
Mas hoje, que outros cuidados me consomem, digo que antes disso, antes de me chegar pelos livros tal ideia, já eu, e outros pastores, no mundo iletrado, mas culto, das aldeias da serra, sabia que assim era, pois, cá, nos montes (como prova de que a aprendizagem, em menino, tem algo que dure e preste) cedo, com as estrelas a pintalgarem a abóbada celeste, adquiri o hábito de deixar a enxerga de palha e estopa e ir com o gado (cabras, vacas e ovelhas) para os pastos e levá-lo a beber nas poças e fontes. Havia que madrugar. Com o calor vinham as moscas e moscardos prontos a meter o ferrão em todos os lados e, sem asseio, se alimentarem do sangue alheio. Nessa idade, venci da noite os medos, os receios, venci das manhãs o frio das geadas e das orvalhadas, obedeci aos meus pais guiados pelo
aforismo: «quem não trabuca, não manduca». E nós, meninos e meninas de Cujó, pastores, manducávamos um naco de broa seca, só, ou, às vezes, regada com leite quentinho e espumoso, esguichado a pulso para um púcaro de alumínio, tirado das tetas da cabra mansa. E descalço ou de tamancos, até onde o meu pensamento alcança, a trabalhar e a alimentar-me assim, cresci, a ouvir o gorjeio matinal dos passarinhos, a ouvir os seus primeiros pios soltos, um ou dois, intervalados, assustados, até irromperem depois confiantes em coro, pelas manhãs adiante, na sua natural sinfonia. Assim todas as manhãs, todos os dias, todos os anos (sete, oito, nove, dez, quinze, tantos) só calando as guitarras à hora do calor, dando lugar às cigarras. E eu, menino-pastor, em busca de vida melhor, só deixei de ouvi-los quanto parti para terras distantes, sitas abaixo do Equador. E lá outros sois, outra passarinhada, outros calores, cores e odores absorvi, vi, ouvi fiz vida e me tornei gente crescida.
Longa foi a caminhada, mas de revoada, porém, por força da descolonização, à semelhança de tantos portugueses que se fizerem mar-além, regressei às origens e voltei a ouvir cantar os passarinhos que ouvi em menino, ao colo da minha mãe. Coisas do destino. Nesta idade, setenta e seis anos feitos, na minha memória tudo isso ecoa. São registos da minha história, do meu percurso de vida. São nacos de barro que moldaram a minha pessoa. E digo-o não à toa. Escrevo-o com a naturalidade com que mijo atrás de uma árvores, se estou no campo, e me dá vontade. Acordo sempre cedo. Mas este meu acordar, este saltar da cama, deixar os lençóis imediatamente não é, com certeza, somente para ver o nascer dos sois e ouvir a passarinhada. É a minha natureza. Mal acordo, desperto totalmente. E, se dizer isto tem algum tino, julgo que o despertar de todos os meus sentidos mal acordo, se deve ao recorde dos anseios, alegrias e medos vencidos na serra, nos tempos idos de menino.
Abílio/julho/2015