EPITAPHIUM VITAE
A expressão latina "pedibus calcantibus" foi usada frequentemente por Aquilino Ribeiro nas suas obras com o fim de mostrar ao leitor a forma e a dificuldade do caminheiro serrano romper as distâncias através de trilhos, carreiros e atalhos até chegar aos destinos visados: uma romaria, uma feira, uma aldeia, uma vila, um negócio inadiável.
E o andarilho, masculino ou feminino, rompia essas distâncias a pé, descalço, de tamancos, de tamanquinhas, socos ou botas conforme as posses de cada um, em tempo de calor, chuva, vento e frio.
Duvido que Aquilino Ribeiro, filho de Padre, tenha alguma vez andado descalço ou de tamancos. Se o fez, foi por brincadeira, que é diferente da necessidade e do gosto a que era sujeita toda a gente da serra. Gente que, como ele dizia, não o lia, por ser analfabeta, mas que lhe servia de matéria plástica para a sua escrita. Sim. Mas que a sua retina era uma refinada película fotográfica, lá isso era. Basta lê-lo e conhecer a realidade campesina, conhecer a terra, a gente e os bichos que ele passou para o papel com mais fidelidade que qualquer câmara fotográfica digital hodierna a exibir na testa os milhares "pixels" com que foi fabricada a atestar a máxima definição.
E eu, que vivi parte do tempo por ele descrito, que revejo a vida dos meus pais e a minha nos interstícios das suas narrativas, dispensada a arte literária do Mestre, queria deixar aqui o meu testemunho, as minhas pegadas pelos estreitos e velhos caminhos andados, na serra e no vale, no campo e na cidade, na escola e na universidade.
E, para começar, direi que, em pequeno, não tive a sorte de Ronaldo. Em vez de me porem a correr num campo relvado a brincar com uma bola, acabado o ensino primário, inscreveram-me na escola agrária, puseram-me nas mãos uma sachola e ala, toca a guardar gado nos montes, descalço ou de tamancos, sem receio dos lobos, esses vis adversários das artes pastoris de então. Toca a lavrar e a semear os campos de milho e de centeio. No trajeto de casa para o campo, se era em manhãs de orvalho ou geada, para evitar o frio e a constipação, metia os pés nos tamancos. Mas de regresso, orvalhada ou geada desaparecidas, punha esses alcatruzes de pau e coiro às costas, pois não faziam falta nenhuma e só dificultavam a marcha por arribas e encostas.
E passaram anos. Não sei se vindos dos tempos turdetanos, esses tamancos eram os meus "Ferraris", olaré! fabricados em Cujó, saídos do cepo, do formão e da enxó do tio João Tomé, com porta aberta num alpendre, perto dos tanques, portão azul, virado para aquela eira que, há poucos anos, por falta de saber, sensibilidade e gosto estético para requalificação do nosso património histórico urbano, a Junta de Freguesia local descaracterizou, arrancando-lhe as lajes originais e enchendo-lhe o piso de paralelos, tal qual se faz nas calçadas. Isso e coisas mais.
E digo, para que se saiba e porque me apraz que, nos dias da feira do "crasto", as mulheres deslocavam-se descalças com as tamanquinhas metidas no cabaz de vime transportado à cabeça, assente sobre um lenço convertido em rodilha. Só à entrada da vila, a andarilha, por assim estar determinado nas posturas municipais, fosse mãe ou filha, é que se calçava. Nesse tempo velho, era proibido andar descalço na sede do concelho. Por idênticas razões, os homens faziam o mesmo com as botas, para não darem cabo delas. Uns e outros, homens e mulheres, por assim procederem, tinham as plantas dos pés mais duras que a sola batida de melhor marca, disponível no mercado, destinada a cabrestos e cilhas de alimárias ou de calçado humano.
Nado e criado nesse meio rural da civilização afastado, meio paroquial, logo que pude, larguei a enxada, deixei a rabiça do arado, pus de lado a aguilhada, a seitoira e a gadanha. Todas as ferramentas agrícolas. Sem qualquer desconsolo abandonei o bornal posto a tiracolo à maneira medieval, deixei de meter nele a mão e tirá-la de lá cheia de sementes para, em lanço rasgado de braço, como se vê nas iluminuras, atirá-las ao solo, certo da sua germinação, da formação do caneiro, da espiga, do grão e depois a farinha para fazer o pão. Fui pastor, lavrador e moleiro. Aos 18 anos, nesse mundo histórico e errático, exibia ao pescoço as insígnias de catedrático em Agricultura e Pastoreio.
