PRIMEIRA PARTE
Quando me criei, em Cujó, não havia energia elétrica. Mal caía a noite, fosse em trabalho ou fosse para divertimento num qualquer serão, todos nós, os habitantes, novos e velhos, rompíamos os tamancos a dar pontapés no escuro. Não sei se devo a essa realidade o facto de, ainda hoje, ter horror ao ESCURO. Só me sinto bem em lugares bem iluminados e, de certo modo, acompanhado de pessoas que resplandeçam alguma luz.
Havia um sítio dentro dos limites da freguesia de Cujó muito dado a ANINCÚS (pirilampos, em designação mais académica, pois nem todos os dicionários registam esta entrada) e todas as vezes que lá passava, aquilo parecia-me uma noite de ESTRELAS CADENTES. Era depois de se passar a Touça, (atrás do Santo António) mais propriamente ao fundo do RISCADO, junto aquele regato que desagua no Rio Mau, um pouco a jusante do sítio do pisão e de dois moinhos que atualmente já não existem. Eu passava lá frequentemente de dia, a caminho dos lameiros, com as vacas e algumas vezes de noite, quando ia ao moinho ver o estado da moenda.
E no meio daquele pirilampar noturno eu matutava na vida daqueles bichinhos, a acender e a apagar, a piscar-piscar tal qual algumas estrelas que, na noite escura, me faziam negaças, como que a jogar comigo às escondidas. E, ao mesmo tempo que me interrogava sobre o "mistério" de que eram dotados (ALUMIAR A NOITE) pensava, cá para mim, que deviam ser muito infelizes, naquele seu inconstante SER e ESTAR. O nome não ajudava muito a resolver o meu espanto e as minhas interpelações. Então "anincú" era lá nome que se pusesse a um bichinho capaz de rasgar o lençol de breu que nos envolvia, ainda que só por momentos? Como não fazia ideia nenhuma da forma e da cor de tão misterioso inseto, uma noite, vendo que um deles pousou ao meu alcance de mão, acendi um fósforo e fui observá-lo de perto.
Constatei, para espanto meu, que se tratava de uma espécie de mosca e que a luminosidade fluorescente residia na parte traseira do abdómen, daí resultando que, ao fechar as asas, qual interruptor elétrico, apagava as luzes, se calhar uma forma hábil de escapar aos predadores.?Pequeno ainda, sem leituras esclarecedoras, concluí que, naquele pequeno gesto de abrir e fechar as asas, havia alguma inteligência ou um claro instinto de defesa. A partir dessa conclusão infantil, sem explicação de cientistas e/ou especialistas na matéria, passei a admirar os ANINCÚS. Atitude diferente tenho para com certas pessoas que, ignorando, seguramente, a existência e o comportamento do SER e ESTAR desses insetos, procuram imitá-los e, nestes começos do século XXI, tempo de luz elétrica e de conhecimentos, abrem as asas, batem as asas, fecham as asas, fazem um estardalhaço dos diabos, e procuram brilhar, por instantes, no ESCURO que nos envolve. Mas há quem se encante com tais fogachos e faça eco do seu deslumbramento no Facebook. É por isso que o FACEBOOK É UMA LIÇÃO.
Abílio/julho/2015
NOTA: postado no Facebook em 12-07-2015
SEGUNDA PARTE
Ficou, assim, claro que os anincús, os pirilampos, os vaga-lumes faziam parte das minhas memórias de infância e as razões por que, nesta idade adulta, mostrei o meu encanto e a minha admiração por esses insetos luminosos.
Os anos foram passando e, dadas as mudanças operadas no mundo, nomeadamente nos ecossistemas, longe estava eu de pensar que aos 83 anos de idade, neste ano de 2022, exatamente no mês de julho, eu viria a encontrar-me com os meus “amigos de juventude” e, em verdade vos digo que não perderam o seu encanto, nem me tolheram a IMAGINAÇÃO. Foi assim:
Nos passeios noturnos que costumo fazer entre Fareja e Farejinhas, sempre atento à estrada e suas margens, sou surpreendido com a luminicênscia isolada de um PIRILAMPO. Parei, puxei do telemóvel com câmara de fotografar e de filmar e o resultado está à vista.
Mas atenção. Não foi fácil captar a imagem fotográfica e vídeo. Não podendo satisfazer os meus propósitos de imediato, voltei nas noites seguintes (uma, duas, três e mais) e, socorrendo-me de uma lanterna, como bem se vê, consegui os meus objetivos que ali me levavam, certamente para estranheza dos carros que passavam, e, conhecendo-me, se interrogariam o que estaria eu a fazer aquelas horas, sabe-se lá, pensando que eu, desta idade, andaria aos “gambuzinos”.
Aproveito, pois, para tirar-lhes as dúvidas e dar-lhes a conhecer o objeto do meu ESTUDO e reflexão.
TERCEIRA PARTE
PIRILAMPO
Neste meu cirandar
Noturno
Pelos arredores da aldeia
Num repente
Vejo à minha frente
Aquele pingo de tinta
Verde reluzente.
Face à descoberta
Estanco.
Miro, remiro, volteio
E mesmo ali
Dou por findo o passeio
Não prossigo
Adiante
Pois vi ali uma porta aberta
Ao meu passado distante.
Aquela cor reluzente
Aquele borrão de tinta
Que mexe, dança ou brinca
Está a bulir comigo.
Caído
Na tela escura
Da noite, deixado
Lá por pintor
Distraído
Ou por ele atirado
Propositadamente
Num desafio provocador
A poetas e escritores
Que nas letras
Tem a sua paleta
De cores…
Aquele borrão de tinta
Dizia,
Que dança, mexe ou brinca
Comigo
Lembra-me algo que já vi
Na minha infância
Distante.
E, num ai,
Com 83 anos de idade
Entro na nave
Do verbo e do verso
Num instante,
Nesta idade avançada,
Enrolo o tempo que lá vai
E percorro a distância
Que me separa do meu universo
Infantil
Da idade que tinha e que tenho.
Um encanto!
Rodopiando
Nesse imaginário disco voador
Vou e venho.
E rasgando
o espaço sideral das emoções
E do pensamento
Divagando
Entre as estrelas mil
Que povoam o firmamento
Vejo mais uma, radiante
Em dançante movimento.
É isso.
Aquele borrão de tinta
Ali caído
Na tela escura
Da noite, deixado
Por pintor
Distraído
Ou atirado
Propositadamente
Para a tela da noite escura
Pelo artista provocador
Da paleta
E da pintura
Num desafio ao escritor e ao de poeta
Visto por mim
A tal lonjura
E a tal distância
É muito mais do que o pirilampo
Da minha infância
O inseto voador
Que no céu
Preencheu
O imaginário da criança que era.
E daquela idade
Pés na terra
No escuro,
Sem a nave
Do verbo e do verso
Inocente e inseguro
Navegava por todo o universo
Com medo das almas penadas
Que voando e penando
Esperavam padre-nossos e ave marias.
Abílio/julho/2022
VEJA O VÍDEO CUJO LINK SE SEGUE
https://youtu.be/e014u-p_abI