Um bom par de quilómetros separava o ponto de partida do ponto de chegada e, por isso, não faltou tempo para uma boa dúzia de anedotas picantes e eróticas, de críticas à situação económica e política do país, à educação, à saúde, à justiça, com palavrões e tudo, sem receio de no dia seguinte vermos os nossos nomes e as nossas conversas escarrapachados nas colunas dos jornais. Sem receio se sermos escutados e anatematizados pelos puritanos que por aí existem e se fingem de santinhos, mas que, em conversa privada, são tão ou mais palavrosos que toda a gente.
Chegámos.
Ali, na vila de Sangalhos, a meio caminho entre Aveiro e Coimbra, penetrámos no imponente solar que ilustra este texto. É um solar que me escuso, por agora, a identificar. Tenha calma, leitor amigo, pois logo saberá o porquê deste retardamento.
Em torno do solar estava estacionado um número significativo de viaturas de alta gama. Os meus amigos persistiam em não me informar do objectivo da viagem, mas, face ao que eu via, tudo indicava que chegámos ao destino e ao encontro com gente de gosto, de dinheiro e de requinte. Não era o meu caso. No que a mim cabia, nem dinheiro, nem requinte, somente bom paladar.
Entrámos.
Feita a recepção que só um bom anfitrião sabe fazer, descemos umas escadinhas e, eis senão quando, demos por nós numa ampla cave, à média luz, mas suficientemente iluminada para os olhos dos mais exigentes se regalaram de espanto e surpresa: de pé, deitadas na horizontal ou meio inclinadas, cabeça baixa, em situação provocadora, brancas, louras e negras, prisioneiras, silenciosas, redondinhas ali estavam elas à espera de tempo e de gente de gosto para serem levadas.
Espraiando os olhos por todas elas, apetecia ser zangão, arrancá-las dos favos, e boca com boca, saborear-lhes a alma, esvaziá-las, cair para o lado espumando de satisfação e contentamento, indiferente às normas sociais ditadas pelas regras da moral, da etiqueta e do bom comportamento. Baco morava ali. E onde mora Baco...
Tudo estava calado. Face a tantas e tão atraentes residentes, os visitantes ficaram como que sob os feitos de uma hipnose colectiva. Todos os rituais têm os seus preliminares. Por agora contentávamo-nos a vê-las, em silêncio. Era como se em desfile de passerele elas quisessem despertar-nos, acicatar-nos os sentidos, para só depois de deixarem saborear por inteirinho, em absoluto, noutro sítio.
E isso sucedeu, de facto. Subimos ao primeiro piso. Aí sim, com todos os argumentos para pessoas de bom gosto as usufruírem de imediato, ou as levarem para o domicílio a fim de, em recato, melhor as apreciarem, ali estavam elas, brancas, louras e morenas, desta(m)padas, espírito aberto, todas prontas a entregarem-se a todos, prontas a darem a conhecer o seu corpo, macio, seco e escorregadio, o seu volume, o seu odor, aromas vivos, ácidos, adocicados, todas os elementos que possuíam, todos os caracteres que distinguem os vinhos produzidos pelas CAVES BORLIDO: vinhos, espumantes, aguardentes e licores.
Pois é, caro leitor! Onde pensava você que nós estávamos? E onde pensava você que eu fui buscar inspiração para escrever este texto? Lamento desiludi-lo, mas se pensava outra coisa, fique certo que foi ali, nas CAVES BORLIDO, não sei sob que vapores e efeitos, que ele foi congeminado. Bem congeminado? Diga da sua justiça, caro leitor, digam da vossa justiça, caros amigos, pois foi ali que resolvi retribuir-vos a surpresa que me fizeram. E o prometido é devido.
NOTA: Este texto foi publicado, em 2003, na imprensa regional, a saber: «Gazeta da Beira», «Notícias de Castro Daire» e «Lamego hoje».