Trilhos Serranos

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domingo, 17 junho 2018 12:53

ODE PAGÃ 1

Escrito por 

OLHAR DE VER, CONHECER E SENTIR

PARTE - I

Rodeado de flores, olhos ébrios de cores, narinas afogadas em odores amarelos, lilases, brancos, castanhos, cinzas e pútegas por perto a espreitar na terra, ocultas sob esta casaca de toureiro e dalmática cristã, eis-me, nesta ode pagã, remoçado pegureiro, lembrado do prazer de correr e explorar os montes, vales, rios, fontes e serras...a doçura delas, mamas cheias prontas a chupar, corpos dispostos à entrega e a regalar quem regalos não tem. E nesta minha idade de 79 anos, rio-me disso tudo. Carrancudo? Nem pensar.

 

1-O riso levou-me até Gil Vicente, até à Antiguidade, a Aristófanes, ao teatro grego, onde o siso e falta dele, se passeavam livremente na rua, no recinto em meia lua, frente à farta plateia de gente que ria ou chorava. Aquele palco fundo, lá no fundo da bancada inclinada, como cratera rasgada, era o Evereste por onde passava o riso, o gozo, o drama e a comédia. A vida toda. A miséria e a boda. Semelhantemente, nesta minha tarefa de cultivador, no meu quintal e por estes campos fora, pela serra toda, já cultivei e colhi lágrimas de tristeza, de angústia, de dor e de saudade. Já cultivei o riso, gozo e a reinação. 2 - CópiaPrefiro estes últimos. E não escondo a propensão que tenho para deixar secar o que dói e o que mata, e, ao contrário, regar, abundantemente, com regador, gota a gota, ou água corrente, as sementes, as letras, o verbo do gozo e do divertimento. Nem sempre consigo, mas eu o cultivo e tento. Epicuro? Sei lá! O que sei e digo é que disso trato, é que disso curo.

 

PARTE-  II

Inebriado, onde estou, com toda a beleza que me rodeia, no meio deste roseiral, dádiva da natureza, eis que chegou e poisou, de longe vinda, sem surpresa, linda, perto de mim, uma borboleta especial.

Ali pousada, eu (primeira pessoa do singular) epicurista de filosofia, amigo de quem canta e ri, amante de cantar a beleza e os prazeres da vida, olhos bem abertos, espraio a vista por tudo quanto me rodeia - Terra e Céu - toda a redondeza, e extasio-me com beleza, onde ponho os olhos, os desejos e os afetos. Não há gados, nem pastores por perto. Lá no alto, os gigantes geradores eólicos a levantarem-se do solo são os únicos sinais humanos de gente. Lembram-me Polifemo que também foi pastor, e também Ulisses no seu regresso a Ítaca, por amor à fiel esposa. Os montes e outeiros floridos à minha volta, são vagas do mar, e os geradores, lá no topo da serra, são mastros do veleiro onde viaja a minha imaginação e os meus desejos. Não vou só na embarcação. Nos baldões do coração vai tudo o que amo e o que canto. E também vai ela, de voo 4 - Cópiazigzagueante, cuja inconstância  a torna constante,  a borboleta ali pousada  nesta tela sem medidas, como que pincelada de pintor imaginário pintada e confundida com a natureza. Um encanto, mas sinto que exala receio (é da sua natureza) ser presa de predador que em redor esvoaça ou passeia. E, parece mesmo incomodada quando eu (primeira pessoa do singular) epicurista de filosofia, me ponho a filosofar e, em pensamento (que ela adivinha) me disponho a usufruir  tudo o que, não sendo coisa feia, me recreia e me dá gozo e prazer.

Reparo e paro no convés do veleiro. Amainam os ventos do desejo. E ao fazê-lo, vejo nela o dilema sério do “ser e não ser”. Ser bela - e sê-lo não querer - como se a beleza (coisa rara) proibida fosse de ser admirada e desejada por quem tem olhos na cara, por quem tem olhos de ver, de pensar e de sentir.

