Em tempo que lá vai, era eu criança ainda (como estou bem lembrado) foi numa noite linda, céu muito estrelado, que o saber do meu pai sobre estrelas me foi luminosamente ensinado. Ele, os meus irmãos e eu, na eira da aldeia, ali mesmo à beira de casa, metidos no escuro, todos a olhar o céu, naquele tempo muito duro (vocês nem fazem ideia), braço estendido, ele, como se fosse dia, apontava as estrelas e dizia:
Ali está ela, a Estrela do Norte, rabo da Ursa Menor e as guardas da Maior levam-nos lá com sorte. Olhem, olhem, lá está ela...ali...ali...apontava. É aquela. Ela piscava, piscava e, entre mil, mal luzia. Aprendei meus filhos (eu aprendia) a ler o livro celeste. Ide pela estrada de Santiago (eu ia) pois neste mundo terrestre de caminhos, atalhos e perigos, às vezes, sem saber como, em noites de escuro aziago nos perdemos. E saber lê-lo, não ignorar o sete-estrelo, ajuda-nos a encontrar o rumo.
Nesse tempo que lá vai, aquele dedo do meu pai era um foguetão que levava a minha imaginação a viajar na imensidão do espaço infinito. E, saiba-se, fica aqui dito, que, neste meu viajar, antes de conhecer o astrolábio e de fazer descobertas em bibliotecas para essas descobertas dizer e ensinar, descobri outros mundos, outros céus que são vossos e meus. Sem mistério, lá, no outro hemisfério, era diferente o azul e o Cruzeiro do Sul apagara a Estrela do Norte.
Ó meus tempos de criança, ó meus tempos da África quente, porque me vindes assim à lembrança nesta idade avançada, nestes tempos que correm? Ó gente, quem é que hoje olha o céu, quem é que mostra à pequenada as estrelas cadentes que morrem rasgando o espaço, na direcção da Terra caídas, sinais de outros mundos e outras vidas?
Pergunta tola é esta, pois eu bem sei a resposta. Ninguém foge à sua criação, ao seu tempo, e cada um vê e lê o que gosta. E o firmamento do meu tempo, não, não é o firmamento de agora. Agora a luminosidade está na aldeia, está na cidade, está na Internet, no computador, no Ipad, no Facebook, está numa pequena moldura onde tudo se faz, tudo se fala, tudo se aprende e tudo se diz. Tudo, a um palmo do nariz. Agora já não é preciso o pai estender a mão na direcção do infinito profundo. Agora, o filho e o neto têm todo o mundo, todo o universo iluminado metido no minúsculo aparelho pela ciência inventado. É só deslizar o dedo, sem medo, nessa coisa pequenina, nessa invenção gigante e, num instante, a Cassiopeia, o Capricórnio e o Leão, de uma assentada, ali estão, só não está a minha estrada de Santiago a rasgar a escuridão onde eu saltava e corria, a noite transformada em dia.
Que diferentes são os tempos. Em menino, noite adiante, como se tivesse asas, eu voava pelo o universo, sem serras, sem montes, sem paredes, nem casas. Só estrelas. Voava e sobrevoava tudo. Agora é o inverso. A imitar os meus netinhos, entre paredes fechado, sentado, divagando a esmo, quase mudo ou falando comigo mesmo, vem o universo até mim. E nesta minha estranha lida de velho-menino, que sorte a minha, à solta, com bilhete de ida e volta, ora vem ora vai, neste meu deserto, ainda esvoaçam por perto a companhia e a sabedoria do meu pai.
Abílio/Junho/2014