitais”, useiros e vezeiros no “copy/paste”, bem a leste da deontologia que deve orientar a enxada de todo o cavador que, com o seu suor, rega o campo das CIÊNCIAS SOCIAIS.
E o mesmo se aplica aos textos que publiquei referentes aos QUADROS existentes na IGREJA DAS CHAGAS, da autoria do pintor algarvio DIOGO MAGINA, cujo CONTRATO manuscrito, feito com os OFICIAIS DA CÂMARA de Castro Verde, era ignorado por toda a gente, até ter sido por mim “descoberto”, lido e publicado. Vê-lo-emos mais adiante, aproveitando juntar aqui os trabalhos que dispersos estavam nos meus arquivos analógicas e digitais. Assim:
a) A FEIRA – TEXTO PUBLICADO NO «CASTRA CASTRORUM»
«Segundo um manuscrito existente na Biblioteca Municipal de Beja, que faz parte de um maço de correspondência enviada a José Inácio Henriques de Mira, em 1838, D. Afonso Henriques terá mandado edificar em Castro Verde uma ermida com o título das Chagas do Saltador em memória da batalha (ali) C.C vencida contra os mouros.
Por altura do domínio espanhol, a Câmara desta vila e o seu povo terão querido melhorar o templo por estar «muito arruinado ou por qualquer outro motivo».
Mandada ama representação a Filipe III, este terá atendido o ensejo dos Castrenses e mandou que se «fizesse a dita Igreja» para cujas obras ordenou que se utilizassem os «terradegos desta vila» como conta de alvará que mandou passar pela «Mesa da Consciência Ordens» no ano de 1612 , referido nesse mesmo manuscrito
Com a finalidade de arranjar fundos para a construção e manutenção da Igreja, segundo uma carta de 21 de Dezembro de 1838 de António José Moreira de Matos, que também faz parte do maço de correspondência acima referido, Filipe III de Portugal terá removido da Vila de Padrões uma feira que terá tido o seu início nesta vila em 1620.
Em 1680 como consta dos livros das Atas da Câmara desse ano, por nós consultado, os rendimentos dos terrádegos orçaram em 107$110 reis e, neste mesmo ano, «sendo regente de Portugal o filho de D. João IV, D. Pedro, o templo estaria a receber melhorias visto o «treslado» de uma ordem sua para o Livro da Câmara «mandar anexar os terrádegos da feira» ao mesmo tempo que pedia o orçamento das obras feitas, e por fazer na Igreja, empregando nelas «o rendimento da feira e dos terrádegos». E pedia também o Príncipe regente ao Provedor da Comarca de Ourique para este tomar as contas que a feira tinha rendido desde o ano de 1621 até á data da emissão da carta (1680), donde se infere ter a Feira de Castro o seu início entre 1620-1621.
Administrada pela Câmara de Castro Verde, a Igreja das Chagas foi recebendo melhorias externas e internas através dos tempos. Em 1763 as paredes interiores laterais do templo foram revestidas de azulejos a todo o comprimento e altura, da cimalha até ao pavimento, teto pintado e os painéis que se encontravam na capela-mor foram «borrados e pintados de novo com os mesmo passos e imagem de Nossa Senhora» como reza o contrato feito nesse ano com o pintor Diogo Magina que, além desse trabalho, se encarregou também de pintar mais dez painéis novos, cinco de cada lado do corpo da Igreja, representando a Batalha de Ourique (cf. crónica minha no «Castra Castrorum» nº5) que ainda hoje ali se encontram e poderão ser contemplados por qualquer forasteiro, visitante, curioso ou crente que ali forem satisfazer as necessidades do seu espírito.
Da permanência dos painéis e dos azulejos colocados por Diogo Magina se infere que a igreja não terá sofrido alterações de monta na sua estrutura até aos nossos dias.
Estes melhoramentos por altura do seu acabamento (1667) levaram os oficiais da Câmara a dizer que "finda a obra por aquele estilo ficaria aquele templo por dentro não só o melhor desta comarca, mas dos melhores da Província».
A preocupação dos detentores do poder, responsáveis peia construção e embelezamento do templo tinha naturalmente razão de ser. O facto de um templo ser administrado por autoridades laicas e ser embelezado com quadros que ostentam cenas de guerra, explicar-se-á por o poder político se encontrar, no tempo, associado ao poder religioso e esse templo ter sido mandado construi, na sua forma primitiva, por D. Afosso Henriques «em memória da Batalha vencida contra os mouros».