Misteriosa e bela, esta borboleta que aqui chegou, tem algo de mariposa, de noturno escondido em si. Para mim, de longe vinda, linda, envolta nesse mistério, tal como veio se foi e desapareceu no céu. E eu (primeira pessoa do singular) epicurista de pensamento (que a futilidades não ligo), amante que sou de quem canta e ri, de quem a beleza usufrui e aprecia, amigo de cantar os prazeres da vida, choro ao vê-la partir. Vê-la chegar, de longe vinda, bela, linda e vê-la desaparecer assim, como que apagada desta tela sem medida, onde estou, ficou em mim o dilema do “ser e não ser” que ela trouxe e sinto uma dor como quem leva ou couce.

5 - CópiaÉ que, dado que sou à observação e ao pensamento, olhar atento, antes de partir, eu vi-a rir por fora e chorar por dentro, comovidamente.  Parei de falar e perguntei a mim mesmo: que fiz eu? e a interpelar tudo isto, nunca pensado, nem visto com esta minha idade, descobri que, neste mundo abjeto de presa e predador, onde conta mais a beleza física do que a beleza de alma, ela rejeita ser objeto de qualquer senhor, pensador que seja.

Reencarnação terrena (pensa ela) que os dois somos de vidas passadas, sente que algo de comum tivemos nessas vidas mortas, agora,  em nós renascidas. E ao dizê-lo e senti-lo, perdida neste mar ondulado de beleza natural, sem mais ninguém por perto, eu (primeira pessoa do singular)  epicurista de pensamento, observando esta borboleta especial, verto em prosa e em poesia, a sua crença, a sua dor e a sua esperança de encontrar no espaço etéreo de onde veio, a beleza de alma que procura e anseia. E neste momento, eia!, eu, epicurista de pensamento, para felicidade sua, neste mar encapelado de vales e montes, recolhidos os ventos do desejo, deixo-me ir com ela de mão dada e, coisa misteriosa, vejo-a transformada numa princesa da vida passada e eu, senão o seu príncipe, a sua obediente montada. E, em pensamento, ambos, ela em cima de mim escarrapachada, felizes e contentes, alheios aos espinhos e piso dos caminhos, a galopar usufruímos esta beleza minha, este roseiral, onde todos os dias me passeio, canto e assobio sozinho, fazendo coro com o zumbido das abelhas e o canto dos passarinhos. Um mistério. Um caso sério.

 

PARTE III



BorboletaPois. Um mistério. Um caso sério. Divertido, cavalgado embora pela princesa, tornada mítica amazona neste Éden florido, de chão e plantas vestido, impregnado de odores, tantos que nem conto, vou ao sabor e prazer dela, tal qual no tempo ido. Quero-a feliz. Mas, ajaezado e bem cilhado, levo no freio o dilema do “ser e não ser”, pois intrigado fiquei e não me esquece, o seu voo zigzaguante, aquele sobe e desce, que, de tão inconstante a tornavam constante na lida de pousar, de flor em flor. Imagem bonita aquela, encantadora, bela, fascinante, aos meus olhos tornada gente. Que encanta tanto a criança inocente quanto o adulto libidinoso, a rebentar de afetos carinhosos ou desejos indecentes.

E não fora a minha vista penetrante, a minha sensibilidade de poeta, o meu treino de lenhador na floresta das letras, de historiador feito e experimentado a descodificar manuscritos, que só faz “história com gente dentro”, neste ambiente idílico, natural, florido e atraente, me escaparia vê-lo, de repente, infestado de raiva, de asco e, a custo visível, estancado mar de lágrimas, como se tudo, sem razão aparente, virasse ao contrário e o tornasse repelente. Que coisa estranha esta, nunca vista em biblioteca ou cartulário. Triste fadário.  O que é que, em ambiente tão alegre e colorido, edénico, diurno, fascinante, cheio de luz, onde a sinfonia da cor se confundia com o zumbido das abelhas e do passaredo, autêntico hino de amor à vida, dádiva da natureza, ambiente tão sadio natural e de convívio humano, esta borboleta volvia mariposa noturna e em si mesma escondia algo triste, revoltante, montes de ódio, rios e oceanos de náusea, panela de pressão prestes a rebentar, vulcão espelhado nos músculos retesados da fácies, lábios comprimidos, olhos a lançarem gritos lancinantes e a chisparem labaredas de raiva?

