E em redor havia montes, matos, sabugueiros, aqueles arbustos com pretensões a árvores, pertencentes ao género Sambucus da família Adoxaceae, cujos ramos, de grossura vária, consoante os anos de vida, com nós intervalados, aproximadamente de palmo, se prestavam a fazer tais brinquedos. Bastava ter um canivete, alguma imaginação e/ou copiarem-se os modelos que vinham desde o tempo da Maria Carqueja.
Cortada uma pernada a preceito, liberta dos nós dos extremos, a primeira coisa a fazer era limpar-lhe a "alma", isto é, tirar-lhe o miolo usando qualquer chamiço seco resistente, extrair-lhe aquela espécie de medula espinal branca que se alojava no interior. Feito isso, espreitava-se por dentro, tal qual um caçador faz à sua arma de caça após um acto de fogo ou de limpeza em fim de época venatória (aqueles que amam e estimam essas companheiras de vida) e via-se se estava totalmente limpo.
Seguia-se a manufactura da "chave", saída de uma piorneira, arbusto mais resistente do que a giesta, feita à medida do seu comprimento, isto é, uma espécie de embolo, tipo seringa de injecções, um bocadinho mais curta que a "arma", por forma a que um pedaço de cortiça, ou de trapo, empurrado até ao extremo só saísse e estoirasse..."tau"...impelida pelo ar comprimido resultante da operação repetida com uma segunda "bala", empurrada com força e jeito de modo a atingir-se o alvo visado. E os alvos eram, por norma, os colegas de brincadeira, os pastorinhos-escolares, alguns dos quais, feitos homens, se tornaram meus companheiros de caçadas autênticas, com armas autênticas e pontarias muito longe do "faz de conta".
2 - A FISGA
A segunda arma foi uma fisga que, como toda a gente sabe (se calhar exagero, e nem toda agente sabe) é um objecto que tem a forma de um "Y" servindo os terminais superiores para neles prender um elástico e a parte inferior a servir de "pega", mão firme, braço estendido, esticado o elástico, pontaria feita e aí vai "tiro" silencioso de pedra solta dirigido a pardal, melro, rola, aves de pequeno porte que, desprevenidas, deixassem aproximar o predador=fisgador.
Um crime que a consciência ecológica HOJE condena, mas aconselhado ONTEM em prol dos produtos hortícolas, que tanto trabalham davam a granjear até chegarem à mesa.
3 - A FUNDA
A terceira arma, feita por mim, foi uma FUNDA, a mais perigosa de todas, apesar da sua simplicidade. Arremessava pedras a distâncias incalculáveis e podia atingir alvos nem vistos, nem ouvidos, nem achados.
Ainda que, às vezes, houvesse pontaria direccionada, tal qual David fez com Golias, o mais das vezes era usada nos torneios que nós, garotos ainda, fazíamos a partir dos topos dos montes a ver quem era capaz de lançar mais longe uma perda.
Consistia o brinquedo em dois nagalhos presos num bocado de cabedal ou de burel velho, que serviam de suporte à pedra ou projéctil a lançar. Colocado o projéctil no suporte, cortado em oval e dobrado em meia lua, nagalhos presos nos extremos pelos os dedos, fazia-se do braço um moinho, davam-se umas tantas voltas para ganhar balanço e depois soltava-se uma das pontas do nagalho. Feito isso era ver a pedra voar em direcção ao alvo, ou romper distâncias a perder de vista. E ai do alvo onde ela terminasse a viagem. Sem marca ou sem dor é que não ficava. Às vezes as cabras e as ovelhas caminhando em direcção errada tomavam outro rumo.
Nunca houve notícia de acidentes significativos, mas, a muitos anos de distância, não deixo de reprovar tão perigosa brincadeira. Não garanto, porém, que, em tempos que escapam à minha memória, tais acidentes tivessem acontecido, pois não encontro explicação plausível para a expressão popular: "ó pedra de um raio". Não era para menos. Caída do céu, ignorada a proveniência, só podia ser "pedra de raio".
NOTA: Fiz recentemente um vídeo que aoljei no Youtube como demonstração do «estoira balas»