Essa preocupação encontrava-se não só voltada para os aspetos materiais do templo, mas também para os atos do culto que a ele se ligam.
Abrindo aqui um parêntesis, diremos que numa Ata de 15 de Abril de 1680, os oficiais da Câmara, responsáveis pela procissão da Soledade que se fazia anualmente seguida ou precedida áe sermão, ao elegerem para pregador o reverendo Frei Pedro de S. Bernardino, se mostram maís interessados nos atos religiosos do que o próprio pregador.
Este exigia que para fazer o sermão lhe dessem o púlpito da Misericórdia, sem o que «nem que lhe dessem vinte mil reis em dinheiro ou peso de outro tamanho como ele» não faria o sermão, pois não o tinha estudado, nem nunca tivera intenção de o fazer.
Escandalizados com tal atitude por ser a Igreja onde se costuma fazer o sermão de grande devoção e ali acorrer «muita gente das terras circunvizinhas», acusam o pregador de não cumprir a sua obrigação, ao contrário deles que, vendo a devoção e o respeito ao culto divino na procissão da Soledade, invejada em tanta Comarca, o pretendiam aumentar e não «atrasá-la como quer o padre regador».
Não sabemos se os argumentos demoveram o padre, mas a ata diz ainda que se ele não fizesse o sermão, não receberia o ordenado atribuído pela Câmara, o qual se daria a outro pregador.
Fechando o parêntesis e voltando ao manuscrito com que iniciamos este trabalho, ficamos a saber que os rendimentos dos terrádegos foram o suporte económico onde assentou a conservação e melhoramentos da Igreja até 1834.
O redator da notícia não assinada diz que, quando ele era Juiz e Presidente da Câmara, em 1811, vendo a ruina da sua capela-mor, a mandou consertar e abrir duas janelas com vidraças, bem como fazer nova tribuna no gosto moderno de escaiola pelo hábil pintor Pardalinho de Beja. Mandou igualmente retocar, por duas vezes os painéis da batalha e teto.
Sem suporte económico próprio, desde 1834, o templo tem-se mantido de pé ao sabor das circunstâncias e do tempo. Talvez por ser o que se tem mantido aberto com mais frequência ao serviço do culto, é ainda hoje, mesmo sobrepondo-o à Igreja Matriz, o que está mais bem conservado, donde se conclui que, fora da função para que foram construídos grande e pequenos monumentos, se tornam corpos sem alma, abandonados, que desaparecerão a médio ou longo prazo se o Poder Instituído (do presente e do futuro), em defesa do património, os não souber reconverter e pôr ao serviço do homem, em conformidade com as exigências e mentalidades coletivamente dominantes em cada época: ondem, hoje e sempre.
SEGUNDO CAPÍTULO
«Arrematação da obra da pintura da Igreja de Nª Sª dos Remédios assim do teto, quadros e azulejos, na melhor perfeição da arte»
«Ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil setecentos e sessenta e três anos, sendo aos quinze dias do mês de Maio do dito ano, nesta vila de Castro Verde e Paços do Concelho dela (...) se mandou segunda vez, depois de se ser notório e se fazerem várias diligências e averiguações sobre a perfeição dos arquitetos e pintores dos mais peritos da Província, pôr em praça pública com o último lance de setecentos mil reis dados pelos sobreditos e por concorrerem neles os requisitos acima, a qual obra andou em pregão pelo porteiro deste Juízo Domingos Rodrigues que deu de sua fé não tinha outro lanço algum mais do que os dos ditos mestres Luís António Pereira e Diogo Magina à vista do que mandou o dito juiz e mais oficiais da Câmara ao dito porteiro aprontasse e arrematasse o