SAGA DE UM RELÓGIO
Um dia, testada que foi leveza do pêndulo naquele seu repetido vai-vem, pêndulo em forma de âncora de navio rematada em pião, qual arte dançante de gueixa, ele, originário do Japão, com essa sua arte, leveza e gesto, sem olhar ao longe e ao perto, a sua terra natal deixa, qual emigrante a fazer pela vida.
Abandonou o Pacífico, atravessou o Indico e peça de relojoaria que era, entrou no mercado. Viajado e desembarcado em Moçambique, em Lourenço Marques foi comprado por um professor reformado (meu cunhado) que, depois de ter ensinado anos por escolas de província e de cidade, passou outros tantos na selva, de carabina na mão, de acampamento em acampamento, atrás de elefantes, javalis, búfalos e outra fauna semelhante, felinos, carnívoros ou morca de relva.
Dizia-se “caçador de caça grossa” que, sendo perigosa, bem podia, num instante, tirar-lhe a vida. Pois. E a provar o que dizia, um mais um, são dois, lembrando as matas, de lés a lés, exibia, como troféu de aventura e coragem, a camisa ensanguentada, borrifada pela tromba de um elefante que, depois de alvejado, morreu a seus pés. Coisas e loisas. Façanhas e patranhas que só caçadores, pescadores e outros mentirosos que tais podem dizer. Eu que o diga. Só coisas vividas e contadas, acredite quem quiser.
Velho colono, conheceu Moçambique inteiro, o território da costa e a ilha com o mesmo nome, porto obrigatório posto no caminho da India. Um dia conheceu a minha irmã Elisa, fez dela sua mulher, união legal e lisa, e ambos puseram no mundo uma filha, a minha sobrinha, Elda Maria, que bebé peguei no colo. A alegria e felicidade do casal, um consolo no lar. E para comemorar, assim como prenda que fala do tempo do nascimento, vinha mesmo a calhar um relógio de sala, de parede, de bater horas, mecanismo nipónico, moderno que dignificasse o acontecimento. Uma máquina do tempo. Novidade das novidades.
Pois. Não sabeis, mas eu vos digo. Foi em 1966. E, feito o negócio, colocadas pilhas novas, ele deixou o ócio da relojoaria vendedora onde estava descansado e mudou de residência. Pendurado na parede, virado para o meio da sala, logo mostrou a excelência da sua marca. Um Seiko Sonola Transístor, com calendário, ponteiros e numeração árabe, pêndulo invulgar, feitio de âncora de navio, porta com vidro, funcionamento a pilhas. Mecanismo hibrido, meio mecânico, meio eletrónico, com transístor e tudo. Não era mudo, tic… tac…batia horas, dão…dão…última novidade da modalidade. Hoje uma raridade na relojoaria de então.
Pois. Um objeto de gosto. E no seu posto não lhe escapava a fala de coisas e loisas sobre o quotidiano, político e doméstico, próximo ou distante, hora após hora, dia após dia, ano após ano. E não era engano, ali, pendurado na parede, a bater horas, como que em rede de comunicação codificada, chegavam-lhe à alma, a cada roda dentada que juntas faziam girar os ponteiros, os primeiros murmúrios dos nativos colonizados, murmúrios não audíveis pelos seus donos, os velhos colonos. Coisas e loisas ditas, feias e bonitas, sobre terras e gentes, naturais e forasteiras. Conquistadores e conquistados.
Tudo. Ponteiros a rodar, sempre a andar, horas a tocar, dois martelos a baterem simultaneamente em cada bordão “dão…dão…dão…” imitava um sino de igreja em dia de romaria e de procissão. Ouvia tudo sem perguntar nada. E não imaginava sequer que tais murmúrios vindos dos subúrbios caniçados virassem escarcéu de guerra e, por força dos naturais da terra, ele fosse apeado daquela parede para ser encaixotado e nova viagem fazer.
Já tinha dado a volta ao mundo sem do mesmo sítio sair. Mas prestes a partir de novo, silenciaria em si a cegarrega das cigarras empoleiradas noite e dia nas acácias que davam sombra às ruas e avenidas da cidade. Levaria consigo a imagem típica da mamana, canasta à cabeça, o mufana às costas enrolado na colorida capulana. Ele deixaria o Índico, contornaria o Cabo das Tormentas e, ao invés, pela vez primeira, retomaria a rota do jesuita Sebastião Vieira que, em tempos que lá vão, saído de Portugal, morrera no Japão.
