Trilhos Serranos

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segunda, 20 abril 2015 18:37

CÉU ESTRELADO

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Em tempo que lá vai, era eu criança ainda (como estou bem lembrado) foi numa noite linda, céu muito estrelado, que o saber do meu pai sobre estrelas me foi luminosamente ensinado. Ele, os meus irmãos e eu, na eira da aldeia, ali mesmo à beira de casa, metidos no escuro, todos a olhar o céu, naquele tempo muito duro (vocês nem fazem ideia), braço estendido, ele, como se fosse dia, apontava as estrelas e dizia: 


Estela Polar-2Ali está ela, a Estrela do Norte, rabo da Ursa Menor e as guardas da Maior levam-nos lá com sorte. Olhem, olhem, lá está ela...ali...ali...apontava. É aquela. Ela piscava, piscava e, entre mil, mal luzia. Aprendei meus filhos (eu aprendia) a ler o livro celeste. Ide pela estrada de Santiago (eu ia)  pois neste mundo terrestre de caminhos, atalhos e perigos, às vezes, sem saber como, em noites de escuro aziago nos perdemos. E saber lê-lo, não ignorar o sete-estrelo, ajuda-nos a encontrar o rumo.

Nesse tempo que lá vai, aquele dedo do meu pai era um foguetão que levava a minha imaginação a viajar na imensidão do espaço infinito. E, saiba-se, fica aqui dito, que, neste meu viajar, antes de conhecer o astrolábio e de fazer descobertas em bibliotecas para essas descobertas dizer e ensinar, descobri outros mundos, outros céus que são vossos e meus. Sem mistério, lá, no outro hemisfério, era diferente o azul e o Cruzeiro do Sul apagara a Estrela do Norte. 

Ó meus tempos de criança, ó meus tempos da África quente, porque me vindes assim à lembrança nesta idade avançada, nestes tempos que correm? Ó gente, quem é que hoje olha o céu, quem é que mostra à pequenada as estrelas cadentes que morrem rasgando o espaço, na direcção da Terra caídas, sinais de outros mundos e outras vidas?

Cruzeiro do Sul-2Pergunta tola é esta, pois eu bem sei a resposta. Ninguém foge à sua criação, ao seu tempo, e cada  um vê e lê o que gosta. E o firmamento do meu tempo, não, não  é o firmamento de agora. Agora a luminosidade está na aldeia, está na cidade, está na Internet, no computador, no Ipad, no Facebook, está numa pequena moldura onde tudo se faz, tudo se fala, tudo se aprende e tudo se diz. Tudo, a um palmo do nariz. Agora já não é preciso o pai estender a mão na direcção do infinito profundo. Agora, o filho e o neto têm todo o mundo, todo o universo iluminado metido no minúsculo aparelho pela ciência inventado. É só deslizar o dedo, sem medo, nessa coisa pequenina, nessa invenção gigante e, num instante, a Cassiopeia, o Capricórnio e o Leão, de uma assentada, ali estão, só não está a minha estrada de Santiago a rasgar a escuridão onde eu saltava e corria, a noite transformada em dia. 

Que diferentes são os tempos. Em menino, noite adiante, como se tivesse asas, eu voava pelo o universo, sem serras, sem montes, sem paredes, nem casas. Só estrelas. Voava e sobrevoava tudo. Agora é o inverso. A imitar os meus netinhos, entre paredes fechado, sentado, divagando a esmo, quase mudo ou falando comigo mesmo, vem o universo até mim. E nesta minha estranha lida de velho-menino, que sorte a minha, à solta, com bilhete de ida e volta, ora vem ora vai, neste meu deserto, ainda esvoaçam por perto a companhia e a sabedoria do meu pai.

Abílio/Junho/2014

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.