Que lição essa, vinda da “cósmica sabedoria” do meu pai, um cidadão semianalfabeto a ensinar aos filhos qual, entre milhares, era a ESTRELA DO NORTE e para, “na vida, nunca perdermos o norte”.
Saber cósmico que incluía a explicação daquela figura desenhada na Lua redonda, vista em noites de luar: “um homem com um molho de silvas às costas, posto por castigo, ali bem alto, às vistas de todo o mundo, por ter sido encontrado a roubar um molho de lenha, às escondidas, num domingo”.
Um “molho de silvas” foi a imagem para onde pinchou o meu pensamento, para onde me remeteram as minhas MEMÓRIAS polidas e despoluídas, mal pus os olhos no título do livro que me ofereceu, há dias, o meu amigo Dr. Paulo Andrade: “Polimento das memórias na sociedade em molho de vides”, capa ilustrada com um “molho de vides” e a silhueta de um busto humano a projetar-se nele.
E logo na testada a advertência ao leitor:
“Proponho/propomos que a leitura destes textos corresponda a uma meditação, a partir deste princípio: não há conhecimentos, experiências e vivências sem memória, pelo que as memórias-da-vida-das memórias, as memórias-em-vida-a-vida-em-memórias e as memórias-de-vida-a-vida-de-memórias, também testemunham esta inmensurável relação em polimento que desbasta e desgasta. Somos todos correlatos em carne e em próteses uns dos outros por habitarmos em comunhão de potências do advir e em permanentes atualizações em esperânsia (a ânsia da esperança). E, neste “outros” incluem-se a técnica e as biotecnologias, as subjetividades, as objetividades, enfim: toda a criação originante e toda a criação originada”.
Conheço o Dr. Paulo Andrade há muitos anos. Militámos ambos no Partido Socialista em Castro Daire e, solidários, tivemos a nossa intervenção cívica, política e cultural, em tempos idos. Tenho presente o seu sábio, prolixo e sumarento falar e escrever, desde jovem.
Foi o apresentador do meu livro “Castro Daire, Indústria, Técnica e Cultura” (fruto da minha licença sabática, enquanto professor na Escola Preparatória desta vila), na cerimónia de lançamento promovida pelo Executivo Municipal, editor da obra. E foi também o autor do POSFÁCIO onde discorre sobre o valor do trabalho feito e onde disse nos dois últimos parágrafos:
“Este livro levanta, de forma implícita, a questão da diferença, “know how” e “saber”, o que atualmente é de primordial importância. E já que falamos em atitudes miméticas e acomodadas, para ultrapassar a atual situação, ganha acuidade o pressuposto metodológico segundo o qual se dve pensar globalmente e agir localmente.
E para que atitudes saudáveis como esta se tornem vulgarmente seletivas é fundamental, também, que se passe do culto do poder ao poder culto”.
Decorria o ano de 1995. Deixámos de nos ver. Ele foi lecionar para fora do concelho e tivemos agora o “ENCONTRO” que deixei registado no vídeo alojado no Youtube, a propósito de uma EXPOSIÇÃO de conteúdo INÉDITO (cf. link posto no rodapé deste texto) que ele veio fazer no amplo a arejado espaço do CALVÁRIO, aquela colina sobranceira ao velho “crasto”, núcleo histórico da atual vila de Castro Daire.
Aproveitou e ofereceu-me o livro a cujo título aludi acima. Um “molho de vides”, para mim um “molho de ideias”, um “alforge de experiências e pensamentos”.
Ora, um livro que me caia nas mãos, pode não ser lido de fio a pavio, de imediato, mas jamais será recetáculo do pó que esvoaça livremente na minha biblioteca sem, primeiro, o ter folheado. E, qual pescador que atira o anzol às águas correntes do rio, nelas procura pescar algo que alimente e seja saboroso ao espírito, seja um rasgo de pensamento, uma reflexão mais profunda, uma emoção não vivida, enfim, algo de novo e inédito que enriqueça esta minha vida longa de leituras e experiências, assim fiz eu.