Para que se saiba, na retina e na alma me ficou gravada essa imagem para adensar o mistério escondido. Algo escapava a minha lupa observadora. Mas dava para ver que ela era, simultaneamente tão destemida e corajosa, quão frágil e indefesa. E, inseto em forma de gente, não teme seguir em frente, ir adiante e enfrentar caminhos desconhecidos, a bem da humanidade, dizia. 

FreirasNascida e criada em ambiente cultural mosaico-cristão, patriarcal, no maniqueismo do bem e do mal, catequisada nos princípios e valores dominantes existentes numa sociedade onde impera o masculino e a virilidade, pedofilia escondida sob o manto e a batina, em tempos de oração e meditação beata, de cruz ao peito, ela não via jeito de descender de Adão e Eva e tudo o mais que essa doutrina propalava. Acreditava num ser superior a gerir a máquina do mundo sólido, líquido e etéreo, mas ter saído da costela de Adão, isso é que não. E dando liberdade à imaginação e criatividade infantil, naqueles momentos recolhidos, sorumbáticos, mãos postas, rostos hieráticos, via à sua retaguarda um mundo a preto e branco, e frente a alegria e a verdura de plantas, folhas retorcidas, cores diversas, muitas vidas. E, nos círculos de amigos e familiares, para seu desconsolo, não tardou a descobrir a hipocrisia e a falsidade que defluía no olhar, no trato, no colo. Um mistério. Um caso sério.

A minha curiosidade e investigação prometia. Corri a colher a última flor onde vi pousado tão intrigante inseto, na minha ficção libertária de poeta, inseta (versão feminina) tornada gente, neste instante. Liberdade poética se dizia nos meus tempos de estudante, em busca de rima ou figura literária, consoante.

Tinha, pois, uma missão difícil pela frente. Mas do fundo do meu consciente emergiu a competência e o gosto que cultivei em jovem na literatura policial e de estantes inteiras de livros que li sobre a trama que envolvia vítima, criminoso, arma e local do crime. E tantas leituras foram essas que assimilei boa parte da paciência, persistência, perspicácia e inteligência dos mais fabulosos detetives.

E foi assim que, acompanhado por Sherlock Holmes, Henri Poirot, Jules Maigret, Mandraque e a sempre presente Miss Marple, levei para casa essa flor, pois esperançado estava de no seu corpo encontrar, num qualquer grão de pólen, a chave do mistério, ali deixada nela inadvertidamente.

Nessa minha tarefa, com o cachimbo posto de lado há muitos, muitos anos, faria uso de um equipamento de investigação laboratorial, com forma de Globo Terrestre, todo inox, dividido em dois hemisférios, assente numa base quadrada com um interruptor, sinal de que, dentro dele, haveria luz quando fosse necessário. Peça colocada numa estante da minha biblioteca, estava remetida à função decorativa, como artefacto arqueológico saída da mente humana, tal como os que lhe sucederam com finalidades semelhantes. Hermeticamente fechado à luz natural, as duas calotes abrem na linha do equador e, na tampa superior, tem uma lente que permite ao investigador, penetrar dentro e iluminar, por instantes, o espaço escuro, com uma cavidade, onde presumo ter sido posto o objeto de investigação, que dispensava a luz solar e a clorofila. E será assim, quanto a mim, que o cientista observador do passado, acompanhava a evolução de qualquer fungo ou coisa parecida e da sua experiência resultaria o conhecimento a favor do mundo, necessário à vida, à saúde ou tratamento de andaço passageiro ou demorado que prejudicasse o reino animal ou vegetal.

globo-1Acompanhado como estava e armado, assim, deste rudimentar equipamento de laboratório científico (não forense), da sapiência e paciência requerida em qualquer ciência, interpelei-me como podia eu investigar e deslindar tão melindroso enigma. O que escondia aquela alma sofrida?