Deixei, por vontade própria, de viver, assim, a vida medieval (essa é a minha glória!) para ir estudar a Idade Média nos livros de história, tempo que se dizia ter o fim nos princípios do século XVI. Quatrocentos anos antes. Diziam isso, sim, bem sabeis, mas esses tempos, porque negá-lo? esse tempo triste, estendeu-se até ao século XX e cá estou eu a lembrá-lo e a testemunhá-lo com acinte, de aguilhada em riste.
Dir-se-á que isso é desnecessário. Mas a mim me apraz continuar a ser o rapaz rebelde que sempre fui e, a contragosto de alguns académicos e intelectuais, gosto de desfazer todo e qualquer erro universitário posto em livros por quem, sabedor da história-ciência, sempre manejou bem a caneta sem recurso à experiência advinda da rabiça, da aiveca, da aguilhada, do arado e fazer uso da palavra, muita conversa, muita treta, mas da vida do campo, da difícil vida do camponês, proprietário, enfiteuta, senhorio ou arrendatário, saberem pouco ou nada.
Um ex-aluno meu, sabendo-me nestas andanças de lavrar o passado, ofereceu-me, há dias, um par de tamancos para museu. Tirando a ausência de testeiras de ferro, são cópia fiel daqueles que usei na infância e, por isso, eu me apressei a calçá-los e a fotografá-los. A primeira fotografia, com eles metidos nos pés, é um pergaminho, é um documento histórico que exibo sem qualquer saudosismo. Na segunda, os tamancos estão colocados sobre os campos que ultimamente tenho lavrado, com outra relha, com outro arado, com outra aguilhada ao futuro apontada. E vê-se pela lombada que dentro de cada um está uma eira, em cada folha uma leira semeada de mil palavras, mil sementes lançadas por mim não já no agro, mas nas mentes. E na minha mente, qual palimpsesto de textos sobrepostos, registadas estão as lembranças acumuladas desde a infância, dos caminhos andados, das apostas ganhas e perdidas no percurso da vida, os animais e os meios usados nas deslocações para longe ou para perto. No mais longínquo, jovem seguro de ganhar o despique com o futuro, ultrapassei a linha do Equador e cheguei a Moçambique. De lá retornei por força da Descolonização. Fui de barco vim de avião.
Sozinho ou acompanhado de amigos, conhecidos e desconhecidos, pais e irmãos, esposa, filhos e netos, subi com esforço e gosto ao topo da montanha. Agora, já na descida, joelhos e quadris a acusarem a fadiga da caminhada, sigo em direção ao vale oposto, ao encontro da Senhora da Gadanha. Antes, porém, eu que ceifei trigais e milheirais, que de podão em punho abri clareiras nos matagais aqui e além, olho para trás e lembro com saudade a catrefa daqueles que, em igual tarefa, ficaram pelo caminho por vontade apressada dessa Senhora. Ela que decidiu e marcou a hora. Ela que desde o princípio do mundo não olha a idades, que na sua nobre missão de pôr fim a todos e a mim, que não distingue rico de pobre, que mede pela mesma bitola todos os que ela chegam de Ferrari, de burro, de sapatos ou de tamancos...zás, já cá estás. Tantos. É a lei da natureza.
Mas, graças à imaginação e invenção humanas, eu tenho para essa Senhora uma surpresa. Antes da sua missão cumprida, olhos nos olhos, lhe digo: em menino, olhando o espaço sideral, jogava às escondidas com uma estrela que no firmamento fazia negaças comigo. Ora aparecia, ora desaparecia. Agora vou eu fazer negaças contigo neste firmamento digital, aqui, onde tudo o que se coloca não tem fim, onde tudo o que se escreve e divulga sem usar caneta, papel e tinta, tudo o que é imaterial como o pensamento, vive eternamente. Que grande finta, Senhora. Atualiza-te. Deixa essa imagem sinistra e paroquial, de capuz preto e gadanha na mão. Foste vencida pela tecnologia. Aqui não marcas tu a hora, nem o dia. E, quando eu perder o pio, cremado que seja, lançadas as minhas cinzas ao vento, ao mar ou ao rio, quando do meu corpo não restar molécula orgânica visível, palpável, mensurável, localizável, um cibernauta qualquer, homem ou mulher, navegando na Internet, encontrará este "EPITAPHIUM VITAE", não escrito em letras douradas sobre uma pesada campa de tumba, mas em escrita etérea que inunda o universal livro digital alumiado pela luz sidérea da CIVILIZAÇÃO. É o que te digo. Executado o teu trabalho, continuarei vivo.
E nessa situação direi, sem ócio, que serei somente MEMÓRIA por oposição ao negócio de lápides, de tumbas, missas e flores de que vive tanta gente, crente noutros mundos e valores.