Aportou em Lisboa, ignorando, em absoluto, para onde ia a seguir. Desembarcado, pilhas novas, outra vez pendurado, uma joia do Ultramar, creio que mais a chorar do que a rir, ficou-se por Santa Iria de Azóia, na companhia do casal retornado, a minha irmã, o meu cunhado e a filhota Elda Maria que vai crescendo e estudando até se formar em médica. E o Seiko tudo olhando e vendo. E o Seiko tudo escutando. Mas não tinha acabado o seu fadário. Do Japão originário, lá naquele país do sol nascente onde morreu o Jesuíta a missionar aquela gente, por sorte ou por desaire, condenado estava a viajar até Castro Daire, terra natal do missionário.
Foi morar para um apartamento na rua de Santo António, onde muitas horas bateu sem ser ouvido, nem por Deus, nem pelo Demónio. Parou. Cansou de contar o tempo para ninguém. O pêndulo deixou o vaivém rotineiro. E parado, um dia, certa manhã, oferta da minha irmã, veio parar à minha mão, com o estatuto de velharia.
Podia lá ser? Um mono, uma relíquia originária do Japão, do país do quimono, no outro lado do mundo adquirida, tinha de viver, tinha de ter vida, ressuscitar, rodar, marcar horas, pois para isso nascera. E eu, sem ser relojoeiro, nem milagreiro pareceu-me ouvi-lo dizer: estou inteiro, não me queixo, ponham-me óleo em cada eixo, pilhas novas, e pronto fico para fazer ousio, fazer companhia, dar um toque de vida a quem vida tiver para me ouvir.
Rapidamente lhe fiz a vontade. E, de noite, sozinho, quando ele, dois martelos a bater simultaneamente em cada bordão “dão… dão… dão…, nesta idade de pouco sono em que, acordado, o pensamento vagabundo se passeia pelo mundo, pelos caminhos andados, amores perdidos, amores achados, a lavrar livremente o campo dos afetos e relações humanas, diluindo tempos e espaços, sem interruptor nem chave de ciência certa a barrar-lhe as estroinices da mocidade, umas a pesarem na consciência e outras, eivadas de clemência, a amenizar a dor dos trambolhões do crescimento, acordado, dizia eu, penso para comigo: bem posso ir embora, pois aquela relíquia a bater horas assim, há mais de meio século, tenha pilhas carregadas e vai ser, depois de mim, a última voz, uma maravilha, a ouvir-se entre as quatro paredes que ora habito.
Ele, o Seiko Sonola Transístor, de 1966, como já sabeis, a dizer coisas e loisas da vida a quem as coisas ouve como se fossem gente. Coisas como se fossem gente? Homessa! Atitude insana! Pois seja. Mas aquele “dão…dão…” sonoridade de “não…não…” de parceria com outro irmão de campainha “dim…dim…” sonoridade de “sim…sim…” “made in W. Germany”, espaldar da madeira com visível caule e folhas de videira lavrados por mim com formão, goiva e maceta, são os técnicos, históricos e poéticos polos “positivo” e o “negativo” de “atração” e de “repulsa”, com ou sem sangue, da lei que rege a gravitação, a ordenaçao e o movimento do COSMOS desde o Big Bang.
Atitude insana? Homessa! Do transístor ao circuito integrado foi um pequeno passo dado. Dos circuitos integrados (existentes em todos os equipamentos que dão corpo à parafernália das novas tecnologias) à INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL será um passo de gigante. Tudo num só instante na escala universal.
Atitude insana falar com as coisas, como se fossem gente? Homessa! Onde está a admiração, se as coisas mais não são do que extensão da inteligência humana? E nessa condição eu bem sinto e entendo o “tic…tac…”, o “tic…tic…, o “dão…dão…” e o “dim…dim…” o “não…não…,”, o “sim…sim…” que, no casarão que habito, espaço que já foi de algazarra e de alarido, rompem o silêncio das noites mal dormidas, por força da idade. De verdade, são os únicos sons vivos que chegam até mim com sopros de humanidade. Sem eles eu estaria vivo metido numa tumba. Por isso bem os entendo e grato lhes fico. Falo sozinho? Eles não são gente? Enfim, não me importa o que digam e pensem de mim, deste lenhador da floresta das letras que, de podão em punho, neste meu estilo (o «estilo é o homem» aprendi isso com Ramalho Ortigão, ainda que posteriormente soubesse que não era exclusiva dele a lapidar expressão) decidido estou a falar e a escrever somente para quem sabe ouvir e ler. Para quem é inteligente.
Abílio/novembro/2022.