Um dia, um daqueles dias de nevoeiro, ora denso ora esfarrapado, acompanhado por chuvinha de molhar tolos, coube-me a mim levar o gado à serra. Moço para 10 ou 11 anos de idade, capucha metida na cabeça, eu aí vou afoito a dar conta do recado para os lados do Picoto. Não fui para longe. Ali, à beira do caminho que leva ao Morgado, abriguei-me da chuva encostado ao penedo do Corucho. As cabras e ovelhas andavam perto. Encolhido de frio, o tempo não se prestava para a habitual brincadeira no «escorrega granítico», ali mesmo ao lado, nem tão pouco por ali andavam outras almas da minha idade com quem pudesse brincar e passar o tempo. Nas redondezas não piava pássaro, nem ladrava cão. Só o tilintar das campainhas penduradas no pescoço das cabras e ovelhas rompiam o manto de nevoeiro, cada vez mais cerrado, cada vez mais um livro aberto onde eu lia narrativas de terror e medo.
Chão de mato roído, o gado lambisca a erva molhada que distraidamente aflora do solo. Nos giestais próximos meia dúzia de pegas grasnam sem cessar. O nevoeiro tolhe-me a visão. Mas elas não se calam. Mau agoiro. Tinham razão. De repente ouço o tilintar da guizalhada e vejo o gado tresmalhar-se sem direção. Não deu tempo para mais.
À minha frente, a dois passos de mim, está a razão de todo aquele alvoroço: um lobo. Um bicho de respeito. Cauda a varrer o chão, na ânsia de arranjar o jantar, em pleno dia, a coberto do nevoeiro, veio a direito e mostrou bem ao que vinha. Obedecendo a um impulso instintivo levantei os braços e procurei gritar, dar sinal que estava ali gente, atemorizá-lo, mas fiquei tão mudo quanto o penedo que me abrigava. A voz não me saiu da boca. A fera, que viu o meu gesto, não pensou duas vezes. Deu às-de-vila-diogo e, creio que tão assustada quanto eu, sumiu-se tão rapidamente como apareceu. Mas eu é que não estive para mais contemplações. Juntei o gado, conduzi-o à povoação, meti-o na loja e justifiquei a razão do meu procedimento. O medo devia estar-me chapado no rosto, pois a minha mãe contemporizou:
- Fizeste bem, meu filho, vai ao palheiro de bota-lhe um molho de fieitos. Foi melhor isso do que ficarmos sem uma rês.
Assim fiz, mas o medo foi tanto que passei a sonhar frequentemente com lobos. E passados que são tantos anos, não raras vezes me sinto identificado com o bicho que tal susto me pregou e, mesmo solitário e em vias de extinção, como ele, não me canso de uivar sozinho por estas bandas do Montemuro.
NOTA: publicado em 2005 no meu livro «Memórias Minhas» e no meu antigo site «trilhos serranos» s/ ilustração.