Nessa sua solitária andança
Tocam-na mãos delicadas de criança.
E os adultos
Letrados e incultos
Quando dela fazem uso
Em qualquer canto escuso
Depois da necessidade cumprida
Própria de toda a gente
Logo a devolvem à vida
Não magoada, não dorida
Mas de tal modo manchada
Que a tornam ao cheiro e a vista
Repelente.
Corre mundo anos a fio,
O monte, a ravina, o vale
E nua, tal qual
A mãe a pariu
Banha-se extasiada no rio
Indiferente a tudo
(se é que alguém a viu!)
E deixa-se aproveitar
Dócil e mansa
Por peixe graúdo e miúdo
Sem de nada se pagar.
Sem tecto nem abrigo
Aqui se arruma, ali se amanha
E quase nunca descansa.
Não receia o perigo
Nem de noite, nem de dia.
Áspera, rude, serrana
A rolar sem rumo nem tino
Pelo mundo
O tempo e o destino
Se encarregam lentamente
De torná-la mais macia
Mais maneirinha
Mais atraente.
Desgastada e polida
Em qualquer sítio perdida
Chega ao fim da caminhada.
Passa por ela um poeta,
Que sendo, por certo,
Discípulo de Demócrito
Epicuro ou Zenão,
Para além
De fundir o verso
Num cadinho de estilo erótico,
Na sua relação com a natureza
E da natureza amante,
Ao vê-la
Imediatamente pára.
Olha-a de perto
Inclina-se sobre ela
Delicia-se com o achado
E, com sensibilidade rara,
Na sua natural e rústica sageza
Sem curar do seu passado
Leva-a feliz para casa.
E num só instante da sua vida
Aquela pedra polida
Não sendo preciosa ametista
Digna de incrustar anéis,
Colares de príncipes e de reis
Viu-se com beleza bastante
Para aumentar a lista
E enriquecer a colecção
Que o poeta tem
De singulares pisa-papéis.
Deixando a vida vária
Que tantos anos levou
Naquela vida errante
Agora, que tudo passou,
Algo, porém, lhe dói.
Assim estimada e recolhida
Ela, que sempre livre foi
A rolar pelo chão
Repousa, agora, numa secretária
Ou numa estante
A dividir a meias,
A ingrata missão
De agrilhoar palavras e ideias
Mas as da sua vida
NÃO.
NOTA: transcrito do velho site, onde está publicado há anos.