que fez, dando pregão na praça pública em altas e inteligíveis vozes em quem lhe dava menos de setecentos mil reis pela obra da pintura da Igreja de Nª Sª dos Remédios, tanto a do teto como a dos quadros e azulejos com todas as cláusulas, circunstâncias e requisitos do risco e apontamentos que na Câmara se lhe ficaria aprontando e arrematando, dando-lhe uma e duas e três e outra mais pequenina, metendo um ramo na mão do arrematante Diogo Magina em sinal da sua arrematação, sendo-lhe relidos os apontamentos seguintes: - o teto será pintado em prepeltina de arquitetura na forma do risco e pintado a óleo fingindo mármore e castragem que guarnece a banqueta e janelas imitando bronze, tudo na melhor forma da arte = os quadros do corpo da igreja hão de ser dez, cinco de cada lado, que vem a ser: oito das bandas e dois sobre o pórtico, cada um ao menos de oito palmos em quadro, além das molduras, as quais hão de ser de um palmo de largo ou daquela largura que pedir a obra com um filete e um redondo e uma meia cana pintada de carampito a ouro da ....(?) com oito ramos de ouro cada um que vem a ser as cantoneiras e nos meios e a pintura deles constará da batalha e aparição de Cristo Senhor Nosso a El-Rei D. Afonso, reguladas pela história da mesma batalha mencionada em outro papel dos apontamentos feitos por Luís António Pereira e apresentado pelo letrado Doutor Ouvidor e Provedor desta Comarca e todos de tintas finas das melhores assentadas em pano na melhor perfeição imitando uma imagem de São Sebastião que apresentou o mestre pintor Diogo Magina para mostrar a perfeição da sua arte = na parede sobre a janela da porta principal se pintará na mesma parede um quadro de doze palmos de alto e vinte de largo com moldura de azulejo para correspondência do que está sobre o arco da capela e neste quadro em pintura se verá um templo visto por dentro em prepeltina e todo de pilastras, ressaltos e colunas e dentro Nª Senhora recebendo a embaixada do anjo. Os seis painéis que já se acham na capela-mor serão borrados e pintados de novo com os mesmos passos e imagens de Nossa Senhora na melhor perfeição que puder ser e com tintas finas para se desvanecer o grande defeito com que se acham. No meio do teto da abóbada da Igreja se pintará, na perfeição possível, uma imagem de Nossa Senhora da Assunção com a mesma disposição que requer a perspetiva do mesmo teto (...)».
Os zeladores do templo tiveram o cuidado de não entregarem a feitura dos quadros a qualquer habilidoso. O arrematante teve de apresentar provas da sua arte. Por isso se lança, no termo de arrematação, que tudo seria feito «imitando uma imagem de São Sebastião que apresentou o mestre pintor Diogo Magina para mostrar a perfeição da sua arte».
Cercando o título da arrematação encontra-se escrita, a tinta diferente, a seguinte declaração:
«Está finda esta arrematação e o último contrato e por estar feita na forma de tudo ajustado dão ao mestre Pintor Diogo Magina por desobrigado de toda a obra de Nossa Senhora dos Remédios por estar feita na forma do ajuste de que para constar mandaram os oficiais da Câmara fazer esta declaração que assinaram sendo aos 18 de junho de 67 e eu Bazar dos Reis Mendes escrevi».
No Boletim Informativo «Castro Castrorum» nº 5, acima referido, dou ainda conhecimento de um outro contrato com o mesmo pintor, lavrado em 30 de Maio de 1764, intitulado assim: «Contrato e ajuste que com a aprovação do Dr. Provedor fizeram os oficiais da Câmara com o Mestre Pintor Diogo Magina».
