Um rio, ora manso, ora bravio, mas sempre rio, a deslizar entre montanhas desde a nascente à foz, irriga terras, gira azenhas, gira mós e leva consigo, noite e dia, até terras estranhas, a vida do lavrador, do moleiro, do lagareiro, do pastor que nasceram, viveram e morreram entre vales e montanhas.
E, nesse seu curso milenar a caminho do Douro, quanta praga, quanta raiva, levou e lavou o rio Paiva em todo esse tempo? Do lavrador, do moleiro, do lagareiro, do pastor, do camponês, cada um no seu afã, do romper da manhã à noite cerrada, quanto grito mudo e de raiva levou e lavou o rio Paiva até ao Douro? Tanto trabalho, esforço de mouro, muita imprecação, muito ralho, às vezes mudo, para se ter nada, pois viver era ter tudo.
Como era? O pastor de pés descalços na serra bravia, desde o romper do dia. O lavrador de tamancos agarrado ao arado na terra lavradia e ora desamparados, ora agasalhados por uma sebe que aqueiba o vento, eles vivem o dia a dia, e deixam que rio e o vento levem o que na terra, que no rio e que no vento cantam, choram e escrevem.
Presos ao chão do nascimento à morte (eles são tantos) alardeiam o seu desfino, a sua sorte, exprimem o pensamento nas pragas e preces que fazem ao mesmo tempo. Digo-o, não temo. Pragas ao Demo, preces a Deus e aos santos. Basta para tanto que uma trovoada repentina, em Maio, interrompa a vessada; praguejam que nem raio por tudo e por nada, e, nesse seu viver de praguejar e rezar, nem tempo têm para lerem a poesia da terra a fumegar, do cheiro a pó em
redor, da beleza da alvéola de cauda a dar a dar, que sim, que sim senhor, em cima do timão, atenta à larva do chão, atenta à leiva virada, à rima da folha lavrada, da folha escrita assim, nesse pergaminho de séculos a falar da vida camponesa, do amor, da raiva, da alegria e tristeza que ao rio Paiva chegam, deslizando das encostas da serra. Assim noutras eras, assim na minha era.
E assim, tal como disse, aqui mesmo no jardim, onde esgoto a velhice, esta boiínha, ligeitinha, faz pela vida, de rabinho a dar a dar. Ela, num instante, fez-me, voltar a esse tempo distante e lembrar muitos amigos, parentes dos outros e meus e também, junto à cabine, mesmo à entrada do Jardim, aquele senhor Mateus, engraxador, a quem um dia a minha câmara captou o olhar sincero de um homem simples, de um homem amigo, de um senhor.