Sem divã por perto, nem especialista da ciência que o exige, deixei o chão, entrei em levitação somente preso pelos fios da imaginação e criatividade, próprios da ficção literária. E nessa situação, deixei o mundo real, deixei a minha «Ilha dos Amores», dos sons e das cores que se ouviam e vestiam aquela dádiva da natureza e corri a meter naquela tumba redonda, naquele equipamento de laboratório, sem luz natural no interior, parte da flor recolhida, à procura de algo deixado pela borboleta, ida. Um grão de pólen que fosse, um ponto onde ela, ao tratar do seu sustento, em vez de sugar a seiva e o mel, deixasse resto de saliva que me levasse ao seu ADN e, assim, descobrir o fel,  a razão dela fugir ao padrão da relação humana, ao elo da cadeia amorosa que liga homem mulher. O porquê do uso de códigos diferentes na comunicação dos afetos e dos conhecimentos. E num lampejo de luz, relâmpago de trovoada em noite cerrada, pareceu-me descortinar nela uma forma diferente de viver a sexualidade. É que, num pequeno grão de pólen, descobri que um simples BEIJO tem tanto de saboroso como ascoroso, conforme o objeto e o sujeito do desejo. E, concluído isso, o pensamento, que não tem distâncias nem barreiras, pôs-me num só momento na «Ilhas dos Amores», cantada por Luís Vaz de Camões, lugar mítico onde muito se ama e tanto se beija. Assim:

“Ó que famintos beijos na floresta,

E que mimoso choro que soava!

Que afagos tão suaves, que ira honesta,

Que em risinhos alegres se tornava!

O que mais passam na manhã, e na sesta,

Que Vénus com prazeres inflamava,

Melhor é experimentá-lo que julgá-lo,

Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo”.

Os Lusíadas”, Canto IX, estrofe 83



PARTE IV



NoivaTerminei a missão. Epicurista de pensamento e de ação, amante do prazer e da luz solar, da sinfonia do passaredo, do zumbido das abelhas, das coisas saborosas e belas (isto até parece o eco de palavras ditas, mas o serrano está habituado e gosta do milagre de ouvir os sons repercutidos de encosta a encosta) não foi, porém, coisa vã o uso daquele equipamento de investigação, fora de moda. O mundo roda. Nele pareceu-me descobrir o remédio para o “ser e não ser” hesitante e revoltante. Acendida a luz, uma olhadela através da lupa, eia, naquele ambiente escuro, propício a medos, mas também à libertação de fantasmas e segredos, miasmas escondidos, lá veio, como sonho fluído, sem barreiras, a confissão de assédio sexual por chefes de serviço e familiares. Violação e sodomia gritante, não confessada, em sofrida continência. Consequência: desamor..desamor...e desamor.

Desliguei o interruptor, afastei-me do Globo Terrestre, inox, aquela espécie de bola de cristal, box de descoberta do que está oculto. E, prestes, condenei todos o espíritos malignos que vagueiam pelo mundo deixando atrás de si as sequelas que marcam negativamente as coisas belas, tornadas feias com impressão digital dos atos praticados sem freio, nem peias na sua galopada selvagem.

E então, uma relação que podia ser de amor, pela vida fora, semeia sofrimento, ódio, raiva e, a muito custo, lágrimas contidas, gotículas de orvalho deslizantes nas pétalas da rosa, todas as vezes que, airosa, é olhada, admirada e apetecida por qualquer figura parecida a selvagens tais. E, em vez de honrada e agradecida, sente-se infeliz, amargurada e revoltada. Ouvem-se, no silêncio, os seus queixumes,  os seus ais...

Fora da caixa, não encaixa nela o padrão dominante do jogo amoroso masculino. Um gracejo elogioso é ofensivo. Um olhar de ternura, uma amargura. Perdida foi a alegria de um dia se ver vestida noiva. De casar e ter filhos. E, magoada e infeliz, pensa e diz: «antes só que mal acompanhada. Mãe solteira ou má mãe, nem pensar». Por convicção, natureza ou gosto, o sexo oposto, ao seu olhar,  torna-se monstro com garras de gavião (não é impressão minha) sempre ávido de possuí-la, de saltar-lhe p’ra espinha. Eis mais uma daquelas mulheres que, assediadas, abusadas ou violadas, por via dos estragos sofridos (ou natureza sua) se tornaram peças de lego que não encaixam no jogo do prazer natural e divertimento de um casal, antes pelo contrário. Bem visíveis são os programas informáticos incompatíveis. Ou então chipe avariado. E eu, de coração retalhado, por assimilação humana, poeta e lenhador na florestas das letras, chamo a mim a dor e o sofrimento alheios. E mais sofro quando vislumbro que sou metido no mesmo saco, que faço parte do recheio transportado, que sou tido como soldado de um exército a que não pertenço. O meu olhar de ternura e de carinho faz ricochete e, de caminho, vem asco e desprezo. Que pena! Lamentável! Um mistério. Um caso sério.

