Trilhos Serranos

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quinta, 23 abril 2015 12:04

MEMÓRIAS DE TETE E DE OUTRAS BANDAS

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Estou em Tete. Estaciono a mota (a minha Honda) na rua principal, dita Avenida, e de costas viradas para a rede que prende as colegiais no recreio, entre as quais uma delas me prende sem rede (passados tantos anos não há razões para que esconda esse anseio), costas viradas, dizia, vou matar a sede, lá arriba, naquele bar sobranceiro. Não há contacto, não há proximidade de meninas do Colégio com rapazes do mundo. Isso só quando, às vezes, em passeio pela cidade, em duas filas com as demais colegiais, vestidinhas de cima a baixo, meia branca a sair do sapato, por freiras acompanhadas, coisa pouca, os nossos olhos diziam o que nunca dizia a boca.

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Era assim, meninas vigiadas, mota estacionada, subo as escadas e vou  matar a sede na esplanada do Skarlete, naquele edifício, em Tete, aquela obra levantada sobre colunas e rodeada de varandas à moda do Partenão, em duplicado, um sobreposto ao outro, levantados no mesmo chão. Único em toda a cidade, lá no topo, um apenas, para que nos sentíssemos em Atenas, só lhe faltavam as Cariátides, aquelas esculturas de mulheres cheias de beleza e vida, por Fídias,  Policleto ou Praxiteles esculpidas,  aquelas que suportam o entablamento na arquitetura grega. 

Subo com sede. Quem o nega nesta terra quente? E se comigo vai esta ânsia de beber e estes sentimentos e pensamentos tão próprios da idade e de toda a gente, é porque talvez tais esculturas eu vi, ou imaginei, nas colegiais, que deixei no recreio, atrás daquela rede (ai que fome, ai que sede!) ansioso de as ver cá fora, aos pares, em passeio com as freiras, e possuir uma delas em simples troca de olhares. Coisas da mocidade, doidices da juventude, lembranças que não morrem e vivas acorrem a alimentar a senectude.

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À esplanada do Bar chegava eu e a demais rapaziada amiga. Os copos de cerveja,  alinhados sobre a mesa, eram tantos que pareciam hoplitas formados em parada. Ao lado, as travessas oblongas que chegaram recheadas de rolas cozinhadas, abatidas na caçada matinal, pareciam campos de batalha cheios de ossadas. Em torno da mesa, barriga cheia, sede saciada, a rapaziada convivia, suportava o calor, matava o tempo e banalidades dizia do quotiniano. E eu mirava, estudava e lia aquela arquitetura. E neste meu ver, estar e pensar, neste meu ledo engano  (seria amor?)  transformava em escultura a colegial dos meus encantos, aquela que me seduzia com um simples olhar. Aquela que só veio à fala comigo muitos anos depois. Ela, casada, com três filhos e eu com dois. Foi na praia de Milfontes, num parque de campismo, tendas e gente aos montes com fato de banho vestido. 

 - Nós não nos conhecemos? Perguntou ela. Talvez. Não estranho o seu rosto. Donde será? Que trajeto de vida fizemos? A busca nos escaninhos da memória promete e resulta com gosto. Frente a frente, ah! foi em Tete, dissemos. E, tantos anos passados, mais uma vez os olhos falaram o que sempre na boca ficou calado. A vida é uma charada caprichosa. Ao lado dela o seu marido, a meu lado a minha esposa, em redor de nós os quatro a prole gerada. E nem mais uma palavra.

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.