sexta, 09 agosto 2013 12:03
Escrito por
Abílio Pereira de Carvalho
POVO QUE LAVAS NO RIO
Não. Não é o título do belo poema de Pedro Homem de Melo, cantado e recantado pelas grandes vozes portuguesas, que soa bem no ouvido de todas as pessoas da minha geração. Não. Este povo são as mulheres de Cujó que, nos meus tempos de criança, iam lavar a roupa para aquela poça do rio Calvo, a jusante da ponte que existia e existe no caminho que levava e leva aos terrenos de Vale de Carvalho, Touça, Rio Mau, Moirisca, e todos os montes que estavam para lá do Santo António e do Senhor da Livração. Sítio conhecido, agora, como então, por PONTE, aquela passagem que deu o nome ao moinho hidráulico que existe perto dela e, recentemente, ao templete que abriga uma imagem da Nossa Senhora, a SENHORA DA PONTE.
Perguntar-me-ão a razão por que, aos 74 anos de idade, faço esta incursão na memória. Eu dir-vos-ei que é a sina de quem, mergulhado no estudo do passado, esbarra não só com os documentos escritos, com edifícios, solares, castelos e igrejas, casas cobertas de colmo, choupanas espalhadas por lameiros e tapadas, património material construído, mas também com os documentos orais, artefactos arqueológicos de comunicação, tão frequentes nessa «ágora» feminina, onde as mãos das mulheres «bate-que-bate, esfrega-que-esfrega», lavando a roupas suadas do esforçado trabalho do campo, também «bate-que-bate» com a língua, lavavam a vida e os pecados da aldeia.
Pequeno ainda, condenado apenas a ouvir, pois era de boa educação as crianças não meterem bedelho nas conversas do adultos, ficaram-me na memória duas palavras que, não só pela sua fonia intrínseca, mas também pelo tom com que eram pronunciadas, teriam de deixar rasto no campo da minha aprendizagem, no inocente e rústico campo do estudo e do pensamento.
As coisas evoluíram, os hábitos higiénicos obrigaram os objectos a mudar de nome e libertaram a floresta cabeluda da fauna em que os pobres eram verdadeiramente ricos. As mãos das mães ficaram aliviadas de tal tarefa, o soalheiro deixou de ser a poça do rio Calvo, junto à ponte, deixou de ser as «quintas» da aldeia, aqueles lugares ignotos e bisonhos, mas alargou-se ao mundo inteiro através da Internet, do Facebook. E as «lambisgóias», as «delambidas», as falantes e as visadas, essas não desapareceram. Refinaram como o vinho do Porto, mas usam a língua com a mesma função. Elas, em recato, dizem mal umas das outras, o piorio, uma «delambida», uma «lambisgóia», uma «intrometida», uma «convencida», mas onde toda a gente vê, mandam beijos e beijinhos por tudo e por nada. Arremessam-nos à distância, ósculos sem gosto, sem sabor, sem calor, que sabem e tresandam a hipocrisia, a amizade de momento, de agrado e de conveniência imediata ou calculada.
Publicado em
Memórias
Abílio Pereira de Carvalho
Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.