MÁ LÍNGUA
Era uma vez...
Foi há muito, muito tempo quando eu, um artolas da gramática sabedor ensinava Português nas escolas, tal qual mandava o programa, nos cursos diurnos e noturnos. Certo dia, o assunto da lição, tinha de ser, lá recaiu sobre os sinais de acentuação: o "acento agudo", o "acento grave", o "til" e o "circunflexo". Quatro apenas, quatro somente. Como e onde cada um deles caía ou cobria a letra. Tão simples como complexo era para quem na Língua se inicia e a escrever aprende que escrever não é nenhuma treta..
Meninos e meninas, senhores e senhoras, ouçam bem o que vos digo, o que a Gramática diz: vejam o acento no advérbio "AMÀVELMENTE"! E escrevia-o no quadro com giz. Viram? É um "acento grave". Aprenderam? Mas isso não é tudo. Cabe dizer que muito grave é se na palavra "AMÁVEL" (escrevia-a no quadro) não puserem "acento agudo". Viram, ou não? Reparem, sem perda de tempo, do acento a posição e como ele em cima da letra se ajeita: no advérbio ("amàvelmente") cai na perpendicular da esquerda para a direita. No adjectivo ("amável") na perpendicular cai, mas da direita para a esquerda. Certo? Aprendido? Então esta matéria já lá vai.
E, devagar, devagarinho, aluno grande e pequenino, aprenderam a ortografia que eu assim lhes ensinava, seguindo a norma estabelecida na Gramática. Daí decorria que, na prática, como docente encartado, marcasse erro sublinhado a toda a gente que diferentemente escrevia.
Passou um ano, um ano somente. E os gramáticos no sapiente e paciente labor do aperfeiçoamento da Língua, num só momento decidiram eliminar o perpendicular "acento grave" nas "subtónicas". E os advérbios "facilmente, amavelmente" e quejandos perderam o apêndice aéreo inclinado a cair da esquerda para cima da letra. E eu, sem "quês", "porquês" ou "quandos", atento aos conteúdos letivos, frente às mesmas crianças e adultos que havia ensinado no ano anterior, fiquei bastante embaraçado quando, atónitas, elas viam o mesmo professor marcar-lhes erro de ortografia, se cada um delas escrevia como eu, no ano anterior, as havia ensinado a escrever assim.. Olhavam para mim e interpelavam-me: "afinal, com'é qu'é ... é?, agora não é preciso? Então eu é que estava certo, pois nunca punha isso". E não punha, não senhor. Por isso lhe marcava erro. A criança mais o adulto, nesse seu escrito sem apêndice aéreo, (mas por que caminho agora vou!), nesse seu aprender a escrever, antecipara-se ao erudito, ao doutor, ao professor que levava a sério a profissão que abraçou.
Pois, pois e não foi só um nem dois que, lá no seu tino, me confrontaram com a incongruência do ensino/aprendizagem! E face a tais interpelações e andanças eu, recorrendo à minha bagagem, justificava, explicava, dizia àquelas criançada e àqueles adultos, alguns bastante sabedores e astutos, que a Língua tem normas mutáveis e havia uns senhores que, dedicando-se ao seu estudo, acompanhando a sua evolução, sabedores de tudo, introduziam mudanças de tempos a tempos e a retirada daquele simples "sinal de acentuação", antes obrigatório, era uma dessas mudanças. Garantindo que, como bem se entende, outras mudanças virão no futuro, mudanças que a gosto ou contragosto de muita gente, vigorarão como código provisório, de quem estuda e aprende.
Uma coisa era certa, dizia eu seguro: nós já não escrevemos como escreviam os nossos pais, os nossos avós e avós dos nossos avós. Já não escrevemos como escrevia D. Dinis, Gil Vicente, Camões, Eça de Queirós, Júlio Dinis, Camilo Castelo Branco e por aí fora, todo o escriba de sapato ou de tamanco. "Quem tal diz? Quem tal disse? Então a gramática é provisória?" ouço, lá do fundo, a pergunta provocatória do garnisé que à vista da mudança, afina a garganta e levanta a crista. Quem o diz? quem o disse? Digo eu, pois é uma verdade de La Palisse.
Aposentado, contente comigo mesmo, que sossego, que descanso o meu, não estar incumbido, não ter ao meu cuidado dar agora qualquer explicação ou tomada de posição sobre o NOVO ACORDO ORTOGRÁFICO, feito nesta eterna evolução da Língua, quer se queira, quer não! E sei haver ilustres luminárias que se não conformam com a realidade que levou Camões a dizer, "mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, muda-se o ser, muda-se a confiança, todo o mundo é feito de mudança, tomando sempre nova qualidades". Catilinárias! E se ele usava a grafia de quinhentos, a grafia dos descobrimentos, da expansão, da formação do império, que diferente era da grafia medieval, a grafia do seu tempo, seria muito mal que, na sua sina expansiva e mutante, a Língua dispersa pelos quatro continentes, usada por novas gentes, ela se ficasse presa à raiz latina e, tolhida na velha norma, entrevasse a vida e inibisse as ideias e o pensamento, senhores, dos novos escribas e falantes, dos povos conquistados, vencidos e vencedores. Sem MILANDO!...
Abílio/março/2016