Não sei, pois, por que razão Alves da Costa se ficou pendurado em dúvidas acerca da autoria dos quadros da Igreja dos Remédios. «Castra Castrorum», fez eco do assunto. Os manuscritos donde se transcreveram os contratos de arrematação nele publicados existem nos arquivos da matriz da vila. Há razões que a razão não entende. (Cf. «Campaniço» nº 40 de Janeiro/Fevereiro de 1998)
«Termo de contrato e ajuste que com aprovação do Doutor Provedor fizeram os oficiais da Câmara com o Mestre e Pintor Diogo Magina» inserto no «Livro das Arrematações da Igreja da Nossa Senhora dos Remédios de 1747-1837», fls. 32v-34v
Ano do nascimento de Nossos Senhor Jesus Cristo de mil setecentos e sessenta e quatro, sendo aos trinta dias do mês de maio nesta vila de Castro Verde e aposentadorias do Doutor José Xavier Machado Monteiro, Ouvidor e provedor em esta Comarca, sendo ali presente com o Juiz ordinário, o Doutor João Guerreiro de Santiago e os vereadores e procurador do concelho abaixo assinados, ali por eles foi dito terem ajustado e arrematado por um auto de arrematação atrás neste livro escrito, com o mestre pintor Diogo Magina, que também presente estava, pela quantia de setecentos mil reis a obra da Igreja da Nossa Senhora dos Remédios que constava da arquitetura do teto e da fatura e pintura de vários quadros e azulejos nas paredes pelos apontamentos expendidos no mesmo auto em que se declarava que os dez quadros das paredes dos lados haviam de ficar separados da cimalha e entre esta e os lados deles guarnecidas as mesmas paredes de azulejos, mas porque, por conselho de homens inteligentes e muito zelosos do culto de Deus estavam certificados de que a obra ficaria muito mais perfeita sendo postos os quadros em talha de madeira por toda a roda do corpo da Igreja, sem ficar entre eles azulejo algum e só deles para baixo até ao pavimento, tudo pelo estilo e forma como estava a capela-mor. E porque outrossim já o dito Mestre tinha completa a arquitetura do teto e pintado na capela-mor alguns quadros, tudo com tal admiração e perfeição que não só indicava ser um dos melhores artífices, mas que finda a obra por aquele estilo ficaria aquele templo por dentro não só o melhor desta Comarca, mas dos melhores da Província, assentaram e determinaram se continuasse pelo modo acima referido, ficando o dito Mestre, além das obrigações do primeiro contrato mais com as seguintes: de que além de dez quadros do primeiro contrato havia- de fazer dois mais, cada um sobre o altar colateral.
Que aqueles dez haviam de ser maiores de que a medida dos do primeiro contrato, desde a cimalha até à verga do púlpito e da largura que pudesse o vão da parede. Que todos eles deviam levar duas cantoneiras feitas pelo modo e forma dos quadros da capela-mor os quais o mesmo Mestre seria obrigado a dourar e também os filetes dos mesmos quadros e a pintar de pedra a lápis lazúli as molduras e não de preto como se declarava no primeiro contrato, porém que a madeira e escultura das ditas cantoneiras não serão da sua obrigação, mas sim por conta dos oficiais da Câmara e somente seria da sua obrigação na forma do primeiro contrato a madeira e fatura das molduras.
Que as tarjes que se haviam de fazer entre os quadros e lado deles e os frisos e filetes à roda, também enquanto à madeira e à escultura não seria da sua obrigação, mas sim por conta deles oficiais da Câmara, nem o douramento e pintura daqueles e destes que de novo se ajuntaria depois de fabricados de madeira.
Que seria mais obrigado a pintar em novo pano comprado à sua custa os quatro quadros que estão de um e de outro lado do arco cruzeiro.
Que mais seria obrigado a pintar os frisos e filetes de toda a cimalha a roda e tarjes de estuque que de novo se lhe acrescentam de prata dourada com tal segurança que ficasse segura e perpetuada.
E que todos estes acrescentamentos se obrigava pela quantia de cento e cinquenta mil reis em que com ele convieram e se ajustaram os ditos oficiais da Câmara com aprovação dele Doutor Provedor em cuja quantia entrariam os acrescentos que já por ordem de todos tinha feito uma imagem no teto, digo, feito na imagem do teto e na mudança da cor das colunas da arquitetura do mesmo e o custo do pano da capela-mor que lhe deviam por não entrar no primeiro contrato, pelo que também se não haveria respeito a diminuição do azulejo com que ficava que era pouco e toda a dita quantia além de setecentos mil reis do primeiro contrato.
E pela referida forma estariam ajustados neste contrato que reciprocamente se obrigavam a cumprir e guardar como nele se contem ficando em tudo o mais em seu vigor o primeiro no que aqui não vai reformado e declarado».
Creio não ser despicienda a publicação deste segundo contrato feito com Diogo Magina, sobre os «Quadros da Igreja dos Remédios». Dele estaco as referências feitas à «perfeição e admiração» da sua obra que «não só indicava ser um dos melhores artífices, mas que, finda a obra por aquele estilo, ficaria aquele templo por dentro não só o melhor desta Comarca, mas dos melhores da Província».
