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sábado, 15 junho 2013 12:46

DESCOLONIZAÇÃO (4)

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É sabido e consabido que a «descolonização» revestiu mil facetas e mil opiniões, tantas quantas foram os sujeitos por ela responsáveis e as vítimas apanhadas inocentemente na enxurrada. Para poucos, uma certeza, para muitos, surpresa inesperada. Perderam-se «teres» e «haveres», dispersaram-se e perderam-se amigos e outros que, dizendo sê-lo, mostraram pelos actos, que o não eram.    A carta que transcrevo, registada nos CTT, cujo recibo atesta que ela seguiu para o destinatário, mostra bem o comportamento de um desses «amigos», ainda por cima «Comissário da Polícia de Segurança Pública».

 

Castro Verde, 7  de Outubro de 1976

Exmo. Senhor

Comissário Norberto  Marques Lopes

Rua Prudêncio da Trindade, 19- 1º

ERICEIRA

Em primeiro lugar não se deve admirar de eu, desta vez, lhe escrever à máquina. Faço-o, principalmente, por dois motivos que reputo de grande interesse: primeiro, para que leia e compreenda todas as palavras nela vão escritas;  segundo, para eu ficar com uma cópia da mesma a fim de, mais tarde, ter presente as razões que levaram a escrever-lha.
Registemos os factos.

Quando o senhor (e família) deixou L. Marques e partiu para Portugal, em gozo de férias, pediu-me o especial favor de olhar pela sua casa, de lhe pagar a água, a luz e o telefone e além de 1.000$00 que me deixou no aeroporto, deixou-me também a caderneta da Caixa Económica com o depósito de uma centena de escudos. Além disso deixou-me uma cambial de 12.000$00, cujo quantitativo não tinha e eu ofereci-me para lho emprestar, sendo a transferência feita através do B.N.U. com a ajuda do Tó Vieira, como sabe.

Eu fiquei também com uma procuração sua para poder receber na P.S.P. os seus vencimentos, o que nunca veio a acontecer, visto o seu processo ter sido transferido para Portugal e, como tal, o senhor recebê-los cá. Também me foi pedido para colher nos Serviços de Emigração a autorização que o senhor solicitou para permanecer mais de 90 dias fora do país, sem perder a residência. O que eu fiz. Logo que foi dada tal autorização, e depois de perder tempo e descanso nas bichas que então se formavam nos Serviços Púbicos de Moçambique, fui solícito em mandar-lhe um telegrama que me custou 90$00, que não debitei porque julgava eu, se tratava de uma obrigação de amigos.

Tudo isso eu fiz porque os meus «amigos» me pediram, recordam-se? Não. Não se recordam. Como amigos talvez se recordassem. Mas habituados como estavam a serem patrões que julgam ter criados para tudo, esqueceram depressa.

E esqueceram depressa,  porque, entretanto, resolveram mudar o rumo à vossa vida, que foi de não regressarem a Moçambique, como ficara planeado. Por minha parte, e por coincidência, também eu resolvi não ficar. Comuniquei-lhes que tencionava regressar e recebi de si ordens para entregar as chaves da sua casa ao vizinho do lado, o que fiz de facto.

Estando as coisas neste pé, o senhor manda-me o bilhete de passagem do Lino para eu resgatar o reembolso correspondente ao não regresso dele. Note-se que não me mandou o da sua esposa, certamente por não ter ainda decidido concretamente se ela regressaria ou não. Não me foi possível reaver esse dinheiro, que, aliás, não chegava para amortizar o seu débito, por razões que na altura apontei e agora repito: não seria reembolsado a curto prazo e eu estava em vésperas de regressar. Foi assim que me informaram nos serviços e foi assim que o informei.

Teria muita coisa a dizer, adjectivando, devidamente, a sua atitude de querer saldar, em Portugal, uma conta com um cheque a cobrar em Moçambique, quando na prática, e devido à impossibilidade do seu reembolso, isso equivaler a não pagar. Por assim ser, e para que não fique na dúvida quanto aos seus propósitos, resta-me devolver-lhe o cheque e desejar-lhe que com esse dinheiro se divirta e beba, à minha custa, umas cervejas, como costume seu, no R. Oriental.

Mas sempre lhe quero dizer que quem perdeu casa, carro e mais haveres em favor dos negros, também perde mais dez contos a favor de brancos. Estive 16 anos em África e nunca explorei, nem branco, nem preto. Sempre lhes reconheci (aos negros)  a mesma liberdade e direitos que a mim eram devidos. Não procedi como alguém que conheço para quem os negros não passam de selvagens e, no entanto, têm arte negra a ornamentar as suas casas para as valorizar, agradar à vista, ou atrair clientes.

Senhor Saraiva, a sua atitude fica muito mal a um COMISSÁRIO DE POLÍCIA e, para mais, a um homem que eu considerava meu amigo. Mais uma vez se concretizou o aforismo português: «não emprestes dinheiro a um amigo, para não perderes ambos».

 A lição é cara, mas aprendi.

Juntamente a esta carta segue, pois, o cheque devolvido. Passe bem!

Abílio.

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.