Montemuro-1Perdi-me em divagações doridas, sofridas, execráveis. Mas constato, agora, que, retornei às adoráveis visões da paisagem idílica onde estava, quando, sem surpresa, chegou aquela borboleta, aquela ninfa, feita princesa. Nela, nessa paisagem, nesse roseiral, para esquecer o que dói e mata, rego, para florescer, com regador, gota a gota, ou água corrente, o que me dá prazer e gozo. Epicuro? Sei lá. Só sei que disso trato, que disso curo.

A tela pintada nos meses de maio e junho, aqui na serra do Montemuro, continua colorida, viva e bela. O relevo, os montes e os vales ainda estão vestidos com a casaca de toureiro e a dalmática cristã, no sentido pagão e religioso da expressão, e, por isso,  libertado fico de maus presságios, tabus e crenças. Procuro pútegas, «canarinhas» de pétalas amarelinhas, mimosas, tetinas cheias a dar volume no IMG 2531regaço, apetitosas, protegidas pelo sargaço. E ébrio de tanta beleza natural, desta arte, quase divina saída de mão humana ou da mão dos deuses, o pensamento, dizia (é da minha natureza) conduz-me aos tempos universitários e a ouvir, “claramente ouvisto” a voz subversiva do meu professor de História de Arte e dos valores nela contidos. Um «Atanásio contra o mundo». Há quantos anos, senhores! Aquele olhar gestaltista, amplo e profundo por todo o painel, logo seguido daquele olhar focado nos pormenores, extraindo deles o significado e a intenção disfarçada dos pintores, dos artistas. Tudo virado do avesso. E travesso, lá me veio o retrato deMONA Mona Lisa pendurado ao lado da minha secretária, a obra mais famosa de Leonardo, divulgada pelo mundo, devido ao enigmático sorriso, sempre de duvidosa interpretação: “inocente, maternal, convidativo, triste e até lascivo”. Para mim, sempre interpelante, como quem não quer, quedo-me somente a perguntar, homem ou mulher? Está-se se rir para mim ou a rir de mim? Quero lá saber, no mundo idílico do gozo e do prazer, cabe sempre o jucoso gesto dactílico. 

É isso. São assim os cientistas e os artistas das “artes plásticas”, de “ficção literária” ou “ficção científica”. Eles veem sempre mais longe, veem, sem custo, o que está escondido sob o chapéu do “Princepezinho”. Pois sabem que “chapéus há muitos”. E, olhando o mundo por periscópio ou telescópio para toda a banda virado, não se ficam  de olhar afunilado preso às lamelas do microscópio.

 

Neste meio natural, pagão, epicurista que sou de pensamento e de ação, estou como o peixe na água. Por isso retomo a imagem do mar ondulado e do veleiro que tem como mastros os geradores eólicos, no topo da serra. Navego no “mar magnum” das ideias e dos prazeres. Usufruo tudo quanto de bom posso levar no bornal da vida, sem transferir para bornal alheio, parte do recheio que, nesta caminhada de romeiro, me fez sofrer e chorar de dor, de angústia e de saudade. Sou humano e cada qual suporta a bagagem que carrega para o destino que leva. Por isso, olhando longe, levanto a bengala, estendo o braço e aponto ao piloto da embarcação a rota da “Ilha dos Amores”. É para lá que quero Abílioir. O demo que se dane. Pois enquanto tiver luz nos olhos, sentidos e gostos apurados, lucidez bastante para não inverter a escala dos valores, da arte, dos sentimentos e pensamentos, não me cansarei de cantar as maravilhas da natureza, o hino à vida, à beleza, não em estilo grandiloquente, mas em tom erótico bastante que lembre o azulado casal de libelinhas, voando e copulando, naquele seu voo exótico, em forma de coração. Assim, ali, na “Ilha dos Amores”, como aqui na serra do Montemuro, rodeado de flores, neste roseiral, sem engenho nem arte, cantarei por toda a parte, nesta idade, neste tempo tardo, que serei Veloso, que serei Leonardo e os demais argonautas de Gama, todos de olhar esbugalhado, perante a beleza esquiva das ninfas que os seus corpos e alma inflama:

«Mil árvores estão ao céu subindo,

Com pomos odoríferos e belos;

A laranjeira tem no fruto lindo

A cor que tinha Dafne nos cabelos.