CAPÍTULO III
POLÉMICA POSTERIOR
a) CASTRO VERDE - QUADROS DA IGREJA DOS REMÉDIOS
Por gentileza, a Câmara Municipal de Castro Verde fez-me chegar, muito recentemente, as edições que tem patrocinado. Li, com agrado, «O Termo de Castro Verde», vol. I, da autoria do Dr. João José Alves da Costa.
Não foi sem alguma surpresa que constatei as suas dúvidas relativas à identidade do mestre pintor que terá executado os quadros da Igreja dos Remédios. Acerca do assunto ele transcreve «o teor do termo» que eu próprio lhe forneci, relativo ao pagamento que a Confraria de S. Miguel fez ao pintor Diogo Magina, para depois acrescentar, baseando-se numa monografia do concelho de Loulé, que «há quem atribua a feitura dos quadros ao pintor Diogo de Sousa» (pp. 74).
Ora acontece que no «Liv. Das Arrematações da Igreja de Nª Sª dos Remédios, 1747-1830» (fls. 24v-27r), existente nos arquivos da Igreja Matriz, encontra-se o contrato de arrematação da respetiva obra, ao pintor Diogo Magina, contrato esse que publiquei integralmente no Boletim Informativo «Castra Castrorum» (nº 5, de Novembro de 1980), boletim em que Alves da Costa colaborava. Por que razão terá ele omitido essa informação uma vez que tal arrematação, cotejada com o termo de pagamento feito pela Confraria ao mestre pintor, não deixa dúvidas sobre a autoria dos quadros?
Para que conste em letra de forma, em papel mais nobre do que o de um Boletim policopiado, aqui se repõe no «Campaniço», o essencial desse contrato, em ortografia atualizada:
«Arrematação da obra da pintura da Igreja de Nª Sª dos Remédios assim do tecto, quadros e azulejos, na melhor perfeição da arte»
«Ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil setecentos e sessenta e três anos, sendo aos quinze dias do mês de Maio do dito ano, nesta vila de Castro Verde e Paços do Concelho dela (...) se mandou segunda vez, depois de se ser notório e se fazerem várias diligências e averiguações sobre a perfeição dos arquitetos e pintores dos mais peritos da Província, pôr em praça pública com o último lance de setecentos mil reis dados pelos sobreditos e por concorrerem neles os requisitos acima, a qual obra andou em pregão pelo porteiro deste Juízo Domingos Rodrigues que deu de sua fé não tinha outro lanço algum mais do que os dos ditos mestres Luís António Pereira e Diogo Magina à vista do que mandou o dito juiz e mais oficiais da Câmara ao dito porteiro aprontasse e arrematasse o que fez, dando pregão na praça pública em altas e inteligíveis vozes em quem lhe dava menos de setecentos mil reis pela obra da pintura da Igreja de Nª Sª dos Remédios, tanto a do teto como a dos quadros e azulejos com todas as cláusulas, circunstâncias e requisitos do risco e apontamentos que na Câmara se lhe ficaria aprontando e arrematando, dando-lhe uma e duas e três e outra mais pequenina, metendo um ramo na mão do arrematante Diogo Magina em sinal da sua arrematação, sendo-lhe relidos os apontamentos seguintes: - o tecto será pintado em prepeltina de arquitetura na forma do risco e pintado a óleo fingindo mármore e castragem que guarnece a banqueta e janelas imitando bronze, tudo na melhor forma da arte = os quadros do corpo da igreja hão de ser dez, cinco de cada lado, que vem a ser: oito das bandas e dois sobre o pórtico, cada um ao menos de oito palmos em quadro, além das molduras, as quais hão de ser de um palmo de largo ou daquela largura que pedir a obra com um filete e um redondo e uma meia cana pintada de carampito a ouro da ....(?) com oito ramos de ouro cada um que vem a ser as cantoneiras e nos meios e a pintura deles constará da batalha e aparição de Cristo Senhor Nosso a El-Rei D. Afonso, reguladas pela história da mesma batalha mencionada em outro papel dos apontamentos feitos por Luís António Pereira e apresentado pelo letrado Doutor Ouvidor e Provedor desta Comarca e todos de tintas finas das melhores assentadas em pano na melhor perfeição imitando uma imagem de São Sebastião que apresentou o mestre pintor Diogo Magina para mostrar a perfeição da sua arte = na parede sobre a janela da porta principal se pintará na mesma parede um quadro de doze palmos de alto e vinte de largo com moldura de azulejo para correspondência do que está sobre o arco da capela e neste quadro em pintura se verá um templo visto por dentro em prepeltina e todo de pilastras, ressaltos e colunas e dentro Nª Senhora recebendo a embaixada do anjo. Os seis painéis que já se acham na capela-mor serão borrados e pintados de novo com os mesmos passos e imagens de Nossa Senhora na melhor perfeição que puder ser e com tintas finas para se desvanecer o grande defeito com que se acham. No meio do tecto da abóbada da Igreja se pintará, na perfeição possível, uma imagem de Nossa Senhora da Assunção com a mesma disposição que requer a perspetiva do mesmo teto (...)”
