MEMÓRIAS VIVAS
De currículo académico e profissional disponíveis na Internet, nele está omissa (por desnecessária) uma das tarefas que mais gostei de fazer na vida e durante a qual, a bem dizer, me tornei conhecedor dos REALIZADORES e PROTAGONISTAS das "fitas" (uso de propósito a palavra) exibidas nas salas de cinema, nos anos 60 do século XX. Fossem elas importadas da América, de França, da Itália, da Austrália, da índia e por aí fora. Não vou dizer nomes, pois longa e fastidiosa seria a lista. Mas direi que a diversidade cinematográfica a que eu estava habituado em Moçambique (onde não havia televisão) desapareceu do meu campo de visão, apetência e gosto, com a exclusividade dos filmes americanos corridos na nossa RTP, quando era única e mesmo depois de haver já outros canais, aqui, em Portugal. Vá lá, ultimamente a RTP1, em alguns domingos consecutivos, lá me levou novamente à India, permitindo-me apreciar aquelas coleantes dançarinas, desde os pés às pontas dos dedos das mãos, acompanhadas daquelas lânguidas e intermináveis canções, tão grandes como o país que é quase um continente. Chegou até mim aquele inconfundível odor a sândalo a que me habituei durante anos. Hei de voltar a eles, quando falar na CASA DAS BEIRAS em Lourenço Marques, onde fui membro da Direção e, em mandato nosso, acoplámos ao solar da sede, uma sala de cinema, construída de raiz.
Mas voltemos a TETE. Funcionário dos CTT, destacado naquela cidade, integrei uma roda de amigos, todos jovens, entre os quais estava o LUIS (ignoro o apelido) que trabalhava na Farmácia do Estado. Eu tinha uma mota HONDA 50 e ele não tardou a adquirir para si uma igual, só diferente na cor. Éramos dois dos cinco ou seis amigos inseparáveis que, como mandava a idade, fazíamos as nossas patifarias, uns aos outros, incluindo o uso disfarçado da "penugem" do feijão macaco.
Numa cidade do interior de Moçambique (ainda não havia o MAXIME) a principal ocupação da noite (diversão, entretenimento e aprendizagem) era o cinema. E o pessoal não perdia toda e qualquer "fita" que fosse exibida no CINE SANTIAGO, propriedade de um cidadão indiano.
Um dia o Luís chegou ao pé de mim e disse-me que, depois de ter falado com o dono do cinema, acordara com ele arranjar um parceiro com o qual, alternadamente, um na sala das máquinas e outro na plateia (auxiliando um funcionário da casa, também indiano) projetaríamos os filmes a TROCO DE NADA. O pagamento consistia em vermos os filmes de BORLA. Dito e feito. Comprar o bilhete com trabalho, ir ao cinema todos os dias, achei justo. Aceitei a proposta e passámos à fase de aprendizagem. O MESTRE era o funcionário da casa, não sei se familiar do proprietário. E não se pense que ser PROJECIONISTA é coisa fácil. Claro que não é um "bicho de sete cabeças", mas implica responsabilidade, assiduidade e momentos há em que se torna necessário dar provas de maestria, sob pena do público, rebentar a plateia com o sapateado.
Mas vamos por partes:
1- Uma casa de cinema como todas as outras. Em baixo a plateia virada para um écran e em cima, na retaguarda a casa das máquinas. Duas ao lado a lado, semelhantes às das fotos que ilustram este texto, extraídas, com a devida vénia, do GOOGLE, pois, embora possua alguns registos fotográficos da minha passagem por Tete, como civil, não tenho, por falta câmara fotográfica e de "cacau", a QUANTIDADE que vejo nesta página tiradas de militares a militares, autênticos DOCUMENTOS de um ESPAÇO E DE TEMPO HISTÓRICO com os seus PROTAGONISTAS.
2 - À frente de cada máquina, a rasgar a parede, existia uma pequena janela retangular, aberta na horizontal, para passagem da luz e das imagens, obstando a que o ruído das máquinas e dos nossos movimentos chegassem entrassem à sala de espetáculo, lá em baixo.
3 - Nas partes superior e inferior do corpo de cada máquina, à frente, havia dois recipientes circulares com tampa, tipo boião, colocados na vertical: o superior recebia a "fita" bobinada e a inferior recebia a «fita» que nela se ia enrolando, à medida que passava por ranhuras e carretos dentados, durante a projeção.