Encosta-se no chão, que está caindo,

A cidreira com os pesos amarelos;

Os formosos limões ali, cheirando,

Estão virgíneas tetas imitando».

Os Lusíadas”, Canto IX, est. 56.

AMORMas para quem tiver diferentes orientações turísticas e sexuais, diferentes olhares e gostos de viver e ver a beleza natural e humana de mil matizes, aponto a rota da ilha de Lesbos, a espreitar nas águas mar Egeu. E lá, segundo a sua natureza e desejo, sejam felizes. Eu, na companhia de Camões e essoutros na companhia de Safo, cujo esboço de AMOR aqui deixo a ver se me safo do “ser e não ser”, onde me meti, sem querer, com simultâneo prazer e desprazer. O esboço não está assinado, nem datado. Intencionalidade, talvez, de quem o fez. Título e nome para quê? Toda a pessoa culta conhece, sente e vê. Sem recriminações nem culpas. Tem a natureza as suas leis e, no seu articulado, simples ou complicado (com parágrafos únicos e tudo) não me engano, no tribunal do tempo e da arte, absolvido fica sempre o artista que canta, escreve ou pinta o gozo e o sofrimento humanos. E quem vir, nesta forma de olhar, de ver e sentir uma pontinha de tara sexual, corra imediatamente ao especialista do divã, pois se hoje é tarde, muito mais tarde será amanhã.

EPÍLOGO

Aqui chegado, descendente que sou de Celtas, Lusitanos, Visigodos, Gregos e Romanos, injetado que fui com sagas e mitologias antigas, onde homens, deuses, fadas, faunos, gnomos, duendes e ninfas usufruíam livremente as belezas naturais, espraio novamente a vista em meu redor, sabedor, pelos anos que levo de vida, que toda esta beleza do mês de maio e junho, assim florida e ridente, murchará, perderá os seus adornos, e, toda nua, entregar-se-á ao inverno para juntos dormirem os frios do inferno.

É isso. Ser ou não Ser. O nascer, crescer, viver e morrer. E, desalentado, nesta viagem entre o presente, o passado e o futuro, já que dos prazeres da vida curo, eis que escondido na bagagem descubro o desalento  que toda a gente sente, no céu, na mar e na terra:

“No mar tanta tormenta e tanto dano

Tantas vezes a morte apercebida!

Na terra tanta guerra, tanto engano

Tanta necessidade aborrecida!

Onde pode acolher-se um fraco humano,

Onde terá segura a curta vida,

Que não se arme e se indigne o céu sereno

Contra um bicho da terra tão pequeno?”

 Os Lusíadas” Canto I, est. 106

Globo-2Nesse estado, desalentado, “bicho da terra tão pequeno” deixei a serra e todo o seu encanto de junho e maio. Regressei a casa, entrei pela porta por onde saio e, nela entrado, deparo logo com aquele Globo Terreste, aquele equipamento inox, de laboratório antigo. Aproximei-me dele como que por ínan atraído. Premi o interruptor e, através da lente, em vez de ver ouvi, pois chegou-me ao ouvido, “claramente ouvisto” a tão conhecida expressão de Sherlock Holmes:

Elementar, meu caro Watson”.

Desliguei, num ápice, o interruptor, tirei a luz à lente e, imediatamente, abri aquele Globo Terreste, pela linha do Equador. Aquilo era voz de gente, sim senhor, e isso me fez lembrar que eu tinha metido no interior, as pétalas da flor onde vira pousada a borboleta, cujo voo gracioso, do sobe e desce, do vai e vai, naquela sua postura inconstante e constante do “ser e não ser” a fim de desvendar o mistério, o caso sério. Pequei nela e, com todos os desvelos,  fui pô-la no meu quintal, livre de sonhos e pesadelos. Ali na terra, fora do globo - neste mundo de paz, amor e guerra -  ela, pousada em aveludada maia, ou no lilás da mística flor da murta, podia, naquela sua beleza curta, em tempo próprio, cumprir os ditames da natureza.

 

 

 

 

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.