Os zeladores do templo tiveram o cuidado de não entregarem a feitura dos quadros a qualquer habilidoso. O arrematante teve de apresentar provas da sua arte. Por isso se lança, no termo de arrematação, que tudo seria feito «imitando uma imagem de São Sebastião que apresentou o mestre pintor Diogo Magina para mostrar a perfeição da sua arte».
Cercando o título da arrematação encontra-se escrita, a tinta diferente, a seguinte declaração:
«Está finda esta arrematação e o último contrato e por estar feita na forma de tudo ajustado dão ao mestre Pintor Diogo Magina por desobrigado de toda a obra de Nossa Senhora dos Remédios por estar feita na forma do ajuste de que para constar mandaram os oficiais da Câmara fazer esta declaração que assinaram sendo aos 18 de junho de 67 e eu Bazar dos Reis Mendes escrevi».
No Boletim Informativo «Castro Castrorum» nº 5, acima referido, dou ainda conhecimento de um outro contrato com o mesmo pintor, lavrado em 30 de Maio de 1764, intitulado assim: «Contrato e ajuste que com a aprovação do Dr. Provedor fizeram os oficiais da Câmara com o Mestre Pintor Diogo Magina». Não sei, pois, por que razão Alves da Costa se ficou pendurado em dúvidas acerca da autoria dos quadros da Igreja dos Remédios. «Castra Castrorum», fez eco do assunto. Os manuscritos donde se transcreveram os contratos de arrematação nele publicados existem nos arquivos da matriz da vila. Há razões que a razão não entende. (Cf. «Campaniço» nº 40 de Janeiro/Fevereiro de 1998)
b) CASTRO VERDE - QUADROS DA IGREJA DOS REMÉDIOS
Ora, foi face a essa omissão e a essa estranha atitude de investigador que fiz chegar ao «Campaniço» (nº 40 Janeiro/Fevereiro de 1998) a minha surpresa, repondo ali novamente o texto do contrato, terminando as minhas considerações dizendo «haver razões que a razão não entende». E por aí me fiquei.
Acabo agora de receber o «Campaniço» (nº 41 Janeiro/Fevereiro 99) e não tendo sido meu propósito alimentar qualquer polémica sobre o assunto, eis que leio na primeira página: «POLÉMICA – Quadros da Igreja dos Remédios, quem foi o autor? Alves da Costa rebate Abílio de Carvalho».
Alves da Costa rebate quem? Pensei que Alves da Costa viria carrear novas provas, novos documentos e argumentos ou, então, dizer que por qualquer razão lhe escapou o «contrato de arrematação» que não era obrigado a ler tudo o que se publicava no «Castra Castrorum» em que ele e eu colaborávamos e que, face ao seu conhecimento tardio embora, emendava a mão. Mas depois disso o que vejo eu? Isto:
1 – Escalpelizando agora o documento e sem dizer porque o omitiu no seu livro, ele continua a «admitir a hipótese de ter sido o pintor Diogo de Sousa (...) o autor da obra em discussão».
2 – Acrescenta: «quanto mais releio o contrato de arrematação entre os oficiais da Câmara de Castro Verde e Diogo Magina, mais me convenço da possível confirmação da minha hipótese...»
3 - Formula hipóteses (muitas) a partir da leitura do «contrato de arrematação» e, com a gentileza e fidalguia de trato que o caracteriza, aconselha-me a «não aceitar dogmaticamente o que o documento parece documentar, mas indagar o que, não estando explícito, está implicitamente nas entrelinhas».
