A leitura dos elementos naturais respaldava esse saber transmitido de geração em geração. Ele decifrava o tempo na direção das nuvens, nas fumarolas que se evaporavam dos cimos dos montes, na direcção e intensidade do vento, na nitidez das badaladas do sino local ou das aldeias vizinhas, situadas a nascente ou a poente, na temperatura indicada pelo termómetro que tinha na ponta do nariz, nos dedos e nos artelhos. Aquele frio de tolher os movimentos, frio de rachar, de fazer gretas na pele, o mesmo que rachava os penedos da serra com ou sem a ajuda do homem através de guilhos ou cunhas de madeira.
Nessas condições, atendendo ao mês do ano, (dezembro, janeiro e fevereiro) vi e ouvi muitas vezes o meu pai, Salvador de Carvalho, farejando o ar, dizer: "cheira a neve, amanhã temos aí um nevão".
E então era vê-lo de vigília noite adiante, a farejar o escuro, a subir e a descer a parte inferior da janela de guilhotina da sala que dava para o seu quarto e para o nosso, lado a lado, separados por uma vedação de tábuas de forro, acasaladas na vertical, graças àquela ferramenta de carpinteiro, chamada "cepo macho/fêmea", que eu vi tantas vezes nas mãos do meu tio João Leonor, a rasgar as tábuas para forro ou soalho.
O meu pai, caçador nado e criado na serra, conhecedor dos hábitos alimentares dos leporídeos, sabedor de que, mal caía a noite, eles saíam das suas luras e refúgios para saltaricar, esgravatar, atestar o bornal onde quer que fosse e, finalmente, despejar a tripa nos touralhos, regressando, logo depois, consolados e satisfeitos, ao ponto de partida, recolhendo mais cedo a penates por força do mau tempo, ele sabia, o meu pai sabia que, se continuasse a nevar noite adiante, se o tecelão, com tear montado entre as nuvens, não desse por terminada a tarefa até cerca da meia noite, se continuasse no activo a estender o bragal sobre o mundo em redor, depois dessa hora, as pegadas noctívagas não ficavam registadas no chão e, mau caçador era aquele que, ignorando tais sinais, partia para a serra no dia seguinte, qual detective inexperiente, em busca das impressões digitais dos criminosos que assaltaram as hortas e lameiros das redondezas, impressões digitais apagadas por essa via, pela recolha tardia do tecelão ou, combinado, em parceria com o tabelião que se goza de ter o cartório notarial coberto pela abóbada celeste e por escrivaninha tudo quanto é terra chã, encosta ou ravina, em parceria, dizia, entrarem em defesa dessa fauna, pouco se importando com a necessidade do aldeão que, com a ajuda da neve, sem grande esforço e à mocada, via uma ocasião propícia para botar os cinco mandamentos a uma presa de pelo e, assim, ferrar o dente num coelho ou numa lebre.
Se tal acontecesse, se o tecelão do imensurável lençol branco não terminasse a obra a tempo e horas, se tal lençol, assim fabricado, se estendesse, sem rasgão, sobre todas as formas de relevo, se cobrisse penedos e cómaros, se obrigasse as giestas, urgueiras e as pernadas das árvores a vergarem-se pelo peso, se apagasse todos os pontos de referência, se envolvesse todo mundo em redor, tornando tudo alvo, engolidas as saliências de penedos e arrasados os talhadouros e regos de leiras e lameiros, tudo submerso e igual para onde quer que se olhasse, nada feito, para uma boa caçada.
Se tal acontecia, mais valia ficar a manhã a saborear o quentinho das mantas do que, enrolar as grevas nas pernas, calçar as botas de elástico com sola de borracha virgem, irrompível, do que e ir bater terreno na Rascoa, no Boi Alvo, no Vale da Fraga, na Corga Seca, no Penedo do Gato e outros sítios sabidos, pois de pegadas a rasgarem o bragal noturno, nem sinal. Tudo branco para onde quer que se olhasse, no chão somente ficariam as pegadas dos caçarretas que, mesmo sabendo isso, tentavam a sorte e arriscavam ser surpreendidos pelos fiscais da Venatória e pagarem a coima correspondente à transgressão.
E disso vos falo.
Pois aconteceu que pela Câmara Municipal de Castro Daire, passou um zeloso funcionário que foi, durante muito tempo, fiscal de caça: o Amândio, quem não conhecia o Amândio? Ele era tão sabido dos sinais do tempo, como o serrano e, vai daí, cheirando-lhe a cair neve no dia seguinte, tendo por cúmplice um morador nas Monteiras, seu amigo, foi pernoitar a casa dele. Bem pensado e melhor feito. No dia seguinte, encafuados ambos nas capuchas, saem montes fora e não tardou estavam a cruzar-se com outros caçadores. Só que os outros, vendo que aquela área estava a ser espiolhada, respeitando o código das distâncias, não se aproximavam. Cada um andava na sua e assim se passou parte da manhã. Chegada que foi a altura, provado que estava ao que todos andavam, o morador das Monteiras afastou-se para não ser identificado, simulando seguir um rasto e o fiscal, aproximando-se dos outros, disfarçado sob a capucha, pediu auxílio, pois havia ali vários rastos cruzados e ele não sabia qual deles seguir. Os serranos, na sua boa fé aproximaram-se. E tarde viram que tinham caído na tramóia. Eram gente de bem e em vez de uma boa sova, que o fiscal merecia, para não terem mais problemas, pagaram a multa. Mas, descoberto que foi o cúmplice, nunca mais o viram com bons olhos: um traidor!
A foto singular que se segue, mostrando a aldeia de Cujó e as terras do Giestal cobertas de neve, cujo autor ignoro, pois foi copiada do mural do meu amigo Agostinho Bernardo, que me informou tê-la copiado do "Grupo Cujuenses", deu-me ocasião para escrever este texto, há muito tempo devido aos meus amigos e leitores. Ela aqui fica com a devida vénia e louvores ao desconhecido autor, pois tendo eu fotografado e filmado aquela minha aldeia sob todos os ângulos, incluindo daquele, como o atestam os vídeos que tenho alojados no Youtube, jamais a tinha visto assim vestida. Aos 76 anos de vida, ainda vi a minha terra natal como nunca a tinha visto. Foi tirada da Serra da Lestra, em Dezembro de 2010, tal vejo navegando no GOOGLE.
Abílio/março/2016