E, assim sendo, impelido pela gratidão a quem, desinteressadamente, há muitos anos, me deu algo de si sem regateio, botei a mão a este “molho de vides” (de “vides” ou de “vidas”?), lancei a linha a este mar revolto de ideias e de pensamentos, rodei a manivela do carreto “zás, zás, zás”, enrolado o fio, chegou-me ao cabaz de vime, algo novo que degustei devagarinho, muito devagarinho e só depois procedi à transcrição que entendi ser semente para o meu lavradio. Ciente, embora de ter deixado para trás a preocupações e abordagens que perpassam aquele molho de páginas relativas aos males que afetam o mundo de hoje, e seus remédios, com incursões na neurociência, psicologia, filosofia, biologia, o meio ambiente, ecologia, e tudo o mais que engrossa a corrente do tumultuoso rio no qual me atrevi a meter o anzol. Tudo remetendo para estudos sobre os quais refletiu. Tudo respaldado em autores credenciados e no imensurável saber disponível no “mare magnum” da Internet, muleta necessária e indispensável, hoje em dia, a todo o investigador e professor que serve e se serve das novas tecnologias da comunicação, saber digital casado com o saber analógico impresso em livros, revistas e jornais. Memórias e experiências volvidas em palavra corrida, naquela postura solta de quem roda na estrada da vida, livre de preceitos e preconceitos de moda.
Acrescentarei que este livro, pela biodiversidade de temas que lhe dão esqueleto, pele e músculo, me faz lembrar o Rio Paiva, toda a sua bacia hidrográfica, rios, ribeiros, corgos e natureza vicejante em volta. Uns por mim conhecidos a pé posto, outros por estudo, outros que a minha “vista” não alcança e se esgueiram dela como presa que se furta ao predador e dele se ri por sabê-lo cansado e, pela idade, incapaz de chegar ao seu esconderijo. Metáfora que utilizo em homenagem ao autor, à nossa terra e gentes dela.
E por mim falo. Em 1997, de má maré, não me calo, cogitando comigo mesmo, sem pingo de imaginação, cuspi o poema que publiquei em 2015 no meu site, assim:
A RODILHA
Sai-me a palavra enrodilhada
E enrodilhado me sai o verso
Que tão fluente era volta e meia.
Fico em tremendos cuidados
Pois palavra e verso enrolados
Enrodilhada me fica a ideia.
E face aos inglórios resultados
De mim para mim eu cogito
Que por mais esforçado que seja
No matagal das letras tão diverso
Só para a rodilha tenho veia.
E frustrado de me enrolar nisto
Palavra a palavra, verso a verso,
Enrodilhadamente confesso
Que de fazer poesia eu desisto.
Abílio/1997
Mas, quem não desistiu de refletir nestas coisas das LETRAS (prosa, poesia) e GRAMÁTICA, envolvendo consoantes e vogais, esse barro manipulado pelos oleiros/escritores/poetas na escultura que modelam dia a dia no seu ofício, foi o Dr. Paulo Andrade, - o meu amigo - que deixou matéria semiótica bastante para os guerreiros que terçam armas “pró ou contra” o atual Acordo Ortográfico. Eu transcrevo das páginas 442 e seguintes:
“Suspensos no penso logo inssisto, na insistência multipolar da biografia, o que fomos no que somos de seremos. Ortografia. No sentido do grego de “orto” (grego arthós, -é -ón, direito, em linha reta, justo, exato), no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, escrever direito em labirínticos caminhos, em ditado acessível aos desígnios de Deus. As regras, as normas gramaticais colocam o ponto final, o ponto final parágrafo, a vírgula, o ponto e vírgula, o ponto de exclamação e interrogação, as reticências, o entre parêntesis ou ente comas - sair dos parêntesis não é o mesmo que deixar cair (is) como o sair de comas é quase similar do sair de coma: passas para o “coma s.f.f.” Pelo que cada vogal, cada consoante, deve estar de acordo com o acordo ortográfico, assim como o nosso esqueleto: sermos equilibrados no dizer e no andar. Ortopedia. No andar a dizer que disse. Na alcoviteirice. Ergonomia. Por vezes, nas vezes em que o escritor ou o poeta se acolhe nas palavras elabora interessantes alcoviteirices de si sobre si a partir dos outros que, curiosamente, também são instituídos por si, ao ser interpelado ou interdesnudado nelas. Cada gender no gender bender (que não se identifica com os géneros tipo) é uma intersubjetividade que se expande em palavras que o desssubjetivam em regras e normas para ter sentido. E para as regras e normas terem e fazerem sentido, na sua reactualização pelo exercício do poder normativo em gramática, pouco compreensível e, quiçá, inteligível. Como se o sentido na gramática narrativa fosse doador de sentido, antes doa a dor em quem tem que escrever em consoantes que deixam de ser consoantes aos tempos e vogais que o deixam de ser perante quem as ordena - como numa assembleia em que os vogais são cargos, aparentemente, de menor impacto. Neste ordenar, a quem as palavras lançam desafios a fio, o ordenar consoantes e vogais devém melhor no interesse. Muito mais interessante se compararmos as novidades das intersubjetividades propostas pelos novos conhecimentos, exemplificadas com informação passada em televisão e retirada da Internet no site “http:/veja.abril.com.br/300800/p_062.html”: “nos laboratórios de uma empresa de biotecnologia canadense, cientistas daquele país conseguiram isolar o gene da aranha responsável pela síntese da proteína usada na fabricação dos fios das teias e implantá-lo no ADN da cabra. O resultado foi a criação de um animal que terá a função de fabricar teias de aranha em larga escala, por mais exótico que isso possa parecer. Com a alteração genética, a empresa de biotecnologia Nexia pretende que as cabras produzam um leite rico em proteínas de aranha que possam ser processadas e transformadas em fibras semelhantes às produzidas pelos aracnídeos, material reconhecido como e tremendamente forte e flexível”.
