Castro Verde, 7 de Outubro de 1976
Exmo. Senhor
Comissário Norberto Marques Lopes
Rua Prudêncio da Trindade, 19- 1º
ERICEIRA
Em primeiro lugar não se deve admirar de eu, desta vez, lhe escrever à máquina. Faço-o, principalmente, por dois motivos que reputo de grande interesse: primeiro, para que leia e compreenda todas as palavras nela vão escritas; segundo, para eu ficar com uma cópia da mesma a fim de, mais tarde, ter presente as razões que levaram a escrever-lha.
Registemos os factos.
Quando o senhor (e família) deixou L. Marques e partiu para Portugal, em gozo de férias, pediu-me o especial favor de olhar pela sua casa, de lhe pagar a água, a luz e o telefone e além de 1.000$00 que me deixou no aeroporto, deixou-me também a caderneta da Caixa Económica com o depósito de uma centena de escudos. Além disso deixou-me uma cambial de 12.000$00, cujo quantitativo não tinha e eu ofereci-me para lho emprestar, sendo a transferência feita através do B.N.U. com a ajuda do Tó Vieira, como sabe.
Eu fiquei também com uma procuração sua para poder receber na P.S.P. os seus vencimentos, o que nunca veio a acontecer, visto o seu processo ter sido transferido para Portugal e, como tal, o senhor recebê-los cá. Também me foi pedido para colher nos Serviços de Emigração a autorização que o senhor solicitou para permanecer mais de 90 dias fora do país, sem perder a residência. O que eu fiz. Logo que foi dada tal autorização, e depois de perder tempo e descanso nas bichas que então se formavam nos Serviços Púbicos de Moçambique, fui solícito em mandar-lhe um telegrama que me custou 90$00, que não debitei porque julgava eu, se tratava de uma obrigação de amigos.
Tudo isso eu fiz porque os meus «amigos» me pediram, recordam-se? Não. Não se recordam. Como amigos talvez se recordassem. Mas habituados como estavam a serem patrões que julgam ter criados para tudo, esqueceram depressa.
E esqueceram depressa, porque, entretanto, resolveram mudar o rumo à vossa vida, que foi de não regressarem a Moçambique, como ficara planeado. Por minha parte, e por coincidência, também eu resolvi não ficar. Comuniquei-lhes que tencionava regressar e recebi de si ordens para entregar as chaves da sua casa ao vizinho do lado, o que fiz de facto.
Estando as coisas neste pé, o senhor manda-me o bilhete de passagem do Lino para eu resgatar o reembolso correspondente ao não regresso dele. Note-se que não me mandou o da sua esposa, certamente por não ter ainda decidido concretamente se ela regressaria ou não. Não me foi possível reaver esse dinheiro, que, aliás, não chegava para amortizar o seu débito, por razões que na altura apontei e agora repito: não seria reembolsado a curto prazo e eu estava em vésperas de regressar. Foi assim que me informaram nos serviços e foi assim que o informei.
Teria muita coisa a dizer, adjectivando, devidamente, a sua atitude de querer saldar, em Portugal, uma conta com um cheque a cobrar em Moçambique, quando na prática, e devido à impossibilidade do seu reembolso, isso equivaler a não pagar. Por assim ser, e para que não fique na dúvida quanto aos seus propósitos, resta-me devolver-lhe o cheque e desejar-lhe que com esse dinheiro se divirta e beba, à minha custa, umas cervejas, como costume seu, no R. Oriental.
Mas sempre lhe quero dizer que quem perdeu casa, carro e mais haveres em favor dos negros, também perde mais dez contos a favor de brancos. Estive 16 anos em África e nunca explorei, nem branco, nem preto. Sempre lhes reconheci (aos negros) a mesma liberdade e direitos que a mim eram devidos. Não procedi como alguém que conheço para quem os negros não passam de selvagens e, no entanto, têm arte negra a ornamentar as suas casas para as valorizar, agradar à vista, ou atrair clientes.
Senhor Saraiva, a sua atitude fica muito mal a um COMISSÁRIO DE POLÍCIA e, para mais, a um homem que eu considerava meu amigo. Mais uma vez se concretizou o aforismo português: «não emprestes dinheiro a um amigo, para não perderes ambos».
A lição é cara, mas aprendi.
Juntamente a esta carta segue, pois, o cheque devolvido. Passe bem!
Abílio.