4 - Carregadas as duas máquinas, abria-se a porta lateral que elas têm no bojo e colocavam-se os dois elétrodos (dois em cada) por forma a que os terminais soltos se atraíssem automaticamente, depois ligadas à eletricidade. Esses elétrodos são os responsáveis pelo ARCO VOLTAICO, a luz incandescente que faz chegar as imagens ao écran. E mal andaria o projecionista que se descuidasse e tentasse aproximá-los de porta aberta. Uma vez colocados, a porta devia ser fechada e a aproximação de ambas as pontas dos elétrodos devia ser feita através de dois manípulos existentes no exterior, rodando-os para a direita ou esquerda, conforme a necessidade.
5 - Os filmes de longa metragem tinham uma série de bobines. Carregadas duas, uma em cada máquina, as outras deveriam estar em linha de marcha, de forma sequenciada. Rodada a bobine da primeira máquina, entrava a segunda, da máquina ao lado e por aí adiante até ai fim.
6 - Mas como sabíamos nós quando a primeira bobine estava no fim por forma a ligar a segunda, sem haver interrupção do filme? Ora cá está um pequeno segredo. Quando rebobinávamos a fita, a duas ou três voltas do fim, fazíamos uns pequenos riscos ou círculos nos fotogramas com a ponta de uma tesoura e mal eles aparecessem no écran, fazíamos entrar em ação a segunda máquina e o espectador não dava por nada. Nunca me esqueci disso. Pelos vistos era uma técnica universal e, pela vida fora, sempre que me refastelava numa sala de cinema e via os tais sinais, dizia para a minha mulher: o projecionista vai mudar de bobine. Como é que sabes isso? E ensinava-lhe como era. No meu passado incluía a experiência de PROJECIONISTA.
7 - E quando uma fita partia inesperadamente? Era o momento de mostrarmos toda a nossa mestria. Não podendo emendar o filme, no momento, mesmo com o prejuízo de se perderem alguns fotogramas e, consequentemente, alguma sequência de cenas, só tinhamos de passar o mais depressa possível a fita pelas ranhuras e carretos dentados da máquina, por forma a recolocar no écran as imagens ansiosamente esperadas pelo espectador. E quem algum dia viu as curvas e contracurvas que unem todos os carretos dentados por onde passa a fita de uma máquina de projetar cinema, sabe quanta perícia de mãos e rapidez de movimentos são precisos para evitar o sapateado na plateia. E se, nesse acidente acontecia desaparecerem algumas cenas do filme (como às vezes sucedia) logo se dizia cá em baixo, que andara ali a mão da censura. Um acidente técnico virava imediatamente um acidente político.
8 - Ao lado das máquinas havia uma mesa, ferramentas e cola para unirmos as partes das "fitas" partidas. Aprendi tudo isso com aquele indiano da casa que, à distância do tempo e experiência de vida, posso considerar ter sido para mim um excelente professor. Mas, para além da paciência e calma que ele usava na sua pedagogia de ensino, ele era também um artista. Um artista de mão cheia, naquela sua figura franzina de cor achocolatada. O caso era que quase todos os filmes vinham acompanhados dos respetivos CARTAZES PUBLICITÁRIOS, aqueles que anunciavam o filme em EXIBIÇÃO, ou a exibir proximamente. Na época, a FIGURA DE CARTAZ era sempre o ROSTO DO PROTAGONISTA, fosse qual fosse o filme e o seu conteúdo. Pois, à falta de CARTAZES por qualquer acidente ou atraso, eu vi esse meu MESTRE agarrado aos pincéis, papel e tinta e, em menos de um "ai" estendia na vitrina ou na parede frontal do edifício, o rosto Clark Gable, de Sofia Loren e outros MONSTROS, masculinos e femininos da época. Nunca me esqueci disso. E tantas vezes me lembrei dele quando tive de lidar na HISTÓRIA DE ARTE com Miguel Ângelo e Leonardo de Vinci.
Aqui deixo a minha homenagem a toda essa gente. O meu amigo Luís, também incluído no rol de retornados, faleceu há muito com diabetes, já casado e pai de filhos. Enfim, eis aqui a expressão de memórias, de aprendizagens e de afetos, aos lugares, às gentes e às coisas.
Já um dia disse nesta PÁGINA que a «raiva, o ódio e o amor não têm cor». Reitero a expressão para acrescentar que em mim não tem acolhimento o RANCOR, mesmo tendo consciência de que fui uma VÍTIMA da DESCOLONIZAÇÃO e não um SUJEITO dela. Escrevo nesta página porque mão amiga a ela me associou por saber que passei parte da mocidade em Tete. E nela - página de militares para militares - tenho sido civilizadamente bem acolhido, como civil. Não posso, pois deixar de apreciar a HUMILDADE de todos aqueles que, com as boas recordações da mocidade associadas às más recordações da GUERRA mostram a sua GRANDEZA sem recurso rancores e ódio acumulados pelas perdas sofridas.