Portanto, a Sul, nada de novo. Nada que possa alimentar a polémica anunciada na 1ª página do «Campaniço». Por isso as minhas considerações sobre os quadros que retratam alguns passos da Batalha de Ourique, terminam aqui. É que eu tenho outras batalhas a travar por estas bandas de Castro Daire. E em Castro Daire, como em Castro Verde, já todos perceberam, desde o simples leitor, estudioso ou professor, se calhar muitos dos meus ex-alunos e ex-alunas de que a História se faz com documentos. E quando o teor dos mesmos tem a consistência daquele que eu reputo de fidedigno – o contrato de arrematação das pinturas - não há dúvidas, hipóteses e convicções que sustentem o contrário do que nele consta.
E, já agora, porque Alves da Costa me aconselha a «não aceitar dogmaticamente o que o documento objectivamente parece documentar, mas indagar o que, não estando explícito, está implicitamente nas entrelinhas», sugerindo que eu trato com ligeireza o teor dos documentos e deles tiro conclusões apressadas, deixo aqui, ressalvando alguma dose de imodéstia, mas a tal sou obrigado, o modo como o Professor Doutor Carvalho Homem da Universidade de Coimbra (que não conheço pessoalmente) depois de analisar os trabalhos que publiquei, vê o meu relacionamento com os documentos e com a História:
«(...) o senhor Dr. Abílio pereira de Carvalho revela-nos uma tão grande maturidade heurística e hermenêutica, um tão acendrado amor à sua Região, um tão feliz espírito de síntese histórica, uma postura tão digna de investigador sério, que apenas deverei instar a gente moça de Castro Daire a aproveitar o melhor possível os seus préstimos e a sua destreza científica». (in «Gazeta da Beira» (nº 178 de 21 de Julho de 1992).
Pois é. Tal como se espreme uma esponja até ela deitar a última gota, também eu faço mil perguntas aos documentos. Formulo mil hipóteses, cotejo informações conexas e só depois adianto as minhas conclusões. Foi o que fiz relativamente às pinturas em apreço.
A dúvida metódica faz sucumbir a dúvida pirrónica.
Mas já que o meu amigo Alves da Costa me aconselhou a ler com mais cuidado os documentos, deixe-me dar-lhe a prova de que faço isso mesmo, de que nem vírgulas e pontos finais escapam à minha observação quando se trata de cotejar informações, de dar sentido às coisas, de, enfim, reconstituir a História:
Já reparou que substituindo o ponto final que se segue a Magina no texto que transcreveu da monografia por um «que relativo», o sentido da frase era totalmente alterado e ficava de acordo com o teor do «contrato de arrematação»? Ora veja: «Diogo de Sousa, natural de Loulé, pintor que foi mestre de Diogo Magina [que] fez as pinturas da Igreja de Castro Verde».
Sendo assim, por que razão hei de eu aceitar dogmaticamente o texto inserto numa monografia (texto já impresso), vago, impreciso e, se calhar, sem apoio documental, sem contrapor a hipótese verosímil de ele próprio estar mal redigido e/ou mal pontuado?
Pense nisso, caro amigo. Não aceite dogmaticamente o teor desse excerto e procure junto do autor, se lhe for possível, a que documento original teve acesso, qual é a fundamentação da sua asserção ou se, de facto, há ali um ponto final a mais e um pronome relativo a menos. E olhe que, até prova documental em contrário que invalide ou torne apócrifo o «contrato de arrematação» das pinturas (contrato que o meu amigo omitiu no seu livro e este é que é, para mim, o pomo da questão) feito entre os oficiais da Câmara e Diogo Magina, mantenho que foi este o autor dos quadros pendurados na Igreja dos Remédios.
Sem qualquer dogma. Pois sou, visceralmente, contra todo o tipo de dogmas. (Cf. «Campaniço» nº 42 de Março/Abril de 1999)
NOTA: O Dr. Alves da Costa, no número do «Campaniço» onde exponho as razões supra, insiste em manter a sua tese, sublinhando «o papel de apontamentos feitos por Luís António Pereira e apresentados ao letrado Doutor Ouvidor», como se eles se reportassem a um «risco» prévio dos quadros feito por Diogo de Sousa. Na minha ótica esse «papel de apontamentos» mais não é do que o registo dos motivos históricos que deveriam figurar na obra que Diogo Magina arrematou.