PERGAMINHOS RURAIS
Já deixei nesta página a fotografia do lavatório portátil que existia na casa dos meus pais, devidamente recuperado e tratado contra os males do tempo. Pintado, recolocado o espelho que estava em falta entre as duas recurvadas orelhas cimeiras e fixado o toalheiro de través, passou a ser uma peça doméstica decorativa e, simultaneamente, recipiente para arquivo dos brinquedos mais miudos dos meus filhos, depois de lavados e desinfetados.
Esse lavatório era, seguramente, uma PEÇA rara na generalidade das povoações serranas, nos meados do século XX, daí eu a ter valorizado como documento histórico, a pontos de, em torno dela, eu, com 82 anos de idade, passar algumas horas da minha vida, recuperando-a.
Estávamos no tempo que a maioria dos camponeses ignoravam o saneamento básico, tempo em que a água chegava aos lares, levada dentro de canecos de madeira ou vasilhas de barro, tirada das fontes de chafurdo ou de alguns fontanários que começaram a emergir por estas aldeias fora. Quem se der ao trabalho de olhar para as datas que foram inscritas no seu rosto, testemunhará que muitos poucos são os que nasceram antes dos anos 30/40. O Estado Novo, glorificando Sidónio e a Revolução de 28 de maio de 1926, tinha de deixar a sua marca, em pedra, fazendo o que não fizeram 800 anos de Monarquia, nem os 16 anos de República que lhe passou a certidão de óbito.
Mas muitos desses fantanários, para poderem esguichar água das suas bicas (uma ou duas) necessário foi que as Juntas de Freguesia tivessem de pedir licença aos Executivos Municipais para poderem arrancar a torga (raíz de urgueira) nos baldios municipais, a fim de fazerem carvão e com a sua venda adqurirem o dinheiro necessário à obra. Nesse tempo as Juntas não beneficiavam das verbas anuais comtempladas no Orçamento do Estado. Eles, os atuais Presidentes das Juntas, nem sonham, nem sabem, nem querem saber.
E em casa dos meus pais, vejam só, também existia uma banheira portátil, de zinco, com um rebordo em toda a volta para proteger as mãos de quem a manipulasse. Nela, sentados e recostados no espaldar, de joelhos dobrados (tal era a sua dimensão) eu e os demais familiares, tomámos banho algumas vezes, aqueles banhos que poupavam o rio Paivó, no sítio da Galboeira, dito o “ÓCULO” (mais perto da povoação da Relva do que de Cujó) de lavar e levar o surro que, pegado à nossa pele, subsituía toda e qualquer camisa de dormir.
Dessa banheira de zinco apresento um esboço ao lado, feito a lápis, imagem repescada no fundo da minha memória. Era o Portugal da minha meninice e juventude, aquele que só deixa saudades aos desmemoriados e veem nestes utensílios domésticos apenas lixo e jamais documentos históricos, cheios de vida e de significado. A esses tais, que assim pensam, eu digo, longe de mim, CHEGA para lá!
Era assim, nos meados do século XX, por estas aldeias serranas acima, de povoamento concentrado. Mas o mesmo acontecia por esse Altentejo abaixo, naqueles montes dispersos, habitações e alpendres brancos a contrastarem com o ouro das searas, aqueles mares de pão, ondas a perder de vista, a dançarem a valsa ao sabor da aragem, a quererem, manifestamente, deixar o chão. Mas não. Sem abastecimento de água nem saneamento básico, esses benefícios da CIVILIZAÇÃO, fincadas ficavam no chão. Eu daqui não saio, eu daqui ninguém me tira.
Do Alentejo, zona de Castro Verde, chegou a Castro Daire, oriunda de um dos montes que foram pertença da família da minha mulher - Mafalda de Brito Matos Lança Carvalho - a banheira cuja foto aqui se apresenta com o mesmo valor documental.
E por ínvios caminhos que ande o historiador que omita as fontes, os documentos, os pergaminhos rurais esquecidos que relatam a história dos povos, dos pagadores de impostos, foros e arrendamentos, sabido que a história dos senhorios, de nobres, reis e príncipes está escrita ou pode escrever-se a partir dos NOBILIÁRIOS, bem preservados em arquivos, longe de garagens ou alpendres destinados a alfaias e demais ferramentas de trabalho, a saber: charruas, enxadas, forquilhas, ancinhos, ganchas, tudo o que faz calos no corpo e na alma, tudo o aue faz regar o chão com o suor do rosto para se ganhar o pão, daqui, nesta simpicidade serrana, eu, historiador nascido e criado no campo, digo a esse meu colega de ofício: «tente Ramalha ao rego», que o mesmo é dizer, a HISTÓRIA «com gente dentro» também passa por aqui.