Portanto, na escrita podemos também ser travessos depois de no travesseiro meditarmos no travessão. Impossível o travessão nesta evolução da mistura genética. Porque o que entusiasma na escrita é o aquém e o além do som no silêncio da leitura: dar sonoridade a cada vogal e consoante, a cada palavra, a cada frase no filme, na fotografia, na pintura, na escultura, na dança, na música e no tremer químico do teu corpo. Escrita intocável no desfolhar que toca no sentimento e na imaginação de quem lê - como se desfolha um livro senão na violência do sentido do leitor que nele se elege como (e)leitor? - porque ler é uma comovente emoção de si no “como”, “quando”, “aonde” se lê guia “o que” se leu: um sentido sentido. Melhor: pressentido em cada desfolhar. Desfolhar um livro será como soprar naquelas flores de o teu pai é careca, depois do sopro a ela direcionado: algo permanece. Racionalmente. Emocionalmente. Sentimentalmente. Como no nós-em-mim o livro “Germinal” de Émile Zola. A sonoridade do silêncio do que “está” escrito, que na hermenêutica devém “é” escrito na atualização do sentido “escondido com rabo de fora”, transborda o abordar, porque excesso, sem o cesso do quem lê e do quem escreve, pelo que se atualizam as perguntas: quem lê? quem escreve? quem? eis a questão grande. O que funde o escritor e leitor está aquém e além deles e das palavras, algures no lugar em que os tempos e espaços se fundam e fundem. No contacto com tato: no soletrar, no relacionar, no fio sem fios da(as) história(s) nos sentidos do leitor e do escritor, nos sentidos latentes e patentes em tempos e espaços no que se esconde e brota em imaginação. Uma espécie de partes extra partes. A leitura patente ou latente do isso que é o texto, na sua polissemia ou univocidade, mas no tocar-se de quem lê, no tocar-se que institui o quem que passa a tocar-te. Por ti. Neste desdobramento que a abertura da leitura exige: no que sulca até ser leito na carne. A carne é a cama, o leito do que e do quem se lê. E a totalidade, digamos, cósmica tem uma leitura na carne: a gravitação universal”. (bold meu).
E, aqui chegado, eu, na sequência da “gravitação universal”, dou por finda a transcrição, aproveitando para dizer que atraído por este “molho de gravetos”, este “molho de vides”, confirmo o bem adequado título do livro, sem capítulos nem páginas em branco. Tudo escrita corrida, cadeia infindável de palavras, pegadas como cerejas numa cesta, e, eu, de caminho, envolvido na forma e na semântica da narrativa, na degustação do cozinhado, garfada após garfada, esta gostosa e salivada, aquela silabada e insabida, somente engolida, puxado que seja um graveto, outro solidário a ele vem preso. Ou vamos todos, ou não vai nenhum. Só um de nós não faz fogueira, não dá calor, mas todos juntos fazemos brasas para uma boa sardinhada saboreada, avinhada, bem assada numa roda de amigos, em família, na serra, em Vila Seca, avô, pai, filho e neto, todos perto, a roerem um bom naco de broa de milho. E de broa de milho e centeio (eu não me queixo) percebia bem a gente do meio serrano e também o algarvio António Aleixo:
Gosto de apertar a mão
Áspera dos calos que tem
Também as côdeas do pão
São